O que vemos quando olhamos para a fome — por Manu Justo

Manu Justo é gestora de portfólio do programa Sistemas alimentares do Instituto Ibirapitanga.
“Nos últimos três meses você, ou outra pessoa que mora neste domicílio, precisou fazer alguma coisa que causou vergonha, tristeza ou constrangimento para conseguir alimentos?” 15,8 milhões de pessoas responderam “sim” a essa pergunta – uma das realizadas no 2º VIGISAN – Inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil. A pesquisa, conduzida pela Rede PENSSAN – Rede Brasileira de Pesquisadores em Soberania Alimentar e Nutricional e divulgada no início deste mês, tornou-se um caso exemplar de mobilização da sociedade civil brasileira frente à ausência de dados governamentais. A edição do relatório e a elaboração dos materiais de comunicação foram realizados de forma coletiva entre seis organizações apoiadoras e parceiras que, para além de possibilitar o financiamento, se dedicaram à discussão e ao desenvolvimento de estratégias voltadas a aprimorar a qualidade técnica e ampliar a divulgação dos resultados da pesquisa.
A primeira edição, que também contou com o apoio do Instituto Ibirapitanga – assim como outras iniciativas descritas ao longo deste artigo – foi lançada em 2021 orientada a revelar o impacto da pandemia sobre a insegurança alimentar. Mas evidenciou também o retrocesso histórico resultante, principalmente, da desestruturação de um arcabouço de políticas públicas que sustentavam (literalmente) a população brasileira e proporcionaram a conquista da saída do país do Mapa da Fome em 2014. Os números divulgados recentemente trazem 58,7% da população convivendo e sobrevivendo com insegurança alimentar, o que totaliza 125,2 milhões de brasileiros nessa condição; além de 33,1 milhões de pessoas em insegurança alimentar grave – ou seja, com a fome de quem não tem o que comer. Em pouco mais de um ano, o novo contingente de 14,4 milhões de pessoas com fome no Brasil é estarrecedor. Se os dados lançados em 2021 convocaram a sociedade a retomar o olhar para a fome, a nova edição mostra que, em 2022, a fome é visível. A cada trajeto realizado nas ruas das cidades vemos uma (ou mais) das quase 16 milhões de pessoas constrangidas em seus pedidos de ajuda para conseguir comida.
A fome e o racismo estrutural
A fome não é só visível, mas “por fora a cor da fome no Brasil é preta”, como afirma Fran Paula, em referência ao premiado livro “Quarto de despejo” em que Carolina Maria de Jesus relata que a fome é amarela. Enquanto entre os domicílios em que a pessoa de referência é branca vemos índice de 50% de segurança alimentar, apenas 35% dos domicílios com pessoa de referência negra têm a garantia de alimentos. Mesmo quando se olha para um fator determinante, como a renda, a insegurança alimentar acomete a população negra de forma desigual. A partir dessas evidências, a Rede PENSSAN lançará suplemento à pesquisa, com informações mais precisas da leitura dos dados de insegurança alimentar relacionados à raça/cor.
Mesmo com essa realidade em dados, vemos que o reconhecimento do racismo como base estruturante da sociedade brasileira ainda é incipiente nas reflexões sobre alimentação. O conceito de nutricídio criado pelo médico norte-americano Llaila Afrika, caracterizado como genocídio alimentar, é um dos que tem incitado esse debate por aqui – apesar da diferença substancial de que 56% da população brasileira é negra, enquanto nos Estados Unidos esse percentual é de cerca de 12%. O mito da democracia racial, que sustenta o sistema de desigualdades no Brasil, se faz presente em nossas cozinhas, temperado pelo apagamento histórico e evidenciado, também, pela falta de menção da nossa base culinária étnico-racial negra e indígena em documentos oficiais de alimentação.
