Quatro lideranças de organizações negras refletem sobre o Ministério da Igualdade Racial

Hédio Silva, coordenador executivo do Idafro — Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-brasileiras
A recriação no terceiro governo Lula da pasta da igualdade racial oficialmente como Ministério é um marco na luta do movimento negro, diante de um histórico de negação do racismo estrutural como marca profunda na formação do país.
A memorável posse de Anielle Franco como ministra da Igualdade Racial é um importante resultado de movimentos, organizações e indivíduos que lideraram o processo de enfrentamento ao racismo, historicamente e mais recentemente, diante do desmonte de políticas públicas do governo Bolsonaro.
Anielle é fundadora do Instituto Marielle Franco, organização apoiada pelo Ibirapitanga, que atua como centro de referência para a produção de ferramentas de engajamento, formação e incidência política para o fortalecimento da população negra, feminina e LGBTQIAP+, bem como no combate à violência política. A mobilização do instituto em todo país contribuiu para o aumento da presença de mulheres negras na política nos últimos anos, construindo e expandindo o legado de Marielle Franco.
Neste momento de maior espaço para o debate e diálogo em torno da questão racial no campo institucional, o compromisso firmado entre governo e sociedade civil por ações concretas que promovam a justiça racial aponta um novo tempo de participação negra nas decisões de gestão e políticas públicas.
Considerando esse marco na história brasileira, o Ibirapitanga ouviu quatro lideranças de organizações negras que apóia: Cida Bento, do CEERT — de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades; Lúcia Xavier, de Criola; Hédio Silva, do Idafro — Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras; e Terlúcia Silva, da Abayomi — Coletiva de mulheres negras da Paraíba.
Veja abaixo as reflexões das lideranças sobre o Ministério da Igualdade Racial no atual contexto e suas expectativas para o enfrentamento aos desafios, que estão colocados.
1. Qual o significado de reconstituir o Ministério da Igualdade Racial, anteriormente uma secretaria com status ministerial, nesse momento histórico do Brasil? O que a escolha de uma pessoa como Anielle Franco para liderar a pasta indica?
Cida Bento: É importante que o Ministério seja empoderado para incidir sobre os outros ministérios e assegurar que estão caminhando firmes, cada um em sua área, com ações afirmativas concretas para se tornarem mais equânimes. Dessa forma o Ministério da Igualdade Racial poderá cumprir sua mais relevante função. O desafio é evitar resolver de maneira fragmentada demandas da população negra. Cada pasta, seja da saúde, do planejamento, do trabalho, da educação, de moradia etc, deve estar constituída estruturalmente com equidade, no perfil diverso das pessoas que lá trabalham e tomam decisões, nos processos concepções e práticas que possibilitam a construção da equidade no seu cotidiano de trabalho. O Ministério deve ser o mais amplo e múltiplo possível, aprendendo com o próprio presidente a dialogar com os diferentes segmentos que compõem a sociedade civil organizada negra. As organizações em toda a sua diversidade devem se sentir reconhecidas na relação com a gestão pública, que é o Ministério.
Deve “sankofar”, ou seja, aprender com o passado (muita história rolou, inclusive no campo de políticas públicas para termos hoje um Ministério como este), e a partir desta aprendizagem e dos desafios colocados por este nosso tempo histórico, construir o futuro((O conceito de Sankofa (Sanko = voltar; fa = buscar, trazer) origina-se de um provérbio tradicional entre os povos de língua Akan da África Ocidental, na região onde atualmente se situam Gana, Togo e Costa do Marfim)).
Lúcia Xavier: As eleições de 2022 não trouxeram apenas o debate sobre o modelo de Estado que queremos, mas também qual deve ser o equilíbrio entre os grupos sociais para que tenhamos relações sociais menos violentas e iníquas, especialmente para os grupos excluídos, a exemplo da população negra, dos povos indígenas, das mulheres e da população LGBTQIA+. Os grupos chamados de “identitários” têm uma proposta para o Brasil e deixaram claro ao votar no presidente Lula. Querem governos que implementem os direitos, respeitem as diferenças e garantam democracia.
