Adensar a prática da filantropia no enfrentamento à fome

Por Manu Justo, coordenadora do portfólio do programa Sistemas alimentares do Ibirapitanga
No dia 25 de abril, foram divulgados os resultados da Pnadc — Pesquisa nacional por amostra de domicílios contínua, que marcou o retorno da parceria entre o IBGE — Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e o MDS – Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome no levantamento de dados sobre a segurança alimentar e nutricional. Após anos de retrocesso no enfrentamento à fome, a pesquisa traz resultados que demonstram aumento significativo da segurança alimentar no país.
Enquanto em 2022, a maior parte da população brasileira (58,7%) estava em insegurança alimentar, no último trimestre de 2023 esse percentual caiu para menos de um terço da população (27,6%). Olhando para a fome, a insegurança alimentar grave, a queda foi de 15,5% para 4,1%.
O comparativo se estabelece entre a Pnadc e o 2º Vigisan, realizado pela Rede Penssan — Rede brasileira de pesquisa em soberania e segurança alimentar e nutricional, com apoio do Instituto Ibirapitanga. O método das duas pesquisas é baseado na aplicação da Ebia – Escala brasileira de insegurança alimentar, o que permite a relação entre os percentuais apresentados. Diante dos novos dados, a Rede Penssan lançou uma nota pública retomando a memória e ressaltando o atual contexto de enfrentamento à insegurança alimentar no Brasil. Em números absolutos, é possível afirmar que mais de 24 milhões de pessoas deixaram de passar fome no Brasil no período de um ano. O número de 33 milhões de pessoas com fome, amplamente divulgado em 2022, caiu para cerca de 8,7 milhões.
Antes de mais nada, cabe celebrar.
Depois, reafirmar que os 8,7 milhões são pessoas.
Com isso, é importante estimular a criação de mecanismos governamentais que garantam processo ampliado e continuado de monitoramento da situação de segurança alimentar da população brasileira, bem como é necessário realizar análises aprofundadas sobre os fatores que explicam essa redução. Além da melhoria de indicadores de renda das famílias, merece atenção a retomada do Sisan – Sistema nacional de segurança alimentar e nutricional junto com a atualização e implementação de políticas públicas intersetoriais de alimentação no escopo do Plano Brasil sem Fome.
Cabe também reconhecer a continuidade do desafio de reduzir – tendo como horizonte zerar – o número de pessoas em insegurança alimentar no país. Dados das desigualdades brasileiras estruturantes, como raça/cor e gênero persistem. São as mulheres negras que seguem como maioria em situação de insegurança alimentar grave. A ausência de dados no nível nacional sobre a insegurança alimentar de povos indígenas também permanece uma realidade. Assim como a concentração de maior percentual de pessoas passando fome está no Norte e no Nordeste e a maior proporção de pessoas nessa situação está em zonas rurais. Segue, portanto, a demanda de olhar para a fome a partir de uma visão sistêmica multidimensional que contemple, ao mesmo tempo, análises interseccionais e localizadas. Vemos que existem segmentos populacionais que compõem um núcleo onde a fome persiste e são necessárias ações estratégicas coordenadas e intencionais para dissolver essa dura composição.
O Brasil também persiste e se renova como país de referência global para políticas públicas de alimentação – como evidencia a criação da Aliança global contra a fome e a pobreza. Nesse contexto, não há incoerência em dizer que temos um rico cenário de oportunidades para aprendizado e redirecionamento da atuação estratégica da filantropia no campo da alimentação no país. A retomada e a atualização de políticas públicas — bem como a expressão significativa de seus impactos positivos — podem servir de inspiração para adensar a reflexão sobre como contribuir de forma assertiva para o enfrentamento à fome conciliando com a perspectiva da garantia do acesso à alimentação adequada e saudável em conexão com a transição para sistemas alimentares que contribuam para a mitigação e adaptação à crise climática.
É certo que existem complexidades na conciliação dessas agendas. Mas é justamente reconhecendo-as que os avanços são possíveis. Nesse sentido, há caminhos já percorridos pela sociedade civil brasileira no desenvolvimento de iniciativas que abarcam a perspectiva sistêmica. Iniciativas com as quais a filantropia pode aprender. No entanto, ainda se faz necessário um maior reconhecimento de que a insegurança alimentar é resultado de questões econômicas e sociais estruturantes das desigualdades no Brasil e, portanto, qualquer mudança efetiva desse cenário só é alcançável com ações orientadas a fatores complementares, transdisciplinares e interseccionais.
A filantropia pode contribuir com diferentes estratégias para, de um lado, fortalecer a sociedade civil brasileira que atua há muitos anos de forma consistente nesse campo e, por outro, fomentar a criação de mecanismos de garantia do acesso da população às políticas públicas orientadas a reduzir as desigualdades em vários campos dos sistemas alimentares.
E, não sendo uma via constituída apenas de lados, os dois caminhos se intercruzam, se encontram e se complementam, à medida que a sociedade civil é fundamental no controle social de políticas públicas.
Neste sentido, é crucial reconhecer os atores comprometidos e engajados com a segurança alimentar e com a alimentação de forma mais ampla, lidando diretamente com temas que articulam diversas dimensões dos sistemas alimentares como, por exemplo, o uso excessivo de agrotóxicos e o aumento do consumo de ultraprocessados — que também impactam na segurança alimentar.
Boas práticas da filantropia residem em apoiar o fortalecimento institucional e o protagonismo da sociedade civil e, com isso, contribuir tanto para assegurar o arcabouço social e a qualificação das políticas públicas como, também, para a criação de tecnologias sociais inovadoras que apontam para soluções de questões estruturais, a partir de perspectivas territoriais e locais — como foi o caso do projeto liderado pelo MTST — Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, que inspirou a construção do atual Programa Cozinha Solidária.
Atualmente, vemos a filantropia brasileira pouco engajada nesse campo de forma direta – e o Censo GIFE traz dados que evidenciam isso – ainda que esse cenário esteja sempre em movimento. Considerando a segurança alimentar, ainda há uma concentração de ações filantrópicas na perspectiva assistencial e com foco na doação de alimentos que varia sua intensidade de acordo com cenários, como aconteceu, por exemplo, no contexto da pandemia, assim como acontece agora, no evento climático extremo que atingiu o Rio Grande do Sul.
Não existe nenhuma dúvida sobre a importância de ações direcionadas em contextos emergenciais. Tampouco há dúvidas de que a sociedade civil ativa nos últimos anos foi fundamental para o processo de retomada das políticas públicas e, certamente, seguirá sendo para garantir qualificação, ampliação de acesso e continuidade do processo de implementação. Adensar a discussão e a prática filantrópica é fundamental para acompanhar as dinâmicas atuais e, ao mesmo tempo, atuar de forma perene no campo da segurança alimentar com ações estruturantes capazes de nutrir transformações – que sejam parte de um todo e se constituam como elementos do processo de construção de sistemas alimentares justos, saudáveis e sustentáveis.