Voltar para histórias

“Muitas fomes e crises sistêmicas” — Entrevista com Sandra Chaves

Sistemas alimentares
29.06.2022

O crescimento da insegurança alimentar, a prevalência das doenças crônicas não transmissíveis, a procura por produtos ultraprocessados em detrimento de alimentos in natura, o aumento dos preços, entre outras questões, estão conectados pela lógica de funcionamento dos sistemas alimentares. A fome é um processo multifatorial que está relacionado às políticas em torno da maneira como os alimentos são produzidos e distribuídos no Brasil.

Para discutir a insegurança alimentar, sob uma perspectiva sistêmica, o Ibirapitanga conversou com Sandra Chaves, nutricionista, doutora em Administração pública, professora da UFBA — Universidade Federal da Bahia e vice-coordenadora da Rede PENSSAN — Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. 

Ibirapitanga: Recentemente lançado, o 2º VIGISAN — Inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil, trouxe um retrato da triste e realidade da fome no país, mas também se consolida como evidência dos esforços não-governamentais de pesquisa para expor tal situação. Como você observa a continuidade e aprimoramento desse tipo de iniciativa no presente contexto político brasilero em torno da questão alimentar?

Sandra Chaves: O foco da Rede PENSSAN é a promoção da pesquisa cidadã, como previsto em seu estatuto. Então, importa produzir o conhecimento não apenas para conhecer o outro, mas junto com o outro. Neste sentido, é necessário trabalhar com a sociedade civil, aprendendo com as estratégias de sobrevivência, alternativas e saídas nessa situação de exclusão, fome e desigualdades. A Rede PENSSAN não foi articulada exatamente como realizadora de pesquisas imediatas, mas no contexto do silêncio do governo na garantia de pesquisas sistemáticas sobre insegurança alimentar, com a paralisação do Censo((O Secretário Especial da Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, alegou que o Censo Demográfico do IBGE não foi realizado em 2021, por causa da falta de orçamento.)) do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas, ficamos sem saber como está a situação no país. Então, pautamos o 1º VIGISAN, com o aporte financeiro fortemente ancorado no Instituto Ibirapitanga, que também apoiou a segunda pesquisa, em parceria com outras organizações da sociedade civil.  Foi muito importante, porque vivemos uma conjuntura de redução do fomento pelas agências clássicas de financiamento das pesquisas no Brasil, como o CNPq, por exemplo. As fundações de amparo à pesquisa dos estados estão praticamente paralisadas, então, não existe uma agenda que trabalhe com determinadas questões, como fome, desigualdade e todas as suas consequências. É importante que possamos ter várias entidades, instituições e movimentos da sociedade civil produzindo conhecimento sobre nossa realidade, é isso que vai nos ajudar a desvendar mais esse país e poder construir políticas públicas que realmente tenham relevância na vida das pessoas.

Ibirapitanga: A pesquisa revela um cenário desastroso, indicando a deterioração de uma situação que já era muito grave. Como chegamos até aqui? Quais fatores foram decisivos para uma piora tão rápida e radical nesse cenário?

Sandra Chaves: Desde o 1º VIGISAN, identificamos 116 milhões de brasileiros em algum grau de insegurança alimentar. Destes, 19 milhões em situação de privação — insegurança alimentar grave. Aí alguns podem culpabilizar a pandemia, mas vamos olhar mais para trás. Em 2013, nós havíamos alcançado 77% dos domicílios brasileiros em segurança alimentar, um avanço bem grande em relação ao resultado de 2004, que apontava o índice em 64%. Então, chegamos a 77% dos brasileiros em segurança, 33% em insegurança, com espaço para mobilizações, e 4% em insegurança grave, o que permitiu a retirada do Brasil do mapa da fome, naquela época em que a FAO ainda fazia o levantamento.

Em 2017, o Inquérito de insegurança alimentar foi feito juntamente com a POF – Pesquisa de Orçamento Familiar e o patamar de segurança alimentar caiu para 63%, portanto já retrocedemos para antes de 2004. Não havia pandemia. Quais cenários nós temos para análise? O impeachment, outro governo que tomava posse com todas medidas que conhecemos: reforma trabalhista, paralisação de um conjunto de políticas públicas exitosas, como o PAA – Programa de Aquisição de Alimentos da agricultura familiar. Tivemos também a eliminação do componente “agricultura familiar” do Ministério da Agricultura, o que incidiu negativamente nas políticas públicas.

Em 1º de janeiro de 2019, houve mudanças na Lei orgânica de segurança alimentar, que colidiu na extinção do CONSEA — Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, bem como na não convocação da 6º Conferência Nacional de Segurança Alimentar, grande espaço público de escuta das demandas da sociedade e definição de políticas públicas, que funcionava de 2004 até então. Houve também o desmonte do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, com a paralisia de uma série de ações. Assim, toda a nossa sociedade ficou extremamente sensível à insegurança alimentar.

Aí em 2020 veio a pandemia, que foi global, mas nós somos o segundo maior número de óbitos no mundo. Há uma gestão equivocada da crise sanitária, com a negação e o retardamento na introdução do sistema vacinal.

Ônus existe com a pandemia, mas é importante que fique muito claro para a sociedade brasileira que a pandemia não pode ser culpabilizada por tudo, porque o declínio já estava acontecendo. A fome já estava eclodindo nos lares brasileiros, devido às mudanças no mundo do trabalho, aos equívocos, interrupções e descadastramentos no pagamento do bolsa família, cenário que se agravou ainda mais no contexto da pandemia.

Quando pensamos em segurança alimentar, pensamos em produção, distribuição, comercialização e acesso das famílias ao alimento. Este acesso depende da viabilidade física e financeira, de informações para decisões de consumo, tradições, estado de saúde, acesso ao saneamento e condições que permitam que o indivíduo, ao consumir o alimento, aproveite integralmente aquilo que está sendo ofertado. Em 2019, tivemos a maior liberação – que se conhece no mundo – de agrotóxicos. Um uso indiscriminado de produtