A transição alimentar em curso

As formas de produção e as estruturas de beneficiamento, distribuição e comercialização de alimentos são fatores centrais para a transformação dos sistemas alimentares. Cadeias alimentares que valorizem a biodiversidade, o fomento a circuitos curtos de produção e consumo de alimentos, relações justas de trabalho e o fortalecimento de dietas alimentares locais, capazes de centralizar o papel de pequenos produtores, povos e comunidades tradicionais contribuem para a promoção de sistemas alimentares saudáveis, justos e sustentáveis.
Desponta como protagonista dessa reconfiguração das formas de produção, beneficiamento, distribuição e comercialização de alimentos a agricultura familiar, frequentemente articulada à agroecologia, que vive uma crescente aposta mundial por seus benefícios socioambientais, educativos e de saúde pública.
No entanto, ainda são insuficientes os incentivos públicos, fundamentais ao desenvolvimento dessas e outras perspectivas e práticas favoráveis à transição para uma nova realidade dos sistemas alimentares no Brasil. Este desinvestimento se dá na contramão do forte incentivo por meio de subsídios do Estado para o agronegócio, a exemplo do que revela o recém-lançado estudo “O custo da soja para o Brasil: renúncias fiscais, subsídios e isenções da cadeia produtiva”.
Identificando essa lacuna e viés nas políticas públicas relacionadas à questão alimentar no Brasil, organizações da sociedade civil se dedicam ao avanço de práticas e produção de conhecimento voltadas à construir e avançar na viabilidade da transformação de sistemas alimentares. Confira a seguir algumas das iniciativas apoiadas pelo Instituto Ibirapitanga que mostram que a transição para uma realidade mais justa e sustentável já está em curso.
PARTE 1 | Experiências práticas que favorecem a transição
Plataforma Muká
Idealizada e coordenada pela Tabôa Fortalecimento Comunitário, a Plataforma Muká
fortalece a produção agroecológica por meio de acesso ao crédito e acompanhamento técnico rural especializado. Realizada em parceria com a Rede Povos da Mata, no Sul da Bahia, a plataforma trabalha com todas as dimensões da agroecologia, indo além do cultivo de alimentos orgânicos e incluindo estratégias para a conquista da soberania e da segurança alimentar e nutricional de agricultores familiares, ressaltando também o reconhecimento e a valorização da dimensão sociocultural do alimento.
A amplitude do trabalho se desdobrou em uma diversidade de resultados que afirmam o potencial da agroecologia quando incentivada. Na frente de produção, a plataforma permitiu o avanço de sistemas agroflorestais e a ampliação da produção, atendendo a mercados exigentes em torno da qualidade, a exemplo da venda de cacau para marcas de chocolate de origem sustentável. O eixo de beneficiamento facilitou a legalização, adequação sanitária, consolidação de procedimentos em agroindústrias, bem como o ganho de experiência da Rede Povos da Mata para participação em processos de regulamentação em estruturas governamentais. Com a frente de certificação, a Muká promoveu fortalecimento e expansão de grupos dentro de redes agroecológicas para garantia do fluxo de manutenção das certificações de produtos orgânicos. Respeitando a lógica de abastecimento prioritário para o autoconsumo, por meio do eixo de comercialização, o excedente dos produtos foi escoado para circuitos estaduais e, além deles, através de feiras, entrepostos e participação em programas governamentais como o PNAE — Programa Nacional de Alimentação Escolar e PAA — Programa de Aquisição de Alimentos. Por fim, por meio do acesso ao crédito, a cadeia de benefícios foi estendida com aplicações em frentes de equipamento, agroindústria, oleicultura, capital de giro e investimento na agroecologia, o que mostra o potencial da iniciativa de apoiar a estruturação financeira da agricultura familiar.
