No rastro dos agrotóxicos, estudos revelam impactos para os sistemas alimentares no Brasil

A problemática em relação ao uso e consumo abusivo de agrotóxicos no Brasil encontra, no presente contexto, uma nova onda de retrocessos. Entre eles estão alterações na regulação de agrotóxicos que flexibilizam a liberação de centenas de novos produtos, além do enfraquecimento progressivo da legislação vigente via decretos e portarias e da estrutura de órgãos ambientais, cada vez menos voltada à regulação. Tudo isso sob a chancela do atual governo federal, que reforça viés autoritário e uma agenda política na contramão da saúde pública, meio ambiente e do direito à alimentação adequada e saudável.
Importantes iniciativas de enfrentamento a esse cenário têm surgido, especialmente de organizações como a Abrasco – Associação Brasileira de Saúde Coletiva e do Idec – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. As duas organizações, originárias do processo de mobilização da sociedade civil contra a ditadura militar – período também marcado pelo autoritarismo, com recrudescimento dos problemas sociais – e de início da reconstrução democrática no Brasil. O contexto atual também requer abordagens que compreendam a questão dos agrotóxicos desde perspectivas multidimensionais e sistêmicas, possibilidades que encontram campo fértil na experiência dessas duas organizações.
Fundada em 1979, a Abrasco nasceu da emergência do campo da saúde coletiva no Brasil. A organização protagonizou importantes momentos desta pauta, como a participação na elaboração da temática da saúde da Constituição de 1988 e a influência na aprovação das leis que estabeleceram a formulação e implantação do SUS – Sistema Único de Saúde.
Hoje a Abrasco, que congrega indivíduos e instituições ocupados com o ensino de Graduação e Pós-Graduação, a pesquisa, a cooperação e a prestação de serviços em Saúde Pública/Coletiva, atua como mecanismo de apoio e articulação entre os centros de treinamento, ensino e pesquisa para fortalecimento mútuo das entidades associadas, ampliação do diálogo com a comunidade técnico-científica e desta com os serviços de saúde, as organizações governamentais, não governamentais e a sociedade civil.
Compõem a organização três comissões, dois comitês e 21 grupos temáticos (GTs), estruturas que articulam-se junto a organizações da sociedade civil e favorecem a ampla cobertura de temas relacionados à saúde coletiva. Entre eles está o GT de “Saúde e ambiente”, por meio do qual a Abrasco conduz a “Agenda estratégica de pesquisa-ação em saúde e agrotóxicos”. A iniciativa é voltada a produzir subsídios às tomadas de decisão na conjuntura político-regulatória brasileira em torno dos agrotóxicos, evidenciando os impactos socioeconômicos de seu uso no Brasil. O projeto conta com doação do Instituto Ibirapitanga, que também apoia a organização institucionalmente.
Atuante na “Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida”, na década de 2010, a Abrasco passou a contribuir mais diretamente para a incidência política na regulação do uso dos agrotóxicos à luz dos direitos humanos e ainda o faz de forma correlacionada às questões de saúde coletiva e ambientais. O “Dossiê Abrasco – um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde” é um consistente exemplo deste processo, reunindo em 600 páginas informações de centenas de livros e trabalhos publicados em revistas nacionais e internacionais, que revelam evidências científicas e correlação direta entre uso de agrotóxicos e problemas de saúde. Juntamente com outras entidades da sociedade civil, a Abrasco elaborou e apresentou o Projeto de lei de iniciativa popular nº 6.670/2016 que busca instituir a PNARA – Política Nacional de Redução de Agrotóxicos.
