Em três tempos: experiências de fomento aos cursos pré-vestibulares para pessoas negras

Cada coisa em seu tempo. Na maioria das carreiras — sobretudo aquelas mais socioeconomicamente valorizadas — antes de ocupar vagas no mercado de trabalho é preciso formação universitária. Mas é também nessa etapa que a população negra brasileira enfrentou, e ainda enfrenta, desafios de acesso. Cientes desse entrave, além de se dedicarem durante anos à incidência política por ações afirmativas de reparação à exclusão da população negra em função do racismo estrutural, organizações e movimentos negros desenvolveram e implementaram um mecanismo próprio de preparação para o acesso às universidades — os cursos pré-vestibulares para pessoas negras e de baixa renda.
Surgindo a partir da década de 1990, os cursos são fruto de uma forte capacidade de organização comunitária característica desses movimentos e organizações. Fazem parte hoje do conjunto de estratégias que possibilitaram a mudança no cenário das universidades e, consequentemente, no mercado de trabalho, ainda que muitos avanços sejam necessários.
Três iniciativas apoiadas pelo Ibirapitanga fazem parte e dão continuidade a essa história. Cada uma tem seu próprio histórico, que se localiza em um momento particular da rica jornada desses cursos pré-vestibulares. Marcando essa trajetória em três períodos, muito além do convencional, os tempos de cada organização se cruzam com diferentes fases desta caminhada.
Tempo de semear, tempo de avançar
Precursor dos cursos pré-vestibulares para pessoas negras e de baixa renda, o ICSB — Instituto Cultural Steve Biko lançou há 30 anos, em 1992, sua primeira iniciativa com esse foco. A organização baiana promove a defesa de políticas públicas para o enfrentamento às desigualdades raciais no campo educacional. Está voltada à ascensão política e social da população negra por meio da educação e do resgate de seus valores ancestrais.
O ICSB é fortemente reconhecido por seu trabalho pioneiro e de alta qualidade. Atualmente tem realizado parcerias com importantes organizações, redes e articulações do campo voltado à equidade racial, como o Fórum de quilombos educacionais, o Conselho estadual de desenvolvimento da comunidade negra e a Coalizão negra por direitos.
A organização compõe o conjunto de instituições negras com importantes legados no campo da luta pelos direitos humanos no Brasil, em especial na luta pelo acesso da população negra à educação. A iniciativa de pré-vestibular do ICSB já contemplou mais de 5.000 jovens e foi precursora de inovações, a exemplo da introdução de aulas de cidadania e consciência negra, que abordam a história da África e dos movimentos negros, precedendo em 13 anos a lei 10.639/03 que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura africana e afrobrasileira nas escolas. A partir dessa abordagem pioneira e inovadora, o pré-vestibular para jovens negros do ICSB foi reconhecido no Prêmio Nacional de Direitos Humanos, em 1999. O protagonismo assumido pela organização neste tema também contribuiu com a luta pela isenção das taxas de inscrições no vestibular e a implementação da política de cotas na Universidade Federal da Bahia.
Em seus esforços para ampliar o acesso de estudantes negros na universidade, há 20 anos o ICSB realiza o programa Oguntec, conjunto de ações de fomento à ciência, tecnologia e a inovação destinadas a estudantes negras/os de escolas públicas e comunidades populares. O programa se desenvolve por meio de cinco eixos de atuação: acesso ao ensino superior nas áreas de ciência e tecnologia; inclusão digital; popularização da ciência; formação de professores; e estímulo à cultura da inovação. O Instituto Ibirapitanga, em coinvestimento com o Instituto Serrapilheira, apoia desde 2021 o programa por meio do projeto “Oguntec: um novo tom para ciência no Brasil”.
De forma geral, o programa é voltado à difusão de um projeto inovador em um campo estratégico para o desenvolvimento socioeconômico sustentável no Brasil, pautado no investimento em ciência, tecnologia e inovação, valendo-se da riqueza de sua diversidade étnico-racial.
O apoio do Ibirapitanga e do Serrapilheira possibilitou a contratação de um especialista em educação à distância. Adotando um modelo híbrido, em 2022, o número de beneficiárias/os do Oguntec foi ampliado de 30 para 100 estudantes oriundos de um total de 10 escolas. A metodologia do projeto nesse novo modelo foi definida, contando com professores que realizarão parte das aulas nas escolas, onde sempre haverá monitores presencialmente para dar suporte aos alunos. Mensalmente, serão oferecidos aulões em teatros e auditórios para revisão de conteúdo. O Oguntec disponibilizará infraestrutura de internet e equipamentos nas escolas, para garantir acesso digital igualitário.
