Mulheres negras e o antirracismo na visão de quatro lideranças

Se dividirmos a sociedade brasileira em uma pirâmide, saberemos exatamente o grupo que ocupará o topo e o grupo que se situará na base. Nessa base, que sustenta a estrutura, estão as mulheres negras. A sociedade que as coloca como sustentação dessa pirâmide, marca suas vidas por violações de direitos, que não só as excluem de determinados espaços pelo fato de serem mulheres, mas também pelo fato de serem negras.
Historicamente, mulheres negras foram alijadas do debate público e da participação política no Brasil. Foram empurradas, sobretudo, à responsabilidade de trabalhos na esfera dos cuidados — domésticos, familiares ou comunitários. Entretanto, sempre se colocaram na vanguarda e estiveram à frente na experiência de luta pela vida, pela equidade racial e, consequentemente, pela democracia. Essa experiência também levou lideranças negras a se articularem para evidenciar que mulheres negras são um eixo central para a construção da equidade racial.
A criação de outras narrativas e protagonismos a partir da luta de mulheres negras por direitos é o reflexo das trajetórias de autoras e ativistas que ressignificaram a dor e as transformaram no enfrentamento ao genocídio, fome e pobreza. Após a Constituição de 1988, o racismo passou a ser considerado crime e isso foi resultado direto do enfrentamento ao mito da democracia racial pelos movimentos negros, com forte engajamento feminino.
Valorizar essas lideranças é reforçar a memória e trazer para os dias atuais a importância do papel feminino e negro na construção do Brasil. Algumas das organizações com iniciativas apoiadas pelo instituto Ibirapitanga foram centrais no avanço do antirracismo no Brasil. A liderança feminina é um ponto em comum entre elas, que há mais de 30 anos mobilizam e movimentam as estruturas pelos direitos de pessoas negras.
Lúcia Xavier é uma dessas lideranças que, junto ao movimento negro brasileiro, atua para uma sociedade que prioriza valores de justiça e equidade racial. É Assistente social, formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atuou no Conselho Estadual da Criança e do Adolescente e no CNPIR — Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, representando a AMNB — Articulação de ONGs de Mulheres Negras Brasileiras, em 2004. Recebeu a medalha do reconhecimento Chiquinha Gonzaga conferida pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Ela é coordenadora geral da organização Criola, que busca instrumentalizar mulheres, adolescentes e meninas negras para o enfrentamento do racismo, sexismo, lesbofobia e transfobia. Como liderança em Criola, Lúcia foi uma das responsáveis por consolidar a atuação da instituição como um polo de referência e formação para a ativistas, movimentos, coletivos e outras organizações de mulheres negras no Rio de Janeiro.
Segundo Lúcia, “a história de luta contra o racismo no Brasil conta com uma ação contundente das mulheres negras, que construíram um legado histórico, cultural e político, oferecendo-nos condições para o enfrentamento ao racismo através da construção de tradições milenares que constituem a nossa ancestralidade. As organizações coletivas promovidas por elas são até hoje o suporte da população negra. Daí, a forte violência que atravessa as suas vidas.”
Ela reforça o papel das mulheres no combate ao silenciamento sistêmico de suas vozes, estimulado também pelo patriarcado. “Atualmente, as mulheres negras cis e trans têm sido as principais protagonistas da luta pelo aperfeiçoamento e pelo alargamento da democracia brasileira. Pois a luta contra o racismo patriarcal cisheteronormativo é uma ação política que articula diferentes eixos de opressão e de exploração informadas pelo racismo.”
Criola conduz a iniciativa “Mulheres e jovens negras pelo bem viver”, que incide sobre os impactos negativos que o racismo produz na saúde integral e cotidiano de mulheres, jovens e adolescentes negras, bem como dos terreiros de religiões de matriz africana.
Lúcia ressalta que “as principais bandeiras de luta [das mulheres negras] buscam enfrentar o genocídio da população negra por meio de políticas contra o racismo, a discriminação racial e a violência, sobretudo a perpetrada pelo Estado. Luta que também busca a justiça, efetivação de direitos que garantam a vida com saúde, educação, mobilidade social, moradia digna, acesso ao saneamento básico. Mas, essas inciativas não serão suficientes para pôr fim ao racismo patriarcal cisheteronormativo, daí a proposição do Bem Viver como paradigma civilizatório capaz de interromper o genocídio e promover a igualdade e os direitos da população negra de modo geral e das meninas e mulheres negras cis e trans.”
A diáspora africana causou violências às mulheres negras e suas marcas são percebidas até os dias de hoje, através das limitações impostas pela branquitude e pelo patriarcado, que sedimentam os lugares e estereótipos de inferioridade nesta população.
