Por que estamos investindo na transformação dos sistemas alimentares no mundo

Artigo originalmente publicado em Inside Philanthropy
E se pudéssemos atender a duas necessidades globais em uma tacada só, como eliminar a fome e zerar as emissões líquidas? Com uma transformação profunda dos sistemas alimentares, nós podemos. No dia 23 de setembro, líderes de países do mundo inteiro se reuniram virtualmente na primeira Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU. Esse já é em si um acontecimento importante, mas com a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas poucas semanas depois, é potencialmente transformador. É uma oportunidade de nos unirmos no combate contra a pobreza, na melhora do acesso à alimentação e no apoio a comunidades saudáveis, ao mesmo tempo em que abordamos a mudança climática e trabalhamos para preservar o nosso planeta.
Sistemas alimentares sustentáveis são uma solução climática importante, pois reduzem as emissões de gases estufa críticos, como metano e dióxido de carbono. O último relatório do IPCC — Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas alerta que temos apenas uma pequena janela de tempo para evitar os impactos “mais devastadores” das mudanças climáticas, que incluem episódios de escassez de alimentos e destruição de sistemas agrícolas inteiros, em larga escala. O relatório do IPCC também é claro quanto a uma solução chave: a redução imediata das emissões de carbono da produção agrícola e alimentícia.
Há externalidades negativas graves e prejudiciais nos sistemas alimentares atuais que devem ser abordadas, principalmente na agricultura industrial. Os custos estão aumentando: doenças ligadas à alimentação, contaminação ambiental, emissões de carbono, resistência antimicrobiana e pandemias zoonóticas, como a covid-19.
Uma pesquisa recente da Fundação Rockefeller demonstrou que as consequências sanitárias e climáticas do sistema alimentar dos Estados Unidos custam três vezes mais do que a própria comida – e que esse custo recai desproporcionalmente sobre comunidades não-brancas. O mesmo acontece no nível global – as pessoas mais econômica e geograficamente vulneráveis sofrem as maiores consequências.
A melhor forma de combater esses custos crescentes é adotar sistemas alimentares mais sustentáveis. Dezenas de estudos de caso em todo o mundo ilustram como sistemas alimentares sustentáveis são capazes de abordar vários desafios, tais como a garantia de uma alimentação saudável, abastecimento de comida e água não contaminadas, melhoria da saúde ecológica e animal e geração de oportunidades econômicas. A transformação dos sistemas alimentares é, de fato, a forma mais completa de realizar os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.
Na África e na América do Sul, o Programa Colaborativo de Pesquisa de Culturas da Fundação McKnight reúne agricultores, pesquisadores e organizações sem fins lucrativos em pesquisas sobre agroecologia, bem como em torno de práticas avançadas que respeitam saberes locais e constroem um caminho de volta aos alimentos bem cultivados, que nutrem as pessoas e o planeta. Por exemplo, agricultores e pesquisadores trabalhando juntos no Quênia, no Condado de Nandi, descobriram formas de integrar leguminosas para usos variados em pequenas propriedades agrícolas. Após essa intervenção agroecológica desenvolvida em parceria, os pequenos agricultores, além de oferecerem alimentação a suas famílias e comunidades, melhoraram sua produtividade, seu sustento e a saúde do solo.
Por toda a África, Ásia, Europa e Américas, o AgroEcology Fund (Fundo de Agroecologia), apoiado pela Porticus e pela Fundação McKnight, está levantando recursos para apoiar centenas de organizações na liderança de uma gama de soluções inovadoras, que incluem fixação do carbono, bancos de sementes e leis municipais de uso local da terra e da água.
A conjuntura para a mudança está aqui. Por isso, nós, enquanto executivos de fundações de três partes diferentes do mundo, com ainda mais diversidade geográfica e cultural entre as organizações que apoiamos, estamos investindo na transformação dos sistemas alimentares. É uma questão única que nos dá a oportunidade de derrubar silos, colaborar e realizar um trabalho transversal a diferentes movimentos. Por isso este período de dois meses é tão importante.
No contexto de preparação e realização da Assembleia Geral da ONU, da Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU, da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26) e de outros espaços mundiais como a Semana do Clima e a Convenção da Biodiversidade (COP15-CDB), há três formas de aproveitar ao máximo essa janela de oportunidade.
Em primeiro lugar, urgimos que os líderes priorizem práticas agroecológicas e de agricultura regenerativa à agricultura industrial convencional. Também urgimos que eles adotem metodologias transformadoras, como a “contabilização de custos reais”, que permite que os tomadores de decisões calculem os custos ocultos dos impactos dos sistemas alimentares. É crucial que compromissos ambiciosos sejam feitos para a resolução da desigualdade estrutural, de forma que as estratégias não tenham efeitos colaterais indesejados, ou não sejam excludentes. Isso inclui o redirecionamento dos enormes subsídios corporativos que continuam a sustentar a agricultura industrial.
Em segundo lugar, convocamos nossos colegas apoiadores de fundações, doadores multilaterais e investidores a redirecionarem os fluxos de investimento financeiro, retirando-os do apoio a práticas prejudiciais e voltando-os para iniciativas que estão fomentando, acelerando e ampliando transformações nos sistemas alimentares.
Por último, estimulamos nossos pares a serem defensores corajosos da representatividade inclusiva em agendas internacionais de financiamento e produção de políticas públicas. Os povos de maioria global, principalmente povos indígenas, precisam estar bem representados, dado que possuem séculos de saberes sobre suas terras e culturas. Eles têm muito a nos ensinar sobre o equilíbrio das necessidades das pessoas e do planeta, se estivermos dispostos a ouvir.
Devemos usar nossas plataformas para promover conscientização sobre as várias iniciativas globais que já estão construindo sistemas alimentares sustentáveis e equitativos. Isso fortalecerá o conjunto de histórias que questionam e desmontam as narrativas hegemônicas nocivas que embasam os sistemas alimentares atuais e perpetuam sua disfunção.
Temos o poder de moldar o futuro. Sejamos ambiciosos em nossos compromissos e firmes em nossa intenção, enquanto trabalhamos juntos para transformar a forma com que o mundo produz, consome e pensa em alimentação.
Tonya Allen é presidente da Fundação McKnight; Andre Degenszajn é diretor-presidente do Instituto Ibirapitanga; Melanie Schultz van Haegen é CEO da Porticus; todos são membros da Global Alliance for the Future of Food (Aliança Global pelo Futuro da Alimentação).
Tradução: John Ellis e Julia Álvares