O governo Lula acenou com o compromisso da inclusão e da proteção dos excluídos, assinalando como prioritário o enfrentamento do racismo no Brasil, ao implementar um ministério para a construção da igualdade racial. A sua voz de comando é fundamental e precisará ser incorporada por todos os ministérios em colaboração contínua com o MIR.
Anielle Franco tem todas as qualidades para o desenvolvimento da pasta e também está cercada de especialistas prontas a apoiá-la nos desafios que encontrar. É uma liderança capaz de mobilizar e engajar outros setores que ainda não foram capazes de abrir mão dos privilégios que o racismo traz, para construir a igualdade. Bem como, representar diferentes setores da população negra que clamam por justiça. É uma liderança legítima dos movimentos negros e de mulheres negras.
Hédio Silva: O fato novo tem a ver com a “constitucionalização” do princípio das ações afirmativas, decorrente da ratificação da “Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância”, recepcionada pelo sistema jurídico brasileiro com status de emenda à Constituição. Lembremos que quando do julgamento da ADPF 186, sobre ações afirmativas, bem como das leis e julgados do STF que as ratificaram, tratava-se de uma interpretação de princípios constitucionais, sem que houvesse previsão expressa das ações afirmativas no texto constitucional.
Com a ratificação da aludida Convenção Interamericana, o Ministério da Igualdade Racial passa a contar com um poderoso (e inquestionável, do ângulo constitucional) arcabouço jurídico pró igualdade material e igualdade de oportunidades e de tratamento em todas as searas da administração pública, setor privado e relações interpessoais. O desafio será investir pesadamente na formulação, execução e monitoramento de políticas interseccionadas com as diferentes áreas de competência da União, ao tempo em que subsidia, impulsiona, fortalece e se articula com os demais entes federativos.
A ministra Anielle Franco possui trajetória pública, além de arrojada presença digital e identidade com o público jovem, nomeadamente as mulheres e jovens negros. Para além do apelo simbólico, será imperioso que a ministra possa contar com assessoria técnica qualificada, experiente e familiarizada com a volumosa produção acadêmica sobre políticas públicas racialmente igualitárias, aplicáveis aos mais diferentes quadrantes da atuação estatal. Além do vasto acervo de práticas exitosas espalhado por vários municípios do país.
Terlúcia Silva: Considero que reconstruir a pauta racial no âmbito governamental com a criação de um ministério é muito significativo, uma vez que sendo uma estrutura desse porte, significa que haverá recursos para a realização do trabalho. Mas é preciso reconhecer que não será possível fazer grandes realizações, penso que o maior passo que está sendo dado pelo governo Lula diz respeito ao simbólico, aquilo que a gente precisa ver evidenciado que é o respeito ao povo negro, aos povos tradicionais e a afirmação do governo via Ministério, que estes terão espaço no governo e que serão vistos/tratados como cidadãos de direitos. Contudo, apresento como falha essa pouca representatividade das diferentes regiões do Brasil, como o Nordeste e o Norte, que historicamente possuem acúmulo de lutas e resistência no enfrentamento ao racismo.
A indicação de Anielle também significa essa afirmação do respeito à memória das pessoas negras. Acho que ela tem um grande desafio pela frente nesse recomeço, uma vez que muita coisa que levou anos para ser construída foi destruída pelos dois governos anteriores. É preciso ampliar o diálogo com a sociedade civil, que é diversa, ouvir os segmentos para além dos que estão no eixo Sul-Sudeste.
2. Na sua visão, quais devem ser as prioridades do Ministério da Igualdade Racial?
Cida Bento: Se valendo das manifestações firmes e explícitas de Lula sobre trazer a equidade racial para o governo federal, o Ministério pode contribuir na definição de normativas e processos, que favoreçam o desenvolvimento de um plano de ação construído com cada um dos outros ministérios.
Com intencionalidade e de maneira sistêmica, todos os ministérios devem definir ações afirmativas que possibilitem assegurar profissionais negras/os no quadro de pessoas e de lideranças, no cadastro de fornecedores e prestadores de serviço, no orçamento, na concepção e linhas de ação das áreas estratégicas de cada pasta, nas relações com todos os diferentes segmentos da sociedade brasileira. Isto deve estar formalizado num planejamento com metas, prazos e sistema de monitoramento.