Completam esse quadro a existência de dados parciais, desatualizados e restritos sobre as condições de alimentação de povos indígenas no Brasil, usualmente gerados por agências governamentais específicas ou por organizações da sociedade civil, mesmo considerando a presença de 305 etnias em todos os estados do Brasil. No seminário “Geografia da fome – 75 anos depois” realizado pela Cátedra Josué de Castro/USP, vimos com grande preocupação dados apresentados pela pesquisadora Renata Levy que demonstram o aumento exponencial do consumo de alimentos ultraprocessados pela população indígena. Comparando as POFs 2008-2009 e 2017-2018, enquanto na população branca o consumo de alimentos ultraprocessados aumentou 0,19%, entre a população negra o coeficiente foi de 2,04% e, ao olharmos para povos indígenas, vemos o aumento mais expressivo: 5,96% no mesmo período. Em relação à situação de insegurança alimentar, a metodologia da pesquisa recente realizada pela Rede PENSSAN encontrou limites para abarcar as especificidades necessárias para contemplar povos indígenas; e a única pesquisa que pode ser considerada similar, realizada em âmbito nacional, data de 2009. O Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição de Povos Indígenas, realizado pela Funasa em parceria com a Abrasco, tornou-se referência e é amplamente citado em relatório da FAO lançado em 2014 – mesmo ano em que o Brasil saiu do Mapa da Fome – destacando a saúde indígena como uma das atenções prioritárias de monitoramento pela “situação urgente de insegurança alimentar e nutricional na qual se encontra essa população no Brasil”. Ou seja, no momento em que tínhamos somente 3,2% da população brasileira com insegurança alimentar grave (e não 15,5% como hoje), povos indígenas eram reconhecidos como público prioritário para endereçamento de políticas públicas de alimentação. Atualmente, apesar da tendência de agravamento das condições encontradas em 2014 e da guerra contra as pautas étnico-raciais ser marca do governo federal, povos indígenas seguem articulados e sob olhar atento da sociedade civil organizada. Em 2020, a Abrasco e a Aba publicaram nota conjunta com recomendações para o enfrentamento da pandemia considerando a situação alimentar entre os povos indígenas; em dezembro de 2021 a sentença do Tribunal Popular da Fome entregue ao STF reafirma que “os sistemáticos ataques do Estado brasileiro às suas nações indígenas e aos povos e comunidades tradicionais tipificam crimes contra a humanidade e de genocídio”.
Ao olhar para experiências da população negra, povos indígenas e comunidades tradicionais vemos conhecimentos e práticas que precisamos aprender para efetivar transformações nos sistemas alimentares. As variadas intersecções entre etnia, raça e alimentação precisam ser aprofundadas e estimuladas na academia e na sociedade civil brasileira.
Mulheres em vulnerabilidade, crianças também
Quando pensamos em nossa cultura alimentar, também vemos com nitidez a importância do papel das mulheres na preservação da memória e no preparo dos alimentos. No entanto, ainda carece de reconhecimento a contribuição histórica e estratégica que as mulheres vêm operando nos sistemas alimentares de ponta a ponta. Muito além da cozinha, as mulheres têm se organizado em processos nacionais coletivos para visibilizar seu trabalho e as desigualdades de gênero a que estão submetidas enquanto agricultoras e produtoras de alimentos, bem como sua importância para a soberania alimentar. Ao olhar para os dados do 2º VIGISAN de que 6 em cada 10 domicílios que têm mulheres como pessoa de referência convivem com insegurança alimentar no Brasil, vemos um dos mais graves resultados da dinâmica perversa a que as mulheres estão historicamente submetidas. E se são as mulheres e as pessoas negras as mais suscetíveis à fome no Brasil, não é difícil concluir que as mulheres negras são as mais vulnerabilizadas por essa condição.
A divisão sexual do trabalho delegou às mulheres o trabalho doméstico e reprodutivo e, invariavelmente, a responsabilidade de cuidados dos filhos recai sobre as mulheres. No caso das mulheres negras, houve uma sobreposição histórica oriunda do processo escravagista, em que as demandas domésticas e reprodutivas de sua própria família se somaram às das responsabilidades pelas mesmas tarefas na família escravocrata e/ou ao trabalho externo. Enquanto tivermos mulheres em situação de maior vulnerabilidade, estamos construindo uma sociedade que impacta também diretamente as crianças. E é com olhar lacrimejante que nos deparamos com os dados de que em pouco mais de um ano, a fome dobrou nas famílias com crianças menores de 10 anos; 68,7% dos domicílios com dois moradores de até 18 anos estão em insegurança alimentar – sendo 39,4% destes nos níveis moderado e grave. Se olharmos para domicílios com 3 menores de 18 anos, esse percentual sobe para 50,9%, sendo 82,2% sem a garantia de alimentos.
