A transformação dos sistemas alimentares a partir das mulheres como ponto central

Em uma sociedade baseada no sexismo, é fundamental perceber a invisibilização do papel fundamental que as mulheres desempenham na construção de sistemas alimentares saudáveis no Brasil e no mundo.
Para que se estabeleçam relações justas, igualitárias e equilibradas entre homens e mulheres neste campo é necessário reconhecer a atuação chave das mulheres nas diferentes pontas da cadeia e da discussão sobre sistemas alimentares, que envolvem desde suas atuações na salvaguarda do bom uso dos recursos naturais, como detentoras do conhecimento tradicional que garante a qualidade das dietas das famílias e mantém a biodiversidade, no protagonismo de iniciativas em defesa de modos de vida em seus territórios; na produção de conhecimento e pesquisa, incidência na construção e monitoramento de políticas públicas para garantia do direito humano à alimentação adequada e saudável.
Mulheres com atuação histórica na questão alimentar, que também participam e lideram iniciativas apoiadas pelo Instituto Ibirapitanga, trouxeram suas visões sobre o papel feminino neste campo. A seguir, damos voz a essas lideranças conectando com as suas frentes de trabalho em relação à questão alimentar no Brasil.
No âmbito da agroecologia, a inclusão de mulheres promove uma relação coletivizada e horizontal, em que a igualdade torna-se o princípio para as trocas de saberes entre as redes da agricultura familiar. Não é possível pensar em agroecologia sem centralizar o papel de mulheres nesse processo.
Maria Emília Pacheco, construiu grande parte de sua história político-profissional em compromisso com os movimentos sociais. Primeira mulher a presidir o Consea — Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, possui graduação em Serviço Social e mestrado em Antropologia Social, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é assessora da FASE — Federação de órgãos para assistência social e educacional, organização que conduz a iniciativa “Agroecologia, integrando campo e cidade”, voltada à assessoria à produção de agricultores familiares com adoção de práticas agroecológicas e à garantia da segurança alimentar e nutricional das famílias que dialogam com a FASE no estado da Bahia.
Para Maria Emília, “no movimento agroecológico elas [as mulheres] lideram experiências de agricultura urbana, são guardiãs das sementes e do patrimônio alimentar. O papel das mulheres é fundamental para a transformação dos sistemas alimentares contra a mercantilização da natureza e para a defesa de valores, princípios e propostas de sustentabilidade da vida.”
A antropóloga reflete também sobre o papel mobilizador que as mulheres construíram ao longo da história: “Quando se aprofundam os obstáculos para o acesso ao alimento em um contexto de crises e violação do direito humano à alimentação adequada, como vemos atualmente, é o trabalho das mulheres que se intensifica para responder à situação de precariedade. Ampliam-se as desigualdades e injustiças sociais. Mas suas lutas de resistência atravessam a história.”
O desempenho desse papel de mobilização está presente nas mais diferentes nuances da questão alimentar. Em toda essa cadeia e, inclusive, na conscientização sobre os danos ao planeta e à humanidade do modelo atual dos sistemas alimentares, é notável a atuação feminina.
Elisabetta Recine é pesquisadora nas áreas de políticas públicas de alimentação e nutrição, e direito humano à alimentação adequada. Graduada em Nutrição e doutora em Saúde Pública, ambos pela Universidade de São Paulo, é professora da UNB — Universidade de Brasília. Elisabetta, que também foi presidente do Consea (2017-2019) ocupando o posto no momento em que o Conselho foi dissolvido, integra hoje o Opsan — Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição e do FBSSAN — Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. O FBSSAN conduz a “Conferência nacional popular, por direitos, democracia, soberania e segurança alimentar e nutricional”, que busca mobilizar a sociedade para uma reflexão sobre as estruturas que promovem desigualdades, fome, insegurança alimentar e nutricional no contexto de crise democrática no Brasil.
Elisabetta defende que “as mulheres têm protagonismos e funções essenciais (muitas vezes invisibilizadas) em relação à alimentação. Do trabalho e cuidado cotidiano do cultivo da terra ao prato de comida. São elas que identificam os primeiros sinais da panela vazia. Também são as guardiãs das sementes, da biodiversidade, das práticas regenerativas. São elas, as sábias jovens, mulheres, anciãs que ocupam as ruas reais e virtuais de todo o mundo alertando que as violações aos nossos direitos comprometem toda a humanidade.”