Lúcia Xavier: São tantas as demandas da população negra, especialmente em um contexto de violência e violação dos direitos agravados pelo desmonte das políticas públicas e pelas diferentes crises causadas pela pandemia da covid-19. Nesse sentido, a principal ação que demandará os esforços de todos os ministérios será a de erradicação imediata da fome e da extrema pobreza que atinge principalmente a população negra, com políticas humanitárias e assistenciais. Essas políticas servem para enfrentar as calamidades como a fome, mas não podem ser entendidas como a única forma de efetivar direitos e promover a cidadania. É preciso mais.
É preciso vencer os resultados do racismo demonstrado na posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, homem branco, trabalhador eleito pela terceira vez presidente do Brasil, que recebeu a faixa de Aline Sousa, mulher negra, terceira geração de uma família de catadores de materiais recicláveis. É preciso dar respostas rápidas para os problemas de trabalho, moradia, educação, saúde, ambiente, justiça, segurança, direitos civis, participação, entre outros direitos que são negados cotidianamente.
Para isso, é preciso impulsionar e inovar nos procedimentos, normas, legislações e políticas públicas que de fato erradiquem o racismo patriarcal cisheteronormativo e que estabeleçam permanentemente os direitos e a cidadania da população negra.
A população negra, em especial as mulheres negras, já vem ao longo dos anos produzindo soluções inovadoras que, inclusive, empurram a democracia brasileira para outro patamar. Esse legado pode ser incorporado como políticas para a reparação, o desenvolvimento, a erradicação do racismo e todas as formas de discriminação. O que precisamos agora é produzir políticas que nos levem para o futuro sem racismo.
Hédio Silva: Alargar o âmbito de incidência de políticas racialmente igualitárias; mobilizar e subsidiar os entes federativos e o setor privado; articular-se com segmentos do Judiciário, Ministério Público, OAB e Defensorias Públicas, os quais vêm acumulando valiosas experiências de implementação de programas e ações afirmativas; agilizar a titulação das comunidades quilombolas; inventariar os bens e o patrimônio cultural afro-brasileiro, material e imaterial, de modo a fiscalizar e garantir a integridade e visibilidade deste; regulamentar, disponibilizar conteúdos e assegurar eficácia aos preceitos da LDB — Lei de Diretrizes e Bases, que tratam da história e cultura africana e da tolerância como princípio de política educacional.
Terlúcia Silva: É preciso desenvolver uma ação estratégica interministerial, para além dos Ministérios da Mulher e dos Direitos Humanos, para que políticas públicas sejam efetivadas e que enfrentem a pobreza, a fome e a violência racial contra mulheres e a juventude negra, racismo religioso, entre outros. O ministério não deve focar suas ações em atividades que os movimentos sociais podem realizar, precisa focar sua atuação nas questões macro.
3. Como a sociedade civil pode colaborar com o Ministério para fortalecer a luta antirracista?
Cida Bento: A partir de quatro frentes:
(1) Subsidiando com seus acúmulos, as políticas, práticas e concepções sobre equidade racial em instituições, para acelerar os processos e programas do Ministério que visam equidade;
(2) Participando das conferências municipais, estaduais e federais, que envolvam um diálogo estruturado entre gestores públicos e sociedade civil organizada, sobre passos a serem dados e metas a serem monitoradas, no caminho da equidade e no combate ao racismo em intersecção com gênero;
(3) Fazendo pressão e advocacy permanente sobre os governos, em suas diferentes instâncias, para que permaneçam firmes no combate ao racismo em intersecção com gênero, cumprindo os compromissos assumidos na campanha eleitoral e explicitados nos planos de governos; e
(4) Vigiando. Parte do nosso povo brasileiro explicitou sua identificação com o uso da força pelo governo, para impor uma cultura, uma religião, um gênero, o pensamento único impostos a ferro e fogo. É preciso fazer cumprir a Constituição e todas as normativas que asseguram o caminho para a justiça racial e equidade. A equidade é o coração do ideário democrático. Atacar os programas de equidade é atacar o sistema democrático. É atacar as instituições que sustentam a democracia. Vigiar e reagir sempre que “emerja o monstro da lagoa” como nos diz Chico Buarque.