Uma das mais reconhecidas políticas públicas de alimentação no mundo é justamente o Programa Nacional de Alimentação Escolar, que alimenta diariamente 41 milhões de crianças e jovens estudantes. Os dados apresentados na pesquisa evidenciam a desestruturação do programa e afirmam que, durante a pandemia, “a falta de orientações precisas sobre estratégias para utilizar o PNAE, como recurso alimentar para crianças e adolescentes em atividades escolares remotas, resultou em prejuízos importantes para sua segurança alimentar.” Criado com o objetivo inicial de monitorar o programa durante a pandemia, o Observatório da Alimentação Escolar, iniciativa de organizações da sociedade civil da educação e da alimentação, publicou pesquisa que constata que, entre 900 estudantes da rede pública de ensino de 215 municípios de todos os estados do país, 23% não receberam nenhum tipo de assistência alimentar do PNAE do início da pandemia até julho de 2021. Somente 14% destes receberam cestas básicas ou cartão alimentação durante este período, sendo que 21% do total dos estudantes usufruiu do programa apenas uma vez nestes meses. A implementação consistente do PNAE e o reajuste no valor per capita são defendidos em nota técnica, lançada pelo Observatório da Alimentação Escolar junto com a Fineduca. Além da falta de reajuste do valor per capita, o orçamento do programa sofreu redução de 20% entre 2014 e 2019.
Avanço do agronegócio e desidratação da agricultura familiar
O PNAE deve ser utilizado como uma das principais ferramentas de combate à fome no Brasil, não somente por sua capilaridade, mas também porque pode representar importante fonte de renda para a agricultura familiar. Por lei, 30% do valor dos repasses realizados do programa devem ser utilizados para compra de alimentos produzidos pela agricultura familiar – que, neste momento, também tem fome. Apesar de parecer contraditório, infelizmente não vemos com surpresa o dado de que atualmente 38% das famílias de agricultores/as e produtores/as rurais estão em situação de insegurança alimentar. De acordo com o 2º VIGISAN, “a agricultura familiar sofreu o impacto da crise econômica, mas foi especialmente afetada pelo desmonte das políticas públicas voltadas para o pequeno produtor do campo”. Enquanto o modelo da monocultura do agronegócio brasileiro recebe subsídios governamentais e apresenta tendência de crescimento de exportação (em sua maioria de commodities como soja, milho e cana-de-açúcar), políticas ligadas ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar tem sido desestruturadas e a produção de alimentos não tem se refletido de forma constante nem mesmo para a própria subsistência da família. Ainda assim, cabe mencionar que movimentos e organizações sociais, dos quais o MST e o MPA são alguns dos muitos exemplos, têm realizado ações significativas de doações de alimentos saudáveis, justos e sustentáveis, além de conectarem o campo à cidade.
Urbanização da população brasileira e a fome nas cidades
Apesar da insegurança alimentar ser proporcionalmente maior no campo, é nas cidades que se concentra o maior número de brasileiros em situação de fome. São 27,4 milhões de famintos em área urbana, o correspondente à soma da população total (estimada pelo IBGE – já que não tivemos Censo em 2020) das 5 cidades mais populosas do país. Ou seja, além da fome visível pelas ruas e trajetos das cidades, podemos imaginar que temos a soma das populações de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Salvador e Fortaleza com fome. É esse o cenário atual. E para ampliar a compreensão, cabe considerarmos que a adesão das cidades ao Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, criado em 2006, foi localizada e incipiente. Dados do MapaSAN 2018, publicação do antigo Ministério do Desenvolvimento Social, apontam que dos 2.295 municípios respondentes à pesquisa, apenas 51 tinham Planos Municipais de Segurança Alimentar e Nutricional estruturados enquanto 153 se encontravam em fase de elaboração. Ou seja, somente 4,1% dos municípios de fato tinham construído políticas alimentares em diálogo com o sistema nacional. Além da inquestionável incidência e apropriação para atuação local, o fortalecimento das cidades enquanto espaços de promoção de políticas de alimentação é fundamental para reduzir o impacto do recrudescimento de políticas públicas federais. Nesse sentido, iniciativas de incidência em políticas públicas municipais como a Carta de proposta aos candidatos e candidatas produzida pela Aliança pela alimentação adequada e saudável nas eleições de 2020, e estratégias como o Lu.ppa – laboratório com a intenção de ampliar políticas estratégicas e plurianuais para a alimentação nas cidades brasileiras organizado pelo Instituto Comida do Amanhã – tornam-se fundamentais e prioritárias.