Com a iniciativa de agenda estratégica, a associação coloca sua experiência à serviço, em especial, da contenção de retrocessos nas políticas sobre agrotóxicos atualmente. O recente “Dossiê Contra o Pacote do Veneno e em Defesa da Vida”, parceria entre Abrasco, Associação Brasileira de Agroecologia e Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos, é uma revisão do dossiê científico e técnico publicado em 2018, contra o Projeto de Lei 6.299/2002 – conhecido como Pacote do Veneno – e a favor do Projeto de Lei que institui a PNARA. Além de apresentar as diferenças entre os dois projetos de lei, o dossiê alerta para a intensa mudança na classificação toxicológica desses produtos pela ANVISA. De acordo com o documento, em 2019, mais de 90% dos agrotóxicos incluídos na classe dos “extremamente tóxicos”, foram distribuídos para outras classes. De um total de 1942 agrotóxicos avaliados, 46% passaram à categoria “improvável causar dano agudo à saúde”, enquanto só 2% continuaram classificados como extremamente tóxicos.
Uma parte importante do dossiê está voltada à compilação de experiências regulatórias positivas, com foco em sistemas agroalimentares mais saudáveis e sustentáveis nos âmbitos municipais e estaduais, por meio do fomento à agroecologia, à produção orgânica, à proibição de agrotóxicos ou de práticas como a pulverização aérea, à criação de zonas livres de agrotóxicos entre muitas outras que mostram a vitalidade e eficiência de políticas públicas para boas práticas nesse campo. Um mapa completo dessas experiências em todo o país, sobretudo no âmbito municipal, está disponível no site “Agroecologia em rede” – iniciativa da ABA – Associação Brasileira de Agroecologia e ANA – Articulação Nacional de Agroecologia.
Além do dossiê, o projeto do GT contemplou a elaboração dos relatórios “Uma política de Incentivo fiscal a agrotóxicos no Brasil é injustificável e insustentável” e “Fim dos incentivos fiscais aos agrotóxicos e cenários econômicos: impactos sobre custo de produção, a renda dos agricultores e reflexos sobre o preço dos alimentos”. Os dois documentos são originários dos esforços para evidenciar os incentivos fiscais como uma das ferramentas que o Estado utiliza para ampliar o acesso dos grandes produtores rurais aos agrotóxicos.
As publicações desempenham a importante função de deslocar o centro do debate. Desmistificando um suposto benefício na redução do custo de produção pelo uso de agrotóxicos como justificativa para a desoneração, os relatórios jogam luz à necessidade de considerar os altos custos socioeconômicos de doenças, mortes e degradação ambiental relacionadas aos mesmos.
Esses documentos foram enviados ao STF – Supremo Tribunal Federal para subsidiar a ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade 5553/2016, que questiona dois dispositivos legais de incentivos fiscais aos agrotóxicos – o Decreto 7660/11 e o Convênio 100/97 do Confaz – Conselho Nacional de Política Fazendário. A Abrasco participa ainda da ação na condição de amicus curiae, ponto de convergência com a atuação de outras organizações, a exemplo do Idec, que desempenha o mesmo papel nesta ADI.
Criado em 1987, o Idec é uma das principais associações de consumidores do Brasil, atuando na implementação da Lei de Ação Civil Pública e contribuindo ao Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, em 1990. Sem fins lucrativos, independente de empresas, partidos ou governos, foi fundado para orientar, conscientizar, defender a ética na relação de consumo e lutar pelos direitos de consumidores-cidadãos. Junto à Abrasco e a outras organizações, o Idec compõe redes importantes, como a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável – da qual é um dos principais articuladores desde sua concepção – que atualmente também conta com o apoio do Ibirapitanga. Integra também a Plataforma Chega de Agrotóxicos. Por meio de seu programa de Alimentação, o instituto atua na prevenção de excesso de peso e doenças crônicas não transmissíveis – as DCNTs –, bem como na defesa do acesso a alimentos orgânicos e contra o uso de agrotóxicos e transgênicos, utilizando como estratégia a promoção de processos regulatórios transparentes e livres de conflito de interesses, com forte abordagem na rotulagem de produtos alimentícios.