A pauta alimentar da perspectiva de saúde pública e o direito à alimentação saudável faz parte das agendas que foram construídas a partir da participação das mulheres, por meio de ações que incluem comunicação e mobilização que provocam mudanças na sociedade. Paula Johns, referência no campo do advocacy por políticas públicas voltadas à saúde e direitos humanos, atua no terceiro setor desde 1998, coordenando projetos voltados a esta direção. Socióloga e mestre em estudos de desenvolvimento internacional pela Universidade de Roskilde, Dinamarca, Paula é diretora geral da ACT — Associação de controle do tabagismo, promoção da saúde e dos direitos humanos, e uma das fundadoras da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, iniciativa que trabalha para o avanço de políticas públicas de segurança alimentar, nutricional e pela soberania alimentar.
Ela afirma que “saúde pública é um campo de atuação da sociedade civil eminentemente abordado e liderado por mulheres não somente na questão alimentar mas em outros temas de saúde também.”
Paula expõe as desigualdades entre homens e mulheres que se expressam profundamente na formação e reconhecimento das profissionais de nutrição no país, refletindo que “na questão alimentar, se olharmos para a formação em nutrição, a grande maioria das profissionais são mulheres. Em linhas gerais, tirando as exceções que confirmam a regra, alimentação e nutrição, na acepção mais sutil de ambos os conceitos, é coisa de mulher. O nutrir e alimentar está fortemente associado ao papel tradicional da mulher na nossa sociedade e no patriarcado de um modo geral. Vale observar, que embora estejam as mulheres em maioria esmagadora nas faculdades de nutrição, a minoria masculina tem maiores possibilidades de se destacar.”
Também graças à participação feminina, a atuação vanguarda sobre políticas públicas no Brasil foi possível. Mulheres foram lideranças importantes na incidência capaz de resultar em políticas públicas reconhecidas internacionalmente, tendo como seu exemplo mais notável o Fome Zero. O programa contou com um amplo conjunto de instrumentos que incluíram direito a alimentos básicos, como o Bolsa Família, instrução sobre hábitos alimentares, entre outras ações voltadas a famílias de baixa renda no Brasil.
Tereza Campello tem sua trajetória marcada pela elaboração, implementação e execução da política nacional para erradicação da extrema pobreza, por meio do plano Brasil Sem Miséria, durante sua atuação como Ministra do Desenvolvimento Social e Combate à fome, entre 2011 e 2016. Em 2014 recebeu reconhecimento da FAO — Food and Agriculture Organization of the United Nation, pelos avanços no combate à fome no país. Doutora Notório Saber em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz, é atualmente pesquisadora convidada do Nupens — Núcleo de pesquisas epidemiológicas em nutrição e saúde da USP, para coordenar a iniciativa “Cátedra Josué de Castro — Sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis”, que busca criar um espaço de produção de conhecimento interdisciplinar, multidimensional e compartilhado com diversos atores para discutir as transformações dos sistemas alimentares no país.
De acordo com Tereza, “o Brasil tornou-se referência em políticas públicas em segurança alimentar e nutricional (SAN), e em grande medida esta construção foi impulsionada pela luta das mulheres. Uma luta por igualdade de gênero aliada à exigência de políticas universais na construção do direito à alimentação. A importância das mulheres em segurança alimentar e nutricional pode ser atestada tanto pela liderança das nossas então presidentas do CONSEA — Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, Maria Emília Pacheco e Elisabetta Recine na resistência ao desmonte das políticas públicas de SAN depois de 2016, quanto pela força e sabedoria popular das guardiãs das sementes da paixão, nos bancos comunitários de sementes no semiárido nordestino.”
Para pensar na construção de sistemas alimentares saudáveis, justos e sustentáveis é preciso ter como ponto basilar a questão de gênero. Abraçar esta perspectiva é fundamental para reconhecer a trajetória das mulheres neste campo político. A transformação se faz possível ao olhar para múltiplas fontes e formas de saberes, que sejam confluentes ao mesmo propósito: promover justiça social, incluindo a igualdade, o pleno reconhecimento e participação das mulheres como agentes políticos e de mudança.