Redução do poder aquisitivo, inflação de alimentos in natura e barateamento de ultraprocessados
Quando falamos em cidades, no entanto, é preciso reconhecer a complexidade e heterogeneidade de contextos dos 5.568 municípios brasileiros. É nas grandes capitais, que concentram a maior parte da população, onde a fome se torna ainda mais visível. Em maio, pelo segundo mês consecutivo, o valor da cesta básica aumentou em todas as 17 capitais do Brasil, segundo pesquisa do Dieese. Em São Paulo, cidade mais populosa do país, o valor da cesta básica aumentou 43% nos últimos quatro anos e está no topo das mais caras, custando R$804. Com este valor, o Dieese estima que o salário mínimo necessário para a manutenção de uma família de quatro pessoas deveria equivaler a R$6.754,33. Ou seja, 5,57 vezes o valor atual de R$1.212,00. De acordo com o 2º VIGISAN, 67% dos domicílios com renda maior que um salário mínimo têm garantia de alimentos. O novo dado preocupante é que entre 2020 e 2022 o salário mínimo deixou de ser garantia contra a insegurança alimentar: 3% dos domicílios com renda de um salário mínimo estão em situação de fome e 6% com insegurança alimentar leve ou moderada. Além disso, a insegurança alimentar moderada e grave cresceu mesmo entre as pessoas com acesso a programas de transferência de renda, como o Bolsa Família (extinto em novembro do ano passado) e o Auxílio Brasil. Na faixa de renda de menos de meio salário mínimo por pessoa, a fome é uma realidade para 32,7% das famílias que receberam os benefícios. Além da falta de reajuste do salário mínimo, a desestruturação do programa Bolsa Família e a implementação criticada por especialistas do Auxílio Brasil, trazem para esse cenário a tendência de significativa piora. Se adicionarmos ao contexto a inflação do preço dos alimentos – que chegou a 16,12% nos últimos 12 meses, o quadro é catastrófico.
A renda determina não somente o acesso, mas também a qualidade dos alimentos consumidos. O Guia alimentar para a população brasileira, referenciado mundialmente, preconiza que uma dieta saudável deve ter como base o consumo de alimentos in natura ou minimamente processados e redução de alimentos ultraprocessados.
De acordo com artigo da Cátedra Josué de Castro, das 20 maiores altas de preços acumuladas este ano até o mês de abril, 19 foram de alimentos in natura – enquanto os alimentos ultraprocessados tiveram variação de preço abaixo da média da inflação no mesmo período. No Brasil, a previsão de que alimentos ultraprocessados se tornassem mais baratos do que alimentos in natura – preocupação expressa por pesquisadores – era para o ano de 2026. No entanto, com o atual cenário, a tendência é que isso ocorra já este ano.
Dupla carga e múltiplos impactos do atual sistema alimentar
Quando olhamos para a fome em 2022, vemos resultados das contradições do sistema alimentar brasileiro refletidos em estruturas que sustentam nossas desigualdades. “A dificuldade no acesso a alimentos saudáveis associado aos novos padrões comportamentais, evidenciam o aumento das desigualdades, onde uma parte das pessoas moradoras de favelas e periferias consomem cada vez mais alimentos ricos em gorduras e açúcares, e outra sofre com a fome e desnutrição pela escassez de alimentos de boa qualidade nutricional”. A frase é da nutricionista Áurea Santa Izabel, em artigo publicado em 2020 no Alma Preta, após o lançamento dos dados da 1ª edição do Inquérito da Rede PENSSAN. Vemos recair sobre a população brasileira, portanto, uma dupla carga com a conjunção do aumento da fome e da insegurança alimentar em níveis exponenciais e, ao mesmo tempo, a disseminação das dietas alimentares que deterioram a saúde. O consumo de alimentos ultraprocessados está diretamente relacionado com fatores de risco para DCNTs – doenças crônicas não transmissíveis, como obesidade e hipertensão. De acordo com o Vigitel 2021, em 2019, as DCNTs foram responsáveis por 41,8% do total de mortes prematuras de brasileiros. Dados do Covitel 2022, inquérito realizado pela Vital Strategies (também fruto da mobilização da sociedade civil e que traz novas abordagens metodológicas ao monitoramento de fatores de risco no Brasil) demonstram que temos atualmente pouco mais da metade da população com excesso de peso e quase um quarto com obesidade. Ainda que urgente o direcionamento da questão do acesso a alimentos, é premente que as soluções sejam atentas à qualidade da alimentação.