Lúcia Xavier: A sociedade civil terá papel fundamental na sustentabilidade das ações do Ministério da Igualdade Racial e no avanço das políticas de erradicação do racismo patriarcal cisheteronormativo. Sobretudo, em relação aos debates sobre a robustez das políticas propostas que são sempre minimizadas por setores importantes da sociedade acerca do acesso à educação, ao trabalho e ao incentivo financeiro para ações voltadas para as juventudes; bem como em relação às medidas relacionadas ao encarceramento, às políticas de drogas e às narrativas racistas.
Outro papel importante da sociedade civil progressista é a colaboração para o enfrentamento do racismo institucional no sistema de saúde, na justiça e na educação, bem como na ampliação de medidas voltadas para a defesa e garantia do direito à vida para a população negra, em especial para as mulheres negras.
Hédio Silva: A agenda das ações afirmativas foi parcialmente acolhida e impulsionada nos primeiros governos Lula e no governo Dilma, mas foi construída e legitimada historicamente pelo movimento negro brasileiro, não raro enfrentando hostilidades e equívocos de segmentos progressistas, democratas ou liberais. O movimento negro, que nas últimas décadas formou uma elite intelectual de altíssimo nível, deve manter seu protagonismo e preservar sua autonomia ao tempo em que dialoga com o governo federal, propõe diretivas, subsidia e contribui para a capilarização, legitimação social, efetivação e perenidade às políticas públicas e privadas de ação afirmativa. A aludida constitucionalização das ações afirmativas significa que elas possuem atributos próprios de políticas de Estado, não políticas de governo.
Terlúcia Siva: Estando disposta a dialogar, provocar o Ministério, monitorar a atuação não só do Ministério, mas do governo como um todo. Os movimentos sociais não podem se contentar com o mínimo.
Sobre as organizações e suas lideranças:
CEERT — Centro de estudos das relações do trabalho e desigualdades
Criado em 1990, é uma organização não-governamental que produz conhecimento, desenvolve e executa projetos voltados para a promoção da igualdade de raça e de gênero.
Cida Bento é doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo e precursora da tese “Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público”. Conselheira do CEERT, atua no fortalecimento da equidade racial e de gênero. É também professora visitante na Universidade do Texas, nos Estados Unidos, e colunista da Folha de São Paulo.
Criola
É uma organização que tem como missão instrumentalizar mulheres, adolescentes e meninas negras para o enfrentamento ao racismo, sexismo, lesbofobia e transfobia, para a melhoria das condições de vida da população negra e das mulheres negras, em especial, em uma perspectiva integrada e transversal.
Lúcia Xavier é ativista e tem dedicado a sua vida para a efetivação dos direitos, a erradicação do racismo patriarcal e todas as formas de discriminação. É assistente social, coordenadora geral e co-fundadora de Criola.
Idafro — Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-brasileiras
É uma organização sem fins lucrativos, cuja missão é a defesa da liberdade de crença, a luta pela superação do racismo religioso e a promoção dos direitos das religiões afro-brasileiras, seu acesso à Justiça, à fruição de todos os benefícios legais outorgados às organizações, sacerdotes/sacerdotisas, templos, fiéis e adeptos das religiões afro-brasileiras, bem como à defesa do patrimônio cultural, material e imaterial herdado a partir dos povos africanos escravizados e seus descendentes.
Hédio Silva foi Secretário de Justiça do Governo do Estado de São Paulo. Doutor e mestre em Direito pela PUC-SP e advogado das Religiões Afro-brasileiras no STF. Atualmente é coordenador executivo do Idafro.
Abayomi — Coletiva de Mulheres Negras na Paraíba
É uma organização da sociedade civil de mulheres negras feministas, que são ou estão no estado da Paraíba, Brasil. É um espaço autônomo de articulação, formação e participação política, com ações de combate ao racismo, sexismo e a LBTfobia, em defesa do bem viver das mulheres negras.
Terlúcia Silva é natalense, radicada na Paraíba. Mestra em Ciências Jurídicas e graduada em Serviço Social (UFPB), feminista negra, atua no enfrentamento ao racismo, ao sexismo e LBTfobias com inserção no movimento de mulheres negras local, regional e nacionalmente, idealizadora e integrante da Abayomi — Coletiva de Mulheres Negras na Paraíba. É pesquisadora na temática da violência contra as mulheres e interfaces com o racismo.