Agroecologia e abastecimento popular de alimentos
A iniciativa conduzida pelo MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores fortalece experiências territoriais de produção agroecológica e abastecimento popular, estimulando, através da cooperação e solidariedade, a relação campo-cidade, a organização social e a comunicação em torno da soberania alimentar. O projeto atua em duas frentes: (i) experiências de organização social e produtiva baseadas na agroecologia, cooperação, protagonismo feminista e juvenil, agregação de valor e produção de cultura, comercialização em circuitos curtos e abastecimento popular; e (ii) ações de comunicação com foco na divulgação das experiências agroecológicas, para potencializar seu alcance social e apoio para os sistemas alimentares baseadas na agricultura camponesa, agroecologia, cooperação e desenvolvimento territorial.
As experiências se voltaram tanto para ações locais, quanto para apoio à estruturação de programas de governo federal e estadual relacionados à soberania alimentar. Houve destaque para os espaços Raízes do Brasil em Picos (PI), no Rio de Janeiro (RJ) e em Salvador (BA), que viveram um ciclo de fortalecimento a partir de ações junto a entidades parceiras, como mutirões, visitas técnicas, cursos, articulação política, atividades com mulheres e participação na organização do 12º Congresso Brasileiro de Agroecologia. No Espírito Santo foram realizadas atividades voltadas à expansão de produção e das experiências de produção agroecológica de bioinsumos, cachaça e farinha. No Rio Grande do Sul, a iniciativa atuou na implantação de sistemas agroflorestais, bem como na formação e capacitação em agroecologia para jovens e mulheres e na transição agroecológica. No estado, também foram realizadas a VI Festa da Semente Crioula e a I Feira Regional da Economia Solidária. Essas e outras atividades realizadas pelo MPA recentemente passaram a ser divulgadas pela newsletter MPA Informa.
Por meio da iniciativa Agroecologia e abastecimento popular de alimentos, o MPA fomenta a criação de tecnologias sociais entre campo e cidade voltadas a viabilizar o abastecimento com alimentos agroecológicos, favorecendo a soberania alimentar.
Fortalecimento da agricultura ancestral Terena
Realizada pela organização indígena Caianas – Coletivo ambientalista indígena de ação para natureza, agroecologia e sustentabilidade, a iniciativa viabiliza um conjunto de oficinas formativas, com temáticas etnoagroecológicas, com agricultoras/es das terras indígenas Cachoeirinha, Pilad Rebuá e Lalima, situadas no município de Miranda, no Mato Grosso. A organização estimula que novas pessoas, entre elas, mulheres, jovens, crianças, lideranças, caciques e anciãos, incorporem os princípios e filosofia da agricultura ancestral Terena e produzam seus próprios alimentos nos territórios indígenas mapeados.
Beneficiando alimentos saudáveis e saberes no território Extremo Sul da Bahia
Nesta iniciativa, a EPAAEB — Escola Popular de Agroecologia e Agrofloresta Egídio Brunetto se dedica à implementação de uma unidade de processamento mínimo de produtos de origem vegetal, para produção de polpas de frutas, desidratação de frutas e condimentos. A implementação inclui formações teóricas e práticas com camponesas/es, para aprimorar seus conhecimentos sobre o processo de colheita, transporte e beneficiamento de produtos vegetais.
O conteúdo das formações traz a perspectiva de valoração da produção, da importância da diversificação e das vantagens do beneficiamento para impulsionar o acesso aos diferentes mercados; bem como capacita sobre os cuidados com a produção do plantio, passando pelo manejo nutricional e fitossanitário, ressaltando sua importância na qualidade dos frutos e dos produto.
A iniciativa fomenta o aprimoramento das condições de geração de renda no campo, bem como estimula a produção vegetal de base agroecológica, agregando valor à produção através do processamento mínimo, diminuindo as perdas pós colheita e aumentando a vida útil dos produtos, bem como o acesso da população do campo e da cidade à alimentos saudáveis.
