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Perspectivas de ação climática para a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza — Reflexões por Ricardo Abramovay

Sistemas alimentares
30.10.2024

Uma parceria entre o Governo do Brasil, por meio do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, o Instituto Clima e Sociedade e o Instituto Ibirapitanga, foi responsável pela realização do evento “Perspectivas de ação climática para a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza”, no dia 05 de setembro, no Museu do Amanhã. As discussões tiveram como pano de fundo a criação da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, explorando como políticas eficazes de combate à fome e à pobreza podem trazer resultados significativos na adaptação e mitigação das mudanças climáticas.

Ricardo Abramovay, Professor titular da Cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública da USP e conselheiro do Instituto Ibirapitanga participou do evento trazendo reflexões importantes e atualizadas sobre a intersecção entre a crise climática e os sistemas alimentares vigentes. O Instituto Ibirapitanga compartilha a seguir o texto completo, que baseou a fala de Ricardo Abramovay.

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O ponto de partida para esta discussão é o reconhecimento de que, nos últimos 50 ou 60 anos, houve um progresso global extraordinário no combate à fome, resultado de conquistas científicas fundamentais, mas também, como gosta de sublinhar Amartya Sen, do avanço da democracia. 

Em países democráticos, fome é inadmissível. A inspiração antidemocrática do fanatismo fundamentalista que precedeu o governo atual recolocou o Brasil no Mapa da Fome, do qual agora estamos felizmente saindo graças à reconstrução dos instrumentos de política pública voltados à luta contra a fome e à pobreza. E aqui é fundamental reconhecer a contribuição de Tereza Campello, enquanto Ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, na construção dos instrumentos estatísticos e das políticas públicas que permitiram que tivéssemos saído do mapa global da fome em 2014. 

Mas sair do mapa da fome só pode ser encarado como ponto de partida e não de chegada. 

Do que estou falando?

Ao final dos anos 1950, quando teve início a Revolução Verde, um em cada três habitantes do mundo passava fome. Hoje é uma vergonha, diante da magnitude da riqueza global, que ainda haja quase 800 milhões de pessoas passando fome, mas isso representa um em cada dez habitantes. É um progresso extraordinário.

No entanto, imaginar que este progresso aponta o caminho para o futuro é escamotear a constatação hoje generalizada de que o sistema agroalimentar se tornou vetor decisivo de alguns dos mais graves problemas socioambientais contemporâneos. E é importante reconhecermos que o Brasil está no epicentro deste sistema.

O sistema agroalimentar contemporâneo responde por um terço das emissões de gases de efeito estufa, é o mais importante vetor de erosão da biodiversidade e está na origem de algumas das mais graves modalidades atuais de poluição. Além disso, seus impactos sobre a saúde humana (apesar de sua extraordinária capacidade de oferecer calorias e proteínas) é cada vez mais destrutivo.

Na raiz destes problemas está a tríplice monotonia do sistema agroalimentar global. Abordamos o tema num Policy Brief que a Cátedra Josué de Castro e o Instituto Comida do Amanhã apresentaram à Task Force 3 da presidência indiana do G20, no ano passado. 

Os dados são os seguintes.

A humanidade conhece sete mil produtos comestíveis dos quais 400 são cultiváveis. Apesar desta gigantesca diversidade, as tecnologias que dominaram o sistema agroalimentar até aqui fazem com que 75% das calorias por ele fornecidas venham de apenas seis produtos: arroz, trigo, milho, batata, soja e cana-de-açúcar. 

Já que esta mesa está interessada em finanças é importante lembrar que os gigantescos subsídios recebidos pela agricultura globalmente estão igualmente concentrados. Nos EUA, seis produtos recebem mais de 90% dos subsídios. No Brasil a soja ocupa 2/3 de nossa superfície agrícola e recebe 51% dos créditos oficiais. Se incluirmos o milho, chega a 71%. E com subsídios imensos.

Esta monotonia ameaça a segurança alimentar global. Estes produtos estão concentrados nas regiões mais suscetíveis aos eventos climáticos extremos, como a seca do ano passado na Argentina, a seca atual na Amazônia e no Cerrado e as chuvas no Rio Grande do Sul, mas também eventos extremos nas regiões produtoras dos EUA, da Europa, da Índia e da China o demonstram. É um sistema de alta produção e cada vez mais baixa resiliência. Portanto, é um desafio difícil, mas incontornável: os investimentos têm que se voltar à diversificação do sistema agroalimentar.

A segunda monotonia refere-se aos animais. 40% dos grãos e 70% da superfície fora dos desertos e geleiras voltam-se à oferta de proteínas animais. 

Como mostra nosso Policy Brief publicado pela Task Force 1 do G20 sob presidência brasileira, na produção animal (e sobretudo na oferta de aves e suínos) também predomina a monotonia genética em criações concentracionais altamente dependentes do consumo em larga escala de antibióticos. 70% dos antibióticos que a humanidade produz destinam-se a animais. O resultado é o avanço da resistência aos antimicrobianos, que a Organização Mundial da Saúde alerta como uma das maiores ameaças à saúde global.

E isso num contexto em que os guias alimentares do Brasil, do México, da Colômbia, de outros países latino-americanos, e agora (sob influência do guia alimentar brasileiro) também o da Índia, preconizam não a eliminação, mas a redução no consumo de carnes, que é muito maior do que as necessidades metabólicas das pessoas.

Ao fazer menção aos guias alimentares, devo citar o pioneirismo do guia brasileiro, que completa dez anos e por aí chego à terceira dimensão da monotonia que é a das dietas. O mundo vive uma pandemia global de obesidade, derivada fundamentalmente da irresponsabilidade da indústria alimentar que segue oferecendo produtos ultraprocessados altamente prejudiciais à saúde humana.

O resultado desta tríplice monotonia é a explosão do que a FAO, a Fundação Rockefeller, o Banco Mundial e o Food System Economics Commission chamam de custos ocultos do sistema agroalimentar. Se o sistema agroalimentar pagasse pelas emissões, pela erosão da biodiversidade, pela poluição, pelas doenças originadas na pobreza da qualidade que oferece, estes custos seriam superiores a tudo o que o mundo paga hoje para se alimentar.

Três conclusões derivam dessa afirmação:

(i) O sentido geral e o objetivo maior do sistema agroalimentar global não pode ser aumentar calorias e proteínas. Isso nós já sabemos fazer e estamos fazendo de forma incompatível com a manutenção dos serviços ecossistêmicos dos quais dependemos. O mais importante é diversificar a agropecuária vinculando a oferta de seus produtos a práticas regenerativas daquilo que até aqui tem sido sistematicamente destruído. 

(ii) Isso supõe introduzir a biodiversidade no interior da produção agropecuária. A inovação científica e tecnológica não pode mais ser centrada no potencial das sementes (seed-centric, para usar a expressão de Rattan Lal, o mais importante especialista em solos da atualidade) e sim na resiliência dos ecossistemas da produção agropecuária diversificada.

(iii) Combater a fome e a pobreza é apenas o ponto de partida para uma ambição maior que tem que ser a nossa no antropoceno e da qual o Brasil pode exercer a liderança global. Trata-se da transformação ecológica do sistema agroalimentar.

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