Instituto Marielle Franco: Construir-se para atuar como legado

Família de Marielle Franco em ação para marcar dois anos de seu assassinato, março de 2020.
Em 2018, uma frase ecoou nas ruas do Brasil e do mundo: “Pensaram que iam nos enterrar, mas não sabiam que somos sementes”. Eram incontáveis vozes que, diante do brutal assassinato da vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, e do motorista Anderson Gomes, no dia 14 de março do mesmo ano, exigiam justiça e afirmavam a importância de seu legado.
Durante sua trajetória política, a socióloga Marielle Franco atuou como uma exemplar defensora dos direitos de pessoas negras, mulheres e da comunidade LGBTQI+. Mulher negra, assumidamente bissexual e oriunda do complexo da Maré, no Rio de Janeiro, ocupou o poder Legislativo de uma grande cidade, espaço político fortemente marcado pela desigualdade e discriminação de gênero e raça – especialmente pela sub-representação da população negra, que parte do racismo estrutural no Brasil. A todos esses desafios, Marielle respondeu atuando na presidência da Comissão de Defesa da Mulher, na coletividade de sua mandata ((Marielle Franco e pessoas de movimentos sociais em diálogo com sua pautas costumavam usar a forma mandata, ao invés de mandato, para fazer uma afirmação feminista da ocupação desse espaço e produzir uma quebra de seu paradigma cisheteropatriarcal.)) plural e com posicionamentos enfáticos, a exemplo do discurso na Câmara dos Vereadores que eternizou a frase: “Não serei interrompida”.
Em meio à dor, manifestações e homenagens, a família da vereadora encontrou resiliência para estruturar uma resposta nessa proporção, mas que pudesse se perenizar.
Em meio à dor, manifestações e homenagens, a família da vereadora encontrou resiliência para estruturar uma resposta nessa proporção, mas que pudesse se perenizar. O Instituto Marielle Franco foi lançado em 2019 para buscar justiça sobre o caso, defender sua memória, multiplicar o legado deixado por ela e regar as sementes que surgiram após seu assassinato e do motorista Anderson Gomes. Por compreender a dimensão da trajetória e do caso Marielle Franco, o Instituto nasceu voltado a atuar como centro de referência para a produção de ferramentas de engajamento, formação e incidência política para fortalecimento de mulheres negras. Busca também evidenciar o protagonismo e luta de mulheres negras em outros setores da sociedade que vem empreendendo mudanças estruturais na realidade brasileira.
Já em 2019, com menos de um ano de existência, o Instituto Marielle Franco iniciou o projeto “Plantando sementes: estruturando a resistência de mulheres negras no Brasil”, com apoio do Instituto Ibirapitanga, voltado à estruturação de suas áreas de atuação, ao acompanhamento e incidência para a investigação do assassinato da vereadora e do motorista, ações de rua e em redes para expansão de seu legado político.
Por meio deste projeto, o Instituto realizou ações que já revelaram o potencial da organização em canalizar e mobilizar o desejo de ação de milhares de pessoas em torno das causas a que Marielle Franco era conectada. Em fevereiro, lançou o Mapa dos Coletivos: uma chamada aberta de cadastramento de coletivos, movimentos e organizações que se inspiram na luta de Marielle com interesse em atuar como multiplicadores das ações do Instituto. A iniciativa já conta com 52 coletivos de mais de 10 países. Em março, mês em que o assassinato completou dois anos, o Instituto Marielle Franco abriu, em caráter temporário, a Casa Marielle. Localizada no Rio de Janeiro, a casa abrigou atividades de apresentação da organização para a sociedade e voltadas a marcar a luta por justiça para o caso. A ação culminaria em um grande festival no dia 14 de março, mas teve mudança no plano em função do início do distanciamento social, com a eclosão da pandemia de covid-19. Como alternativa, o Instituto marcou a data, convocando a sociedade para ações descentralizadas nas janelas e nas redes sociais com a hashtag #JustiçaPorMarielleEAnderson, bem como com intervenções urbanas com lenços amarelos gigantes, como Marielle((Um dos motes das manifestações em torno do assassinato da Marielle Franco foi “Marielle gigante”, argumentando sua grandeza de seu alcance diante das multidões que organizaram em protesto.)).
Ainda em processo de estruturação institucional durante este período de crise, o Instituto Marielle Franco se tornou ator chave, desenvolvendo e implementando junto a outras organizações ações de resposta às consequências da pandemia, para além daquelas que fazem parte da iniciativa “Plantando sementes”. Em conjunto com Criola, Perifa Connection, duas organizações apoiadas pelo Instituto Ibirapitanga, e Movimenta Caxias, realizou o Agora é a Hora, um mutirão para garantir a segurança alimentar e o acesso ao auxílio emergencial para 1900 famílias de mulheres negras na região metropolitana do Rio de Janeiro. Realizou também parceria com o Favela em Pauta para criar o Mapa Corona nas Periferias, que conecta iniciativas de solidariedade em periferias para dar visibilidade e potencializar os coletivos e ativistas que estão atuando diretamente nos territórios mais afetados. Está atuando na Rede de proteção para familiares de saúde, ação de mobilização junto a diversas outras organizações para pressionar o presidente do Senado para que vote o Projeto de Lei 1.826/2020 que prevê o pagamento de uma ajuda mensal aos dependentes de profissionais da saúde que venham a falecer pelo Coronavírus.
Em parceria com Mulheres Negras Decidem, construiu o relatório Para Onde Vamos, que sistematiza as experiências e aprendizados das mulheres negras que estão liderando ações de enfrentamento à crise em todo o país, para apontar possibilidades rumo a uma agenda coletiva, negra e feminista no futuro pós-pandemia. Com essas e outras iniciativas o Instituto Marielle Franco atua em rede para fortalecer as ações urgentes de apoio à sobrevivência da população mais vulnerável, bem como para disputar caminhos de saída da crise baseados na garantia do direito a um futuro digno para as pessoas negras e periféricas.
O ano de 2020 também foi marcado pela reocupação das ruas por movimentos antirracistas, diante de assassinatos de pessoas negras de diferentes faixas etárias no Brasil e nos Estados Unidos. Os assassinatos expuseram a necessidade e importância de uma luta histórica contra o racismo, cujas ferramentas não pararam de operar diante da pandemia. Como uma organização que acompanha e inspira avanço em seu tempo, o Instituto Marielle Franco também se somou aos esforços desses movimentos, que reforçam uma ideia simples, mas ainda pouco valorizada socialmente, de que vidas negras importam((Frase utilizada em campanhas e movimentos de enfrentamento ao racismo por meio da valorização e humanização das vidas negras. Inspirada na campanha/movimento estadunidense “Black lives matter”.)).
Fortalecer organizações como o Instituto Marielle Franco, significa contribuir para sedimentar na sociedade brasileira a ideia de que essas vidas importam e colaboram na consolidação de uma democracia pautada na garantia das liberdades e direitos das mais diversas existências de um país – a exemplo da vereadora que, por meio de sua atuação, se fez semente.