Baquité quilombola: tradições alimentares
A iniciativa conduzida por Acorquirim — Associação Da Comunidade Negra Rural Quilombo Ribeirão Da Mutuca atua para o fortalecimento de práticas tradicionais de produção e preparo dos alimentos das comunidades quilombolas da baixada cuiabana em Mato Grosso, com ações de troca de sementes, mudas crioulas nativas e trocas de conhecimento em torno da importância da cultura alimentar das famílias para conservação do Pantanal.
Projeto da Barragem: a obra da Mãe Natureza é o alimento da fé viva!
Promovendo um conjunto de ações voltadas ao reconhecimento, fortalecimento e registro das práticas, memórias e narrativas que potencializam a vida na comunidade quilombola, esta iniciativa é realizada pelo Coletivo de agricultores e criadores de peixes em barragem do território quilombola Santa Rosa dos Pretos. O Projeto da Barragem viabiliza o aprimoramento da atividade produtiva, com a reestruturação dos açudes e tanques criatórios de peixes, bem como com a reforma da casa de apoio do projeto e o fortalecimento das práticas e saberes tradicionais, com o envolvimento e participação de mestras e mestres da cultura popular, artesãos, agricultores, mulheres e jovens da comunidade. O projeto também prevê a realização de ações formativas com foco na autonomia alimentar, saberes ancestrais e no fortalecimento de estratégias e práticas territoriais de redes de cuidado no enfrentamento às crises climáticas.
PARTE 2 | Produção de conhecimento sobre os resultados e possibilidades da agroecologia
Futuros alimentares sustentáveis
Conduzida pelo Sopas – Grupo de pesquisa em sociologia das práticas alimentares, a iniciativa fortalece o grupo de estudos e suas discussões em torno de três linhas de pesquisa: (i) dietas alimentares; (ii) inovações nos sistemas alimentares e movimentos sociais; (iii) justiça e democracia alimentar. A série Futuros alimentares sustentáveis produz um conjunto de reflexões sobre práticas, políticas e inovações para contribuir com debates internos e abertos ao público, por meio de projetos coletivos de pesquisa e produção de publicações entre os membros do grupo.
Uma das publicações da série, “A digitalização dos mercados na agricultura familiar”, de Jeferson Tonin, aborda como a partir da pandemia de covid-19 as organizações da agricultura familiar tiveram de ganhar capacidade para a construção de mercados digitais para ofertar alimentos diretamente aos consumidores, que passaram a valorizar ainda mais a comodidade de receber os alimentos em casa. A publicação define a digitalização dos mercados como amplo processo social que está reconfigurando os sistemas alimentares, com potencial de estimular práticas de inclusão produtiva, contribuindo com a diminuição das desigualdades de acesso às cadeias de comercialização. O autor Jeferson Tonin pontua ainda que, quando se trata da agricultura familiar, o papel de associações e cooperativas é central para que estes novos formatos de comercialização contribuam para essa diminuição das desigualdades sociais e econômicas.
Agroecologias do Brasil: desafios e oportunidades
A pesquisa é um dos esforços do COI — Centro de Orquestração de Inovações da WTT — World-transforming Technologies, que busca fortalecer a agricultura familiar de base ecológica e acelerar a transição da agricultura tradicional para esse modelo, através do desenvolvimento de inovações que respondam aos seus desafios e impulsionem as suas oportunidades. “Agroecologias do Brasil: desafios e oportunidades” é o primeiro de dois estudos voltados a promover visibilidade aos desafios sócio-técnicos da agricultura de base ecológica.
A publicação traz um resumo das principais descobertas do estudo e conta com um modelo conceitual próprio para o eixo de Agricultura Regenerativa do COI / WTT, além de um mapeamento de territórios e regiões brasileiras que vivenciam o processo de transição para a agroecologia, a partir do cruzamento de dados secundários do IBGE, MAPA e ICMBIO, entre outras análises de desafios e oportunidades para a transição agroecológica de norte a sul do Brasil.