Não foi à toa: raízes históricas do racismo religioso e as eleições de 2022

Por Tássia Mendonça, analista do programa Equidade racial do Ibirapitanga
“Se a cultura africana é a principal matriz da cultura brasileira, a religião constitui o ponto focal de onde essa cultura se irradiou.” Abdias Nascimento
Em março deste ano, antes mesmo do início do período oficial de campanha eleitoral, o atual presidente já discursava afirmando que a disputa no pleito de 2022 não seria entre a direita e a esquerda, mas sim entre “o bem e o mal”. Nos últimos meses, esse discurso se aprofundou e os ataques, antes indiretos às religiões de matriz africana, se consolidaram em uma retórica de perseguição aos povos de Terreiro. A adoção deste maniqueísmo, que contrapõe agendas políticas em torno de uma narrativa moralizante, está enraizada no contexto social brasileiro, tanto do ponto de vista histórico quanto estrutural.
Ao longo dos primeiros séculos de ocupação portuguesa na América do Sul, toda ritualística e religiosidade dos povos indígenas e africanos foi sistematicamente criminalizada e perseguida. As associações entre essas tradições culturais e o “mal” remontam à atuação do Tribunal da Inquisição, entre os séculos XVI e XVIII, estendendo-se até as leis de proibição da “feitiçaria” e do “curandeirismo”, esta última presente no código penal até os dias de hoje.
A Constituição brasileira de 1824 instituiu o catolicismo como religião oficial do Império, criminalizando a celebração de qualquer outra manifestação de fé – pública ou privada. A partir de 1890, após a instituição da República, o estado passa a ser laico, o catolicismo perde o status de religião única e o direito à liberdade religiosa se torna inviolável. Essa garantia do direito ao culto, entretanto, não era universal, uma vez que a mesma legislação que protegia a profissão de fé, proibia a prática do “espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar talismãs e cartomancias”.
Se por um lado, às vertentes do protestantismo cristão e outras manifestações religiosas monoteístas e ocidentais foi garantido o direito ao culto, as tradições culturais e espirituais das matrizes africanas permaneceram perseguidas e criminalizadas ao longo do século XX. No estado da Bahia, por exemplo, até meados da década de 70, as casas de matriz africana dependiam de autorização policial para funcionar. Todo esse panorama de criminalização da cultura negra se alinha a um arranjo mais amplo, o qual consolidou, no pós-abolição, uma cidadania de segunda classe aos africanas/os e suas/seus descendentes.
Lideranças de Axé, históricas e atuais, têm chamado a atenção para a relação intrínseca entre a perseguição aos cultos de matriz africana e o racismo estrutural. Desde as batidas policiais em Terreiros, casas de Umbanda e Candomblé, no início do século XX, até os mais recentes ataques que essas tradições têm sofrido, importa compreender que a violência destinada aos cultos de matriz africana não pode ser classificada apenas como intolerância religiosa.
Em 1997, o então senador da república Abdias do Nascimento, discursou na tribuna do congresso nacional, chamando atenção tanto para a centralidade dos cultos de matriz africana para a sociabilidade negra, quanto para as causas históricas que levaram e ainda levam à sua criminalização:
“É na prática religiosa que se encontram os elementos constitutivos da visão de mundo e da cosmogonia africanas, onde se expressam com maior profundidade e clareza os traços fundamentais que caracterizam a maneira africana de ser e estar no mundo. Não foi à toa que os europeus, ao invadirem e ocuparem o continente africano, buscaram sempre destruir ou, pelo menos, neutralizar as manifestações religiosas, que percebiam claramente como o principal esteio ideológico a sustentar a identidade individual e de grupo, sem a qual os africanos seriam presa fácil da exploração e da inferiorização humana promovidas pelos ‘colonizadores’.”
Nomear os ataques às religiões de matriz africana, como expressões de racismo religioso, é relevante na medida em que o que está em jogo não é apenas a violação do direito de culto, mas a perseguição aos modos de vida, de ser e de existir do povo negro em diáspora. Não foi e não é à toa que as casas de Axé são invadidas. Elas são um quilombo existencial que permitiu às comunidades negras a perpetuação do seu fôlego de vida, da sua maneira de existir e pensar, seja enquanto sujeitos individuais, seja como povo e comunidade.
Ao longo da campanha eleitoral de 2022, o uso de uma linguagem maniqueísta, associando diferentes campos políticos como inimigos em uma guerra moral, correspondendo a forças do bem e do mal, pôs em evidência a intrínseca relação que a perseguição aos cultos afro-brasileiros possui com uma agenda conservadora e antidemocrática. Essa retórica alimenta a vulnerabilidade a que estão submetidos os povos de Terreiro, acirrando as desigualdades do nosso país.
Dada a centralidade que as comunidades e povos de Terreiro possuem para a resistência, memória e representatividade simbólica da população negra, o Instituto Ibirapitanga, através das doações do programa Equidade racial, prioriza organizações e iniciativas que enfrentam o racismo religioso e seus efeitos.
O atual conjunto de apoios do Instituto com esse sentido inclui três esforços. A transposição do Acervo Nosso Sagrado para o Museu da República, no Rio de Janeiro, sob gestão compartilhada com o Grupo de Trabalho de Terreiros, é uma experiência ímpar, ao responsabilizar o Estado pelas violações cometidas contra as religiões de matriz africana e visibilizar o legado e patrimônio cultural afro-brasileiro. O apoio ao CENARAB – Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira, sob a liderança de Makota Celinha, promove, por sua vez, uma série de iniciativas de valorização do patrimônio cultural de Terreiro, de preservação da memória e da luta por direitos, principalmente por meio da regularização de terreiros. Mais recente, a doação ao Idafro – Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras, busca apoiar uma organização que atua no campo da litigância estratégica, sob a liderança do Dr. Hédio Silva Jr., advogado que defendeu o direito ao abate religioso das casas de Axé no Superior Tribunal Federal. Em seu trabalho, o Idafro também defende casas, lideranças e adeptas/os das religiões de matriz africana cujo direito de culto está sob ameaça, como em casos de perda da guarda de responsáveis em razão do seu credo, ataques e deslocamentos forçados.
Essas são algumas das organizações e movimentos da sociedade civil que lutam pela efetivação do projeto democrático, para que o direito de culto – e, em si, a própria vida – não esteja restrito a apenas uma forma de ver e estar no mundo. Em recente manifesto, representantes e lideranças de religiões de matriz africana se posicionaram, demandando das candidaturas negras e democráticas um compromisso em defesa dos povos e comunidades de Terreiro. Enquanto estas tradições culturais estiverem sob ameaça, estará evidente que a cidadania negra resta como um projeto inconcluso.
No passado, a resistência ao tráfico transatlântico de pessoas africanas e à escravidão legal foi marcada pelo som de tambores escondidos nas matas, de corpos em transe que por séculos se recusaram a esquecer sua origem e ancestralidade. O caminho para democracia mora também na ousadia desse legado, em reconhecer no passado as estratégias que ainda hoje mobilizam futuros possíveis. Como diz o provérbio africano: “Quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos de onde vens.”
Motumbá!
Tássia Mendonça
Yawo d’Oxossi do Ilê Axé Omorodé, dirigido por Iya Nitinha d’Oxum.