Filantropia pela democracia no Brasil ontem, hoje e em frente

Em meio a ações e afirmações com viés autoritário do presidente da República e seus apoiadores, o mês de setembro, marcado pelo Dia da Independência do Brasil, demandou uma nova onda de declarações em defesa da democracia, tanto por parte das instituições de Estado, quanto pela sociedade civil organizada. A respeito desse contexto, o Ibirapitanga conversou com Ana Valéria Araújo, superintendente do Fundo Brasil de Direitos Humanos; e com José Marcelo Zacchi, secretário-geral do GIFE — Grupo de Institutos Fundações e Empresas; para ouvir suas percepções em três aspectos sobre o papel da filantropia no enfrentamento a este cenário.
1 | Desafios e dificuldades
O que ainda é preciso superar para construir apoios na direção de defesa da democracia
Para Ana Valéria Araújo, o atual momento é de uma democracia ameaçada e fragilizada. De acordo com ela, o governo “presta pouca atenção à crítica democrática, admitindo a perseguição a lideranças que buscam mostrar os problemas e demandar mudanças”.
Nesse sentido, Ana Valéria afirma: “é preciso mostrar que só se avança na conquista de direitos com uma sociedade civil forte e apoiada pela população. Não existe democracia para poucos”.
O apoio insuficiente a iniciativas relacionadas aos direitos humanos é um ponto-chave nessa discussão para a superintendente do Fundo Brasil de Direitos Humanos, que aponta: “questões de gênero, de enfrentamento ao racismo institucional, assuntos relativos à luta pela terra e conflitos fundiários são considerados áreas politicamente sensíveis”.
A diversidade também é um fator enfatizado por José Marcelo Zacchi, que acredita que “a construção de uma democracia sólida, plena e efetiva passa por múltiplas dimensões imprescindíveis: a promoção de cultura cidadã, pluralista, e do engajamento cívico positivo no cotidiano social de forma ampla; a criação de caminhos para a construção de equidade, diversidade e representatividade nos vários âmbitos da vida pública; o aprimoramento do sistema político e dos meios de participação, transparência e controle social no dia-a-dia da ação pública; a preservação de integridade, confiabilidade e pluralidade construtiva nos canais de debate público; entre outras.”
Para o secretário-geral do GIFE o desafio parte da amplitude da pauta de promoção e defesa da democracia, conectada ao presente contexto de ameaça, por termos atualmente no Brasil a necessidade de “coordenar esforços para preservar a integridade das instituições, repelir ataques a liberdades e conter a captura do espaço público pelo ódio, a intimidação e a manipulação”.
Ainda sobre este cenário, José Marcelo entende que a tarefa de defesa da democracia deve ser voltada a “preservar conquistas dos nossos percursos históricos de construção cidadã e revigorar a convergência e horizontes para seu aprofundamento, respondendo aos limites e desafios da nossa vida democrática e pública aprimorando-as por dentro e coletivamente, em lugar do inverso”.
O apoio a movimentos sociais e defensores de direitos humanos figura também como uma demanda. Essa frente, para Ana Valéria, “encontra muitas resistências entre atores do investimento social privado e da filantropia tradicional”. Ela chama atenção para um aspecto que demanda desenvolvimento na filantropia brasileira: “a maioria dos recursos neste campo ainda hoje provém de fontes internacionais”.
2 | A história e a experiência a considerar
Elementos e circunstâncias em que a filantropia conseguiu produzir contribuições significativas para democracia e defesa de liberdades
Em suas reflexões, José Marcelo Zacchi resgata a ação de organizações filantrópicas no passado, para a superação de diferentes contextos autoritários no mundo.
Ele lembra que a atuação se deu “por meio, por exemplo, do suporte a atores de resistência democrática em face de ditaduras brasileiras e latino-americanas no século XX ou do regime do apartheid na África do Sul — e pode ser igualmente decisiva para evitar retrocessos e renovar a capacidade de promover avanços no nosso momento presente”.
A experiência mais recente inspira a visão de Ana Valéria Araújo, que mira na profusão de iniciativas de enfrentamento às consequências da pandemia de covid-19. Ela traz como exemplo a união da filantropia junto ao movimento negro e a associações indígenas para organizar “forças-tarefa contra a fome”, a compra e doação de insumos hospitalares. Ana Valéria reconhece que “nas periferias urbanas, no campo, em todo o país, foram os movimentos sociais que se mobilizaram rapidamente para mitigar os efeitos sociais da pandemia, e a filantropia foi fundamental para apoiar essas ações e ajudar a viabilizá-las”.
3 | Reconstrução de um ambiente mais favorável a avanços
Contribuições que a filantropia pode dar à retomada da consolidação do campo democrático no Brasil
Ana Valéria Araújo defende que a filantropia deve contribuir com o fortalecimento da capacidade de organizações da sociedade civil, considerando também as consequências da pandemia de covid-19. Ela cita ações de defesa de direitos, iniciativas de enfrentamento ao retrocesso em políticas públicas e, sobretudo, ao projeto conservador e de ataque frontal a direitos conquistados, levado a cabo pelo atual governo federal.
Analisando este contexto, Ana Valéria ressalta a importância de apoios voltados ao fortalecimento institucional, com recursos de natureza flexível: “destaca-se que o repasse de recursos mais flexíveis para as bases acarreta uma transferência real de poder decisório a coletivos, grupos e ONGs. Esse formato fomenta mecanismos de participação ativa para fazer frente às violações de direitos em todo o país”.
Para Ana Valéria, a filantropia deve também estar atenta à necessidade de apoios emergenciais voltados à resposta ágil a demandas urgentes. Outra linha de atuação que ela visualiza é a garantia da capacidade de articulação entre ativistas, ONGs e grupos de base no enfrentamento a situações de insegurança e de violações de direitos, por meio da promoção de diálogos e confluência de atores.
“Finalmente, é preciso avançar na construção de uma narrativa pública favorável aos direitos humanos, apoiando atividades de comunicação estratégica e investindo em abordagens filantrópicas que possam levar a uma mudança no paradigma de doação, ajudando financiadores a entenderem por que e como apoiar uma sociedade civil independente”, conclui Ana Valéria.
Na perspectiva de José Marcelo Zacchi, o campo da filantropia deve “reconhecer o desgaste e ameaças aos fundamentos para a nossa própria atuação como setor e para a possibilidade de impulsionar iniciativas em quaisquer temas da agenda pública, somando às estratégias de ação cotidiana a contribuição para responder a esse cenário”.
Para ele, esse processo deve acontecer, por meio da promoção do pluralismo e do debate público qualificado, incluindo a defesa de direitos e liberdades fundamentais.
José Marcelo adiciona a importância da “preservação e aprimoramento das instituições públicas no rumo de maior integridade, representatividade e eficiência em face dos anseios públicos”.
Ele conclui que esse conjunto de estratégias representa “um chamado para o qual a filantropia brasileira não pode furtar-se nesse momento, para o revigoramento dos nossos horizontes futuros”.