Perguntas e respostas: três pontos sobre a questão racial nas eleições de 2024

O debate público em torno das relações raciais no Brasil tem nos ciclos eleitorais momentos chave de análise que podem apoiar a compreensão não só da temperatura dessa discussão, mas também da situação das abordagens de enfrentamento ao racismo em suas diferentes dimensões, incluindo a política institucional. Desse cenário também é possível acompanhar e apontar direções para o aprimoramento de estratégias e mecanismos institucionais de ampliação, proteção e qualificação da representatividade política da população negra.
Considerando a relevância desse momento, convidamos Luiz Augusto Campos a responder a três perguntas para levantar percepções iniciais sobre o ciclo eleitoral de 2024.
Luiz Augusto Campos é professor de Sociologia e Ciência Política no Iesp-Uerj — Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde coordena o Gemaa — Grupo de estudos multidisciplinares da ação afirmativa. É autor e co-autor de diversos artigos e livros sobre raça e política, entre eles “Raça e eleições no Brasil” e “Ação afirmativa: conceito, história e debates”. É também editor-chefe da revista Dados.
Neste perguntas e respostas, Luiz Augusto Campos nos ajuda a entender um pouco mais sobre o papel dos partidos, o debate sobre religião e outros temas que envolvem eleições e políticas em âmbito municipal, articulados à questão racial.
Ibirapitanga: O contexto dessas eleições municipais foi marcado pela promulgação da Emenda constitucional 133/2024, que estabelece novas regras para os partidos políticos na aplicação de recursos destinados às cotas raciais em candidaturas. O que esse processo nos informa sobre o papel dos partidos na representatividade política da população negra e os obstáculos à promoção de justiça racial nesse ambiente?
Luiz Augusto Campos: Ao contrário do que o senso comum acredita, os partidos políticos têm uma enorme força nas eleições brasileiras. Sobretudo, quando levamos em conta as chances de grupos discriminados como homens negros, mulheres brancas, mulheres negras, dentre outros. São os partidos que definem quem pode se candidatar, a distribuição da maior parte dos recursos de campanha, o tempo de horário gratuito de TV e rádio etc.
Desde 2018, uma série de medidas vêm sendo adotadas para mitigar as desigualdades raciais. Apesar desses esforços, os partidos que não obedeceram essas medidas (quase todos) vêm sendo recorrentemente anistiados. A Emenda constitucional 133/2024 é uma tentativa de simplificar as regras de distribuição de recursos, destinando no mínimo 30% do Fundo especial de financiamento de campanha e do Fundo partidário a candidaturas negras. Ela também estabelece um sistema de compensação dos recursos previstos, porém não investidos, nas eleições passadas. Para além disso, ainda é válida a Emenda constitucional 111/2022 que recompensa partidos que elegeram mais pessoas negras nas eleições anteriores.
Contudo, as sucessivas anistias e mudanças nas regras vêm limitando sobremaneira o impactos dessas medidas. Outro problema crônico tem a ver com a falta de rigor na autodeclaração racial das candidaturas, muitas vezes registradas por terceiros. Tudo isso faz com que os avanços na representatividade sejam lentos e tímidos a cada eleição. Outro problema tem a ver com as próprias estratégias dos partidos ao ora pulverizarem, ora concentrarem os recursos em candidaturas negras. Tudo isso mostra que a diversificação dos diretórios partidários é um ponto central para reformas futuras.
Ibirapitanga: Outro elemento de contexto é a ampliação da abordagem interseccional entre candidaturas negras e religiosidade. Diversas candidaturas negras visibilizaram o pertencimento a religiões de matriz africana e de diferentes denominações evangélicas e/ou incluíram pautas relacionadas à religião. Enquanto continuidade de uma prática que já vem crescendo desde eleições anteriores, quais são as permanências e inflexões que podem ser destacadas no ano de 2024 nesse tema?
Luiz Augusto Campos: Como o TSE não computa a religiosidade dos candidatos e candidatas em seus registros oficiais, não temos dados rigorosos que permitam detectar mudanças circunstanciais nas candidaturas de acordo com devoção. As análises disponíveis em geral utilizam diferentes elementos indiciais como o nome de urna da candidatura, muitas vezes precedido de termos como “pastor”, “padre”, “irmã”, “mãe” etc.; ou análises do material de campanha que inclua algum apelo religioso.
As pesquisas também vêm detectando um aumento das candidaturas com apelo religioso, sobretudo do chamado campo evangélico. Dentro desse grupo, vem aumentando também candidaturas de negros e negras, ainda que seja difícil determinar em que medida elas politizam a questão racial em diálogo com a religião. Vale lembrar, no entanto, que esse dado deve ser lido com cautela, pois candidaturas católicas tendem a lidar de modo mais ambíguo com o apelo religioso, bem como candidaturas de religiões afro-brasileiras, historicamente perseguidas.
Para além dessas complexidades, a inclusão de negros e negras na representação política parece hoje se dar mais por via de candidaturas evangélicas do que de denominações afro-brasileiras. Isso coloca desafios particulares para a militância antirracista, já que evangélicos no Brasil tendem a estar em partidos mais à direita do espectro político e ser mais distantes dos debates raciais. Isso não exclui, por exemplo, a emergência de lideranças evangélicas progressistas, muito menos a eventual eleição de lideranças negras de outras denominações. Mas exige maior diálogo e abertura em relação a essa complexas intersecções.
Ibirapitanga: Quais outros temas que envolvem prefeituras e as políticas em âmbito municipal, articulados à questão racial, foram destaque no debate público durante essas eleições?
Luiz Augusto Campos: Em geral, eleições municipais são mais focadas nos temas locais, o que tradicionalmente excluiu questões vistas como “mais gerais” ou “nacionais”. As eleições de 2024, no entanto, vem mostrando que as fronteiras entre esses dois enquadramentos são bem mais nebulosas. A maior intensidade e frequência de desastres ambientais, por exemplo, vem jogando o debate sobre mudanças climáticas para o nível municipal, ainda que a saliência desse tema esteja longe da atenção que ele merece. O mesmo vale para as questões raciais, de gênero, sexualidade etc. Embora elas remetam a desigualdades estruturais da sociedade brasileira, suas expressões concretas são locais. Os principais mecanismos de reprodução das desigualdades raciais e de gênero, como os sistemas básicos de educação e saúde, são geridos pelos municípios. Tudo isso torna urgente a municipalização dos debates raciais e de gênero nas eleições deste ano e dos próximos.
O desafio colocado a partir deste ano é levar às eleições municipais as pautas que direta e indiretamente impactam a agenda antirracista e, sobretudo, garantir uma participação mínima de negros e negras na administração local. Ainda que tímidos, existem avanços em termos de inclusão política na esfera federal, mas estes são ínfimos no nível municipal. É preciso uma agenda de mitigação das desigualdades raciais no âmbito local.