O projeto também avançou em termos de articulações. O IFBA — Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia fará um termo de cooperação com o ICSB, oferecendo acesso a laboratórios, aulas de robótica, contato com abordagens como cultura maker e diálogo com professores e monitores. Uma parceria com a UniLAB colocará profissionais e estudantes africanos de Pedagogia em conexão com os estudantes do Oguntec, com foco em resgate e fortalecimento ancestral. Além da chancela na articulação com as escolas participantes, a Secretaria de Educação do Estado da Bahia fornecerá tablets e equipamentos para uso dos estudantes.
Aliando décadas de experiência ao ajuste de rota que as consequências da pandemia de covid-19 trouxe, o ICSB oxigenou o Oguntec, além de se reinventar enquanto organização no processo.
Tempo de compartilhar e fortalecer experiências
Formada em 2013 por ativistas, pesquisadores e cidadãos identificados com a visão de um Rio de Janeiro mais integrado, a Casa Fluminense funciona como pólo de uma rede de pessoas e organizações dedicado a fomentar ações compartilhadas para a promoção de igualdade, o aprofundamento democrático e o desenvolvimento sustentável na região metropolitana do estado. A fundação da organização voltou-se ao enfrentamento a dois desafios. Por um lado a persistente desigualdade socioeconômica, sócio-territorial e racial na região metropolitana do Rio de Janeiro, criada pela histórica concentração da agenda pública e investimentos no eixo central da cidade do Rio de Janeiro. Por outro lado, o reconhecimento de que existiam poucos espaços de articulação entre atores da sociedade civil, no conjunto da metrópole, tornando difícil o sentido de pertencimento sócio-territorial ampliado e, consequentemente, a reivindicação de políticas públicas nessa escala. Dessa forma, a Casa Fluminense se constitui como um ambiente comum para promover a reflexão e proposição de políticas públicas no estado do Rio de Janeiro.
Agindo no nível local, a Casa Fluminense constrói parcerias com associações, grupos comunitários, culturais e de comunicação popular para compreender os desafios e demandas dos territórios, bem como para colaborar diretamente na construção da Agenda Rio 2030, conjunto de propostas da organização para a região metropolitana do estado. A produção de informação também é uma frente de trabalho da Casa Fluminense, a partir da qual estabelece parcerias com think tanks, universidades e grupos de pesquisa dedicados à produção de conhecimento relacionada aos eixos da Agenda Rio 2030. Na área de mobilização e fortalecimento de redes, a Casa Fluminense capacitou mais de 200 lideranças sociais ao longo de cinco edições do Curso de Políticas Públicas.
Há sete anos, a organização criou o Fundo Casa Fluminense, que busca fortalecer atividades para a redução de desigualdades na região metropolitana do Rio. Entre 2016 e 2021, o Fundo investiu mais de R$ 700 mil para apoiar 170 projetos. Uma das estratégias de apoio do Fundo é o desenvolvimento institucional de pré-vestibulares populares e comunitários atuantes nas periferias da região metropolitana do Rio de Janeiro, por meio de fomento financeiro e do intercâmbio de boas práticas pedagógicas e de gestão, para ampliar o acesso dos estudantes às universidades através das ações afirmativas.
Com apoio do Ibirapitanga desde 2020, a iniciativa “Juventude popular na universidade” busca a capacitação e o intercâmbio de experiências entre os movimentos liderados por mulheres e pessoas negras e a Casa Fluminense. O apoio viabiliza formação em metodologias de gestão, mobilização e engajamento; acompanhamento de cada instituição de ensino; e sistematização dos aprendizados durante o percurso.
Em 2020, oito cursos pré-vestibulares foram apoiados — Coelho Neto universitário, Santa Cruz universitário, Pré-vestibular Comunitário Esperança Garcia, Núcleo Solano Trindade, Pré-vestibular Ampara Queimados, Pré-vestibular para negros e carentes Vila Operária, Uneafro Belford Roxo e Nós por Nós Jardim Catarina.
No primeiro ano da pandemia de covid-19, a iniciativa foi fundamental tanto para contribuir na infraestrutura para aulas remotas, quanto para a incidência política pelo adiamento do ENEM.
A continuidade do projeto em 2021 contou com a participação de mais um curso, o Perifa Zumbi. Neste ano, a Casa Fluminense conseguiu realizar um encontro presencial com os pré-vestibulares, o que movimentou as organizações e aprofundou a parceria. 18 alunos foram aprovados nos exames vestibulares e as turmas permaneceram cheias no decorrer do ano letivo.
Em 2022, a Casa Fluminense irá ampliar o número de cursos pré-vestibulares apoiados para 10 e contará com o fortalecimento da estratégia, ampliando o engajamento com a consolidação de uma rede de lideranças.
