Pensar e ocupar politicamente pela experiência negra – a construção de um futuro possível

Prêmio Lélia Gonzalez, iniciativa voltada ao fomento à pesquisa na interface entre raça e política.
No Brasil, 55,4% da população se declara negra, de acordo com dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística((Dados extraídos da PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua trimestral, referentes ao 2º trimestre de 2020)). Ao analisar os espaços de representação na política institucional, no entanto, essa população é historicamente subrepresentada, chegando a menos de um quarto no Congresso Nacional.
Reverter o quadro requer ações contundentes e sustentadas de toda a sociedade, em suas diferentes esferas. Inclui no horizonte a ocupação negra dos mais variados espaços de construção de pensamento e de decisão política, proporcional a sua presença na população e comprometida com o enfrentamento ao racismo, que estrutura as desigualdades ao cindir a sociedade entre o privilégio branco e cerceamento de acesso a direitos por negras/os.
Reconhecendo o necessário caminho a ser trilhado, uma série de movimentos e iniciativas para incidir sobre essa realidade são conduzidas pela sociedade civil organizada em torno do antirracismo.
O Instituto Ibirapitanga está voltado a apoiar um conjunto de ações com esse intuito, que nos últimos dois anos têm produzido avanços a esse cenário dos seus diferentes e possíveis lugares de incidência.
Inspirado na intelectual, política, professora e antropóloga brasileira, o Prêmio Lélia Gonzalez de Manuscritos Científicos sobre Raça e Política é uma dessas ações. Está voltado a incentivar, por meio de recursos financeiros, a conclusão de trabalhos de mestrandas/os, doutorandas/os e recém-doutores/as dedicadas/os à pesquisa sobre a área de raça e política em perspectiva ampla, abrangendo reflexões sobre políticas públicas, eleições, partidos, representação política, militância, protestos, pensamento político, relações internacionais, política externa, comunicação política, teoria política, entre outros.
O Prêmio Lélia Gonzalez é realizado pela ABCP – Associação Brasileira de Ciência Política, em parceria com o Nexo Políticas Públicas e o Instituto Ibirapitanga e apoiado pela Fundação Tide Setubal e Open Society Foundations. Ele parte da premissa de que os estudos sobre a questão racial brasileira são centrais para reflexão acadêmica no país e fundamentais na denúncia do racismo e na articulação de políticas públicas para seu enfrentamento. Por isso, o Prêmio busca colaborar com uma resposta à fragmentação das pesquisas que partem da interface entre raça e política, fruto do racismo que também estrutura espaços acadêmicos. Ainda que haja uma nova geração de jovens pesquisadoras/es negra/os que conseguiram acessar esses espaços, há desafios para permanência, conclusão e divulgação dos resultados de suas pesquisas que trazem perspectivas fundamentais ao campo dos estudos sobre política.
Num contexto de enfraquecimento do sistema de apoio à pesquisa no país e, considerando que pesquisadores negras/os anteriormente já encontravam dificuldades nesse sentido, o Prêmio Lélia Gonzalez se apresenta como uma afirmação à valorização e à importância da sustentabilidade de pesquisas produzidas a partir da perspectiva negra, sobretudo no campo da Ciência Política.
Com significativas barreiras a se transpor no Brasil, a divulgação científica encontra no Nexo Políticas Públicas uma plataforma que reúne informações a partir de estudos e evidências de pesquisadores e público em geral. Compreendendo que as evidências têm papel fundamental na formulação, implementação e avaliação das políticas públicas e resultam diretamente da pesquisa acadêmica, a Nexo Políticas Públicas é voltada à produção acadêmica-jornalística. Promove a divulgação de achados de pesquisa sobre temas estruturais para o país, que tenham interface com a formulação de políticas públicas.
A plataforma conta com abordagem a políticas de ações afirmativas para o enfrentamento ao racismo estrutural no país, incluindo parceria com o AFRO – Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do CEBRAP – Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – apoiado pelo Ibirapitanga – além de buscar conexão com outros núcleos e centros de pesquisa ligados a pesquisadores negras/os e/ou que abordem a questão. O apoio do Instituto Ibirapitanga também dá suporte ao festival Nexo + Nexo Políticas Públicas, realizado em outubro, que abordou temas da conjuntura, políticas públicas e pesquisa, considerando sobretudo, mas, não apenas, a pandemia e as eleições municipais.
