Viver sem medo e construir o bem-viver: pós-eleições 2022 na perspectiva racial

Por Diana Mendes, gestora de portfólio do programa Equidade racial do Ibirapitanga
Audre Lorde nos ensina a importância da continuidade quando diz que na batalha precisamos saber que nossa contribuição é parte de uma história que já vem sendo escrita pelas mãos e pelo trabalho de mulheres na luta por direitos. Essa reflexão é crucial para entender que o acesso da população negra à política institucional é parte de um contexto que não começou agora.
Expandindo essa luta que remonta a outras décadas, em 2020, uma ação coletiva de incidência de organizações do movimento negro — PANE – Plataforma Antirracista nas Eleições — impulsionada pelo Instituto Marielle Franco em parceria com o Movimento Mulheres Negras Decidem, a Coalizão Negra por Direitos e a Educafro pressionou para uma decisão histórica do TSE — Tribunal Superior Eleitoral: a divisão do fundo eleitoral e do tempo de rádio e TV pelos partidos proporcional à quantidade de candidaturas negras.
Essa decisão culminou em uma possibilidade maior de distribuição, tanto em visibilidade, quanto em recursos para candidaturas negras. Ainda que esse mecanismo de forma estrutural represente um direito assegurado às candidaturas negras, por outro lado tem enfrentado problemas, como a prática de fraudes a partir da autodeclaração.
Este ano, tivemos um recorde de candidaturas negras, com aumento de cerca de 4% em relação à 2018 (em números absolutos, 13.732). No entanto, é preciso aprofundar o olhar sobre esses dados, porque há casos de discordância entre a autodeclaração de candidatas/os como pretas/os e pardas/os e a leitura que a sociedade faz de sua cor/raça (heteroidentificação). Uma análise realizada por Luiz Augusto Campos e Carlos Machado mostra que a discrepância em 2022 foi de 11,8% representando 60 deputados que não são socialmente percebidos como negros. Um exemplo que inclusive impactou o resultado foi a disputa para o governo na Bahia, na qual ACM Neto (União Brasil) foi derrotado, sendo que era o candidato mais bem avaliado nas pesquisas. ACM Neto teve sua candidatura impactada especialmente após a mobilização do movimento negro ao apontar fraude na sua autodeclaração (que mudou de uma eleição para outra).
Além dos casos com maior repercussão, faz-se necessário produzir e acompanhar balanços sobre os resultados dessas eleições, a partir de dados do TSE compartilhados e desagregados, a exemplo do levantamento realizado pela Gênero e Número. A Câmara dos Deputados teve um aumento de mulheres eleitas (eram 15% em 2018 e são 18% em 2022). Quando falamos de mulheres negras, os números mais do que dobram: eram 13 deputadas em 2018 e agora 29. De forma geral, entre as mulheres eleitas, 64% são brancas, 32% são negras e 4% são indígenas. Já no Senado, temos a mesma quantidade de senadoras eleitas (14 no total). Por fim, no âmbito estadual, houve aumento também, de 163 para 190. Mulheres brancas praticamente mantiveram sua porcentagem, enquanto mulheres negras tiveram um aumento de 45% (em números absolutos, de 51 para 74).
Ainda que a lente acima seja sobre o aumento quantitativo de mulheres e, particularmente, de mulheres negras, o cenário realista nos convida a olhar para o qualitativo. Neste aumento estão contempladas apenas uma mulher indígena e uma mulher amarela enquanto deputadas estaduais (0,1% do total nas Assembleias), ou seja, a sub-representação persiste.
O aumento também não deve representar avanço efetivo nas agendas dos direitos das mulheres. Isso porque mais de 50% das deputadas federais eleitas são de espectro à direita. No Senado, há um fortalecimento de pautas ultraconservadoras e estaremos diante da casa legislativa mais violenta e menos receptiva aos direitos humanos dos últimos anos. Por outro lado, as duas mulheres negras mais votadas na Câmara são progressistas, com alcance nacional, histórico de luta e base de apoio nos movimentos sociais — Erika Hilton (256 mil votos) e Marina Silva (237 mil votos).
A importância da liderança delas nas tomadas de decisões políticas é tão grande quanto o desafio de mantê-las nesse espaço, pela violência política que se coloca cada vez mais corrente. Neste ano, foram abertos 83 procedimentos por violência política de gênero, segundo dados publicados pelo Ministério Público em uma cartilha sobre as eleições de 2022. A maior parte das denúncias recebidas diz respeito à violência moral e psicológica. Mas também há destaque para casos de violência econômica e estrutural, com atraso de recursos financeiros, e violência física.
Lélia Gonzalez reforçou que o nosso lema, especialmente enquanto mulheres negras, deveria ser de organização, para sermos movimentos de suporte às lideranças. E não seria diferente na política institucional. Os mais de 4 milhões de votos mobilizados pelo Quilombo nos Parlamentos, com 26 eleitas/os, mais de 230 mil votos pelo Estamos Prontas, com 2 eleitas, e mais de 500 mil votos pela Bancada Indígena são frutos dos movimentos negros, quilombolas, indígenas, universitários, LGBTQIA+, de mulheres e tantos outros.
São movimentos que foram fundamentais para defesa da democracia, que culminaram inclusive no resultado das eleições presidenciais. A diretriz de combate ao autoritarismo, à fome e às violências é pulsante nessa conjuntura política. A derrota do atual presidente nas urnas, representa o esforço da sociedade civil em arrancar raízes apodrecidas da história brasileira para plantar sementes, também por Marielle, que possam fazer vingar tantos novos frutos e direitos.
O caminho é longo, não acaba aqui, e os desafios são profundos. É fundamental fortalecer lideranças como a iniciativa da Escola de Ativismo e Formação Política – Beatriz Nascimento, realizada por Odara — Instituto da Mulher Negra. Além de continuar ampliando mecanismos de defesa de candidaturas e lideranças negras como na atuação do IDPN – Instituto de Defesa da População Negra, iniciativas apoiadas pelo Ibirapitanga em frentes que tendem a crescer nos próximos anos.
A visão de futuro de movimentos de mulheres negras não iniciou em 2022, já vem sendo gestada para a construção do bem-viver para toda a sociedade e tem no horizonte a liderança de uma futura presidenta negra. Na América Latina, a Colômbia já nos inspira e nos dá pistas no caminho com a eleição de Francia Márquez como vice-presidenta. Para ela, “vivir sabroso no es vivir con plata […] es vivir sin miedos”. Para nós, brasileiras e brasileiros, o momento atual nos energiza e orienta a continuar na luta, vigilantes pela democracia e em busca de uma sociedade mais justa, sem racismo, com alimento nas mesas e sem medo.