Tempo de conhecer e contar a história
Fundado em 2008 e vinculado ao programa de pós-graduação em Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas, o NEPAC-Unicamp — Núcleo de pesquisa em participação, movimentos sociais e ação coletiva tem como principal objeto de investigação a democracia brasileira, sob uma perspectiva analítica que busca integrar ideias, atores e instituições. A agenda do núcleo se estrutura em torno de três linhas de pesquisa: confronto político e relação entre movimentos sociais e Estado; participação institucional, políticas públicas e democracia; novas mídias e participação política.
Atualmente, o NEPAC é referência na área de estudos da participação e dos movimentos sociais e tem conduzido importante liderança na cooperação científica. No ambiente universitário, o núcleo contribuiu para a organização da Rede democracia e participação, com mais de 45 centros universitários no Brasil. A rede organizou campanhas, publicou artigos para defender os espaços participativos, em especial conselhos, e colaborou para a produção do livro “A democracia necessária e desejada”. Por meio dos professores que o integram, o NEPAC tem contribuído também em três espaços de articulação: a Área temática de participação da Associação Brasileira de Ciência Política; o Grupo de trabalho sobre movimentos sociais e protestos na ANPOCS; e os encontros internacionais Participação, Democracia e Políticas Públicas.
Nos últimos anos, estudantes e pesquisadores de graduação, mestrado e doutorado integrantes do NEPAC têm desenvolvido pesquisas sobre questões raciais, formando um grupo de pesquisa que troca bibliografias e discute trabalhos voltados a adensar o tema dentro do núcleo. Num contexto de debate ainda incipiente sobre a questão racial na Ciência Política brasileira, o grupo busca relacionar o tema ao processo de construção da democracia no Brasil, a partir de abordagem sobre os ativismos negros. Diante de uma realidade em que a perspectiva racial segue limitada nos debates teóricos sobre democracia, movimentos sociais e participação, o NEPAC busca suprir a lacuna por meio deste grupo.
Com o apoio do Ibirapitanga, o núcleo conduz o projeto “Memória negra: cursinhos populares e o associativismo negro brasileiro”, um mapeamento colaborativo das experiências de cursos pré-vestibulares populares voltados à população negra no Brasil. O mapeamento tem como objetivos ampliar o conhecimento sobre essas iniciativas e contribuir para a construção da memória negra, recuperando trajetórias e narrativas dessas experiências.
A partir dessa iniciativa o NEPAC busca colaborar para a afirmação dos cursos pré-vestibulares populares como atores políticos na luta pela ampliação do acesso ao ensino público superior e como movimentos sociais de luta antirracista. E o faz desde a colaboração de acadêmicos negros, um processo que revela a contribuição científica da ampliação da entrada de pessoas negras nas universidades por meio das ações afirmativas.
A abordagem do projeto conecta a construção de memória do movimento negro no Brasil ao levantamento dos cursos pré-vestibulares do país como espaços de associativismo e articulação política, considerando a sua centralidade na luta, no desenvolvimento e na implementação de mecanismos de efetivação das políticas de ação afirmativa. O projeto articula essas dimensões com a discussão sobre raça na Ciência Política e na democracia brasileiras, para viabilizar uma inflexão na agenda de pesquisa e incidência direta nesse campo.
Para o mapeamento, o núcleo parte do reconhecimento das iniciativas que surgiram nos anos 1990, sendo duas precursoras — do Instituto Cultural Steve Biko, em Salvador, e do Núcleo de Consciência Negra, da Universidade de São Paulo — bem como duas articuladoras e impulsionadoras, o Pré-vestibular para negros e carentes, em Petrópolis, no Rio de Janeiro, e a Educafro, no Rio de Janeiro e em São Paulo.
De lá para cá, o núcleo percebe que as experiências se multiplicaram e combinam diferentes atividades políticas, funcionando como laboratórios e aglutinadoras de diversos movimentos. Para o NEPAC, muito além de funcionarem como porta de entrada para a universidade, os cursos contribuem com o reconhecimento dos jovens negros de sua história e identidade, oferecendo canais de conexão com a política e tecendo espécies de “teias do ativismo”. Em sua matriz histórica, esses cursos se constituíram enquanto importantes espaços de debate e de formulação das políticas de cotas raciais no Brasil.
Em abril de 2022, o NEPAC, em parceria com a Ação Educativa, lançou um formulário para o mapeamento colaborativo das experiências de cursos pré-vestibulares populares voltados à população negra no Brasil. Nessa fase do projeto, o núcleo está localizando pesquisadores sobre o tema pelo Brasil, de áreas como geografia, educação, serviço social, entre outras. Além da parceria de comunicação com a Ação Educativa, o mapeamento foi divulgado no Outras Palavras e na Revista IHU online.
Navegar o mar inventivo de iniciativas que furam concretos e vislumbram outros mundos — essa é a importante e instigante tarefa que o campo voltado à equidade racial tem à frente ao se voltar para conhecer e aprimorar a experiência dos cursos pré-vestibulares para pessoas negras.