Valdecir Nascimento é historiadora formada pela Universidade Federal da Bahia e mestre em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia. Ativista do movimento de mulheres negras, coordena a organização Odara — Instituto da Mulher Negra, centrada no legado africano para o fortalecimento e autonomia das mulheres negras. Valdecir também coordena a AMNB — Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras e representa o Brasil na Red de Mujeres Afrolatinoamericanas, Afrocaribeñas y de la Diáspora. A atuação da ativista junto a mulheres de diferentes gerações é pedra fundamental da formação do Odara enquanto um instituto que articula, fomenta e apoia o crescimento em rede dos movimentos de mulheres negras na Bahia e no Nordeste.
Para Valdecir, “a contribuição das mulheres negras na luta antirracista é a concepção ideológica de que todo o enfrentamento passa pela derrocada do sistema de opressão capitalista, racista e sexista, que viola a nossa existência, pois o racismo, e o patriarcado se articulam numa ação perversa geradora das diversas violências que nos atravessam.” De acordo com ela, “internacionalizar esta luta é a tarefa. Nesse sentido, faz-se necessário, conspirar, trocar, compartilhar com as irmãs negras na diáspora, para fortalecer a luta, definir os objetivos.”
Valdecir afirma ainda a necessidade urgente de lutar pela liberdade e valorização da ancestralidade como princípio fundante da emancipação da mulher negra: “a emancipação, a autonomia e a perspectiva libertária que carregamos está fundada no rompimento da subalternidade, além da afirmação constante de que nossos passos vêm de longe, que esta luta não começou agora, e que somos a solução para esta nação”.
As mulheres negras têm a capacidade de construção. Apesar das ameaças que o presente impõe, elas encontram na ancestralidade, um olhar que aponta para o futuro e fundamenta suas sobrevivências.
Cida Bento é doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo e precursora da tese “Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público”. Diretora do CEERT — Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, atua no fortalecimento da equidade racial e de gênero. É também professora visitante na Universidade do Texas, nos Estados Unidos. A visão de Cida Bento foi pioneira na academia brasileira para uma recolocação do debate antirracista, incluindo o enfoque sobre branquitude e pessoas brancas, o que trouxe indivíduos e instituições para outro patamar de responsabilidade. Como liderança no CEERT, Cida esteve à frente de ações que foram fundamentais para litigância estratégica e promoção de ações afirmativas, em especial na atuação com empresas.
Para Cida “o olhar arguto, singular e sensível que elas [mulheres negras] desenvolveram sobre a sociedade, sobre a própria história e a do país, por terem estado subrepresentadas ou ausentes do que foi constituído, é a projeção de um futuro, que considera a profundidade da sabedoria ancestral.”
Interseccionalidade é fundamental para trazer a pauta das mulheres negras ao debate da igualdade de gênero, pois, no Brasil, a desigualdade racial é a base para outras desigualdades. Não é possível enfrentar uma luta antirracista, sem centralizar o olhar na dinâmica perversa do racismo sistêmico brasileiro, que emprega a exclusão de mulheres negras colocando-as nas condiões de pobreza e subalternidades.
Sueli Carneiro é filósofa doutora em Educação pela Universidade de São Paulo e fundadora do Geledés — Instituto da Mulher Negra, que atua pelo fortalecimento dos direitos de mulheres e negros por meio de ações de sensibilização da sociedade quanto à necessidade de compromisso efetivo para a superação do racismo e sexismo. É ativista feminista e antirracista, autora de diversos artigos sobre as questões de gênero, raça e direitos humanos, em publicações nacionais e internacionais. Seu histórico de ativismo é referência para as gerações seguintes de pessoas negras, que vêem em sua atuação referência de fortes articulações de resistência à ditadura, bem como de afirmação intelectual negra.
Para Sueli “a principal contribuição e legado da atuação das mulheres negras na luta antirracista é a criação de organizações de mulheres negras em nível nacional que travam um combate cotidiano contras as múltiplas formas de violência racial e de gênero produzidas pelo racismo e o sexismo.”
Atualmente, o Instituto Geledés promove, entre diversas ações, a salvaguarda ao legado que a organização construiu ao longo das três décadas de atuação e fortalece a participação das PLPs — Promotoras Legais Populares, lideranças comunitárias que orientam e auxiliam outras mulheres a terem acesso à justiça e aos serviços que devem ser procurados quando sofrem algum tipo de violação de seus direitos.
As organizações citadas e suas lideranças pavimentaram avanços fundamentais para os movimentos negros, que colocaram a luta antirracista no patamar que está agora. Tais iniciativas vislumbram hoje em dia um projeto ousado e necessário de sociedade baseado no direito de todas as pessoas à vida e ao bem viver.