Desde 2019, o Idec conta com apoio do Ibirapitanga ao projeto “Produtos ultraprocessados e agrotóxicos no Brasil: duas faces de um mesmo problema”, para a realização de pesquisas com teste de laboratório, ações de comunicação e advocacy voltados a evidenciar a presença dos agrotóxicos em produtos ultraprocessados e os efeitos do seu consumo. A iniciativa busca informar medidas regulatórias e normativas que desestimulem o consumo, por meio da construção de narrativas e iniciativas de engajamento da sociedade por uma alimentação adequada e saudável. Inclui também processo de avaliação da adequação às normas e tradução das informações para uma forma mais amigável aos cidadãos consumidores sobre a rotulagem de produtos ultraprocessados. O projeto estabelece de forma estruturada uma relação entre os campos da saúde humana e meio ambiente, na defesa do direito à informação.
O primeiro ciclo da iniciativa permitiu a consolidação de um campo de pesquisa até então inédito – a conexão entre produtos ultraprocessados e o uso de agrotóxicos, que evidencia a operação e consequências sistêmicas da indústria alimentícia. Na pesquisa de laboratório, cuja metodologia foi criada no contexto do projeto, ao todo, foram analisados 27 produtos, tendo como critérios de seleção exclusivamente ultraprocessados consumidos pela população brasileira; aqueles com maiores teores de açúcar, trigo, milho e soja na formulação; alto apelo ao público infantil; e reforço publicitário de benefícios à saúde. Foram detectados agrotóxicos nas oito categorias estudadas: refrigerante, suco, bebida de soja, salgadinho, pães, cereais matinais, bolachas doces e biscoitos salgados.
A iniciativa avança numa nova fronteira de conhecimento, ao quebrar o mito de que o processamento dos alimentos acabaria com a presença de agrotóxicos. Assim, a dimensão comum de percepção dos agrotóxicos apenas em verduras, legumes e frutas – alimentos in natura – passa a ser alargada para uma presença que acompanha a produção até o ultraprocessado no pacote, pondo em questão seu apelo industrial de segurança.
Lançada em junho de 2021, a cartilha “Tem veneno nesse pacote” divulga os primeiros resultados sobre a presença de agrotóxicos em produtos ultraprocessados. Dentro do grupo de produtos avaliados, as famosas “bisnaguinhas” apresentaram presença de mais de oito agrotóxicos, incluindo o glifosato – perigoso produto com potencial cancerígeno. Com seus resultados, o alcance da pesquisa vai além, evidenciando o atual modelo de agricultura brasileiro, voltado para a produção de commodities que, por sua vez, são cultivadas para a produção de ultraprocessados, criação de animais explorados para consumo, para o setor energético e em boa parte para a exportação. A publicação também aborda como a produção em monocultura, em geral com o uso de sementes transgênicas e aplicação exorbitante de agrotóxicos, está diretamente associada à diminuição da biodiversidade e a danos para a saúde humana.
O lançamento dos resultados foi acompanhado de repercussão na imprensa e campanha nas mídias sociais do Idec. Veículos impressos e online, programas de rádio, podcasts e programas de TV publicaram os dados da pesquisa, incluindo artigo de opinião no Nexo Políticas Públicas. A iniciativa contou também com mídia espontânea, a exemplo de um vídeo em um perfil de humor que teve grande repercussão nas redes sociais, rendendo mais de 320 mil visualizações no Instagram.
Os esforços da Abrasco e do Idec foram bem-sucedidos na produção de dados confiáveis baseados em pesquisa científica, para apoiar a contenção de retrocessos e salvaguardar um ambiente propício às possibilidades futuras de avanço na regulação do uso dos agrotóxicos. Sua contribuição ainda vai além e fomenta o debate sobre a transformação dos sistemas alimentares, permitindo pontos de inflexão nas abordagens críticas à indústria alimentícia e ao agronegócio, a partir de evidências que expõem a correlação, complexidade e extensão de seu funcionamento.