Além dos impactos na saúde humana, os alimentos ultraprocessados demandam uso intensivo de água e de energia para sua fabricação, gerando ainda grande quantidade de resíduos. De acordo com estudo recente lançado pela pesquisadora Josefa Garzillo, a pegada hídrica de uma dieta com maior consumo de ultraprocessados é 10% maior do que a dieta com menor nível de consumo desses produtos. Ou seja, enquanto temos dados do 2º VIGISAN de que 12% da população está em insegurança hídrica – impactando diretamente na segurança alimentar, com 42% destas em situação de fome – vemos um cenário que estimula a produção e o consumo de alimentos que necessitam de água de forma intensiva. Apesar do preço final mais barato ao consumidor, o custo socioambiental da produção de alimentos ultraprocessados no Brasil ainda é inestimado.
Na perspectiva de levantamento de custos sociais, o relatório Sindemia Global, da Comissão de Obesidade The Lancet, que se tornou referência mundial para discussão sobre sistemas alimentares, traz dados estimados sobre o sobrepeso e obesidade globais: “O excesso de peso corporal afeta mais de 2 bilhões de pessoas no mundo todo e é responsável por, aproximadamente, 4 milhões de mortes anualmente. Os custos econômicos atuais da obesidade são estimados em aproximadamente 2,8% do produto interno bruto (PIB) mundial.”
A definição da sindemia global levanta questões que, inicialmente, podem parecer excludentes. Ao caracterizar como principais desafios a serem enfrentados pela humanidade o encontro das pandemias de obesidade, desnutrição e mudanças climáticas, o estudo possibilita olhar e atuação sistêmica em relação à alimentação. E tem sido base de referência de importantes iniciativas no Brasil, como a estratégia do programa de Alimentação Saudável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Considerando a realidade global de insegurança alimentar, pesquisa realizada pela FGV Social, a partir do processamento de dados do Gallup World Poll, demonstra que, no período de pandemia, a piora da situação brasileira foi 4 vezes maior que a média dos 120 países pesquisados. Pela primeira vez o Brasil apresentou níveis de insegurança alimentar piores que a média mundial, em série de pesquisas que vem sendo realizada desde 2006. Curioso notar que foi também em 2006, que o Brasil teve decretada a chamada Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional que define segurança alimentar como “a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis”.
O olhar multifatorial e abrangente sobre a segurança alimentar já esteve presente no cenário nacional – e refletiu em avanços concretos para a população brasileira. No entanto, mesmo a apropriação da população sobre a noção de alimentação adequada e saudável como um direito ainda é frágil. Na linha do tempo do direito humano à alimentação adequada no Brasil, vemos o desenho de avanços e de retrocessos – principalmente desde 2016, como reitera o Manifesto pela soberania alimentar e superação da fome, recentemente lançado pela Conferência Popular Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. O olhar para a fome, retomado em 2021, e a fome visível em 2022 estabelecem novos trágicos marcos temporais para essa história. E, mais uma vez, a sociedade civil se manifesta pela soberania alimentar. A fome é um alerta dado pela liberação de um hormônio no estômago, indicando que o corpo precisa de reposição de nutrientes para seguir funcionando. Mas, sobretudo, “A fome é um ‘fenômeno social total’: para além das questões nutricionais, envolve a política, a história, a economia e o social” – impossível não citar Josué de Castro. A fome é resultado de problemas estruturais e de escolhas políticas. É visível e é evitável. Precisamos ver um Estado comprometido no combate à fome que considere com igual importância cada uma das dimensões que versa a segurança alimentar, com consistência e visão sistêmica, para que seja efetivo no presente e sólido no futuro.