O cenário das eleições municipais de 2020 no Brasil está em um de seus momentos mais desafiadores, por atravessar o período da pandemia de Covid-19. Soma-se a isso um contexto de necessária maior visibilidade aos movimentos antirracistas, principalmente pelas mobilizações a partir do caso do assassinato de George Floyd, homem negro, por um policial branco, nos Estados Unidos, bem como de jovens e crianças negras por negligência e pela ação violenta da polícia militar, no Brasil. É neste mesmo ano que o Instituto Marielle Franco, organização apoiada pelo Instituto Ibirapitanga, lança a PANE – Plataforma Antirracista nas Eleições, que reúne suas ações e ferramentas voltadas a incidir sobre as estruturas do sistema político no Brasil. Na primeira ação, em parceria com Educafro, Movimento Mulheres Negras Decidem e Coalizão Negra por Direitos, realizou incidência política no TSE – Tribunal Superior Eleitoral pela distribuição proporcional de financiamento e tempo de propaganda para candidaturas negras nas eleições. A ação, encampada por outros diversos movimentos e mobilizações, foi bem-sucedida e a medida passa a valer para as eleições de 2022. No momento das eleições municipais de 2020, o Instituto Marielle Franco está trabalhando para influenciar os partidos a já implementarem as recomendações. Em outra linha de ação da PANE, o Instituto formulou a Agenda Marielle, um conjunto de compromissos para candidaturas que se inspiram na atuação da vereadora, com pautas e práticas feministas, antirracistas e populares a partir de seu legado. Em mais de 270 cidades de todo o país, 745 candidaturas se comprometeram com a Agenda Marielle.
Também sob à luz do legado da vereadora que teve a vida brutalmente ceifada em 2019, o Baobá – Fundo para Equidade Racial, lançou em 2019 o Programa de aceleração do desenvolvimento de lideranças femininas negras: Marielle Franco, apoiado pelo Instituto Ibirapitanga, em ampla ação de coinvestimento com a Fundação Kellog, Fundação Ford e Open Society Foundations. O objetivo do Programa Marielle Franco é garantir a presença de mais mulheres negras em espaços de poder e ampliar seu papel na luta antirracista. Fruto da forte capacidade de mobilização de recursos que o Baobá construiu, o Programa tem duração de cinco anos e pretende capacitar política e tecnicamente 120 novas líderes, além de fortalecer 20 organizações, grupos e coletivos por meio de bolsas, formação, coaching e criação de redes. Na primeira seleção, mais de 1000 mulheres e cerca de 200 organizações, grupos e coletivos, se interessaram pelos editais. Cerca de 500 projetos foram analisados, para chegar a 63 lideranças e 15 organizações selecionadas.
Uma das mais contundentes articulações para incidência política no atual cenário de crise das instituições democráticas no Brasil, a Coalizão Negra por Direitos é a expressão do admirável fôlego na participação política dos movimentos negros no país. Atuante nas pautas mais importantes que afetam os direitos da população negra, no período pré-eleições, além da parceria para a pressão ao TSE, a Coalizão lançou a campanha Vote em Pretx. A campanha retoma o chamado à prática como “critério da verdade”, trazido no manifesto “Enquanto houver racismo, não haverá democracia”, para reforçar o voto em candidaturas negras comprometidas com o antirracismo. Para isso, difunde as iniciativas Enegrecer a política, Votos antirracistas e Agenda Marielle Franco, que contam com mapeamento dessas/es candidatas/os.
No Brasil, muito lentamente, se reconhece as fragilidades de instituições que, para a maioria de sua população, ainda não se consolidaram como democráticas. Iniciativas antirracistas, a partir da sociedade civil e enraizadas nos movimentos negros, mostram a pulsão de transformação de uma realidade política que serve a pouquíssimos, orientada à construção urgente de um futuro possível – aquele que considera a experiência política negra.