Falando nisso: Ciclos e as referências africanas e afro-brasileiras no carnaval que passou

“Um facho sinuoso desliza sobre o chão, chacoalha as folhas, estremece a terra e borbulha as águas. É Dangbé, o vodum da proteção, do equilíbrio e do movimento. Nele, nada principia nem finda, tudo avança, tudo retorna. É o constante rodopio do universo, o círculo fechado, sentido materializado pela imagem da cobra engolindo a própria cauda.” (Trecho da sinopse do enredo da Viradouro em 2024)
O carnaval passou, mas os aprendizados que ele traz tendem a permanecer habitando nosso imaginário, pelo menos por um tempo. E não foi diferente em 2024, com os arrebatadores enredo e desfile da escola de samba campeã do grupo especial do Rio de Janeiro, a Viradouro, que abordou o culto aos Voduns dos povos da região da Costa da Mina, na África.
Rememoramos esse desfile campeão que também nos projeta para esse mês de março com outras narrativas sobre o feminino. Seja na figura das Sacerdotisas Voduns, das Guerreiras Mino e de Ludovina Pessoa, que se fez ponte para o culto no Brasil, o desfile honrou o protagonismo feminino daquelas que se fizeram guardiãs e perpetuadoras desse ciclo de avanço e retorno, da tradição e da resistência.
Não é a primeira vez que a Viradouro faz essa reverência ao fundamental e diverso papel das mulheres na cultura africana e afro-brasileira. Em 2020, a escola foi campeã com o enredo “Viradouro de alma lavada”, que homenageou as Ganhadeiras de Itapuã, lembrando o sistema de ganho da Bahia no período da escravidão, bem como as manifestações culturais e religiosas de Itapuã que influenciaram a grupo musical das Ganhadeiras e outros grupos regionais femininos do Brasil.
O desfile contou com a participação de lideranças do movimento de mulheres negras da sociedade civil organizada, mostrando também as conexões entre o carnaval e os movimentos sociais, tanto na produção dos enredos, quanto também na própria organização das escolas de samba enquanto ambiente de nutrição da resistência cultural negra, em especial na representatividade simbólica.
Esse fator estruturante para o combate ao racismo, que opera na mudança de percepção da sociedade sobre as pessoas negras e suas culturas, está na raiz do fazer das comunidades das escolas de samba e tem uma retomada também nas escolhas de temas para enredos dos últimos carnavais.
Só no último carnaval, metade das escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro abordou temas com referências africanas e afro-brasileiras — Beija-flor, Mangueira, Paraíso do Tuiuti, Portela, Vila Isabel e Viradouro. No caso das escolas de samba do Grupo Especial de São Paulo foram quatro — Camisa Verde e Branco, Dragões da Real, Independente Tricolor e Acadêmicos do Tucuruvi.
No Rio de Janeiro, para além das escolas de samba, houve destaque também para a trajetória de uma notável mulher negra, na homenagem a Conceição Evaristo, feita pela Banda de Ipanema, um dos maiores e mais tradicionais blocos da cidade, que ocupa as ruas do bairro na Zona Sul, onde parte da elite branca habita.
Olhando mais a fundo e deixando o êxtase da grande festa transmitir e nos fazer apreender seus ensinamentos, o carnaval pode passar, mas nos deixar como legado ferramentas para seguir na subversão de um imaginário racista, recolocando a cada ano elementos de culturas e intelectualidades ricas, que devem ser reconhecidas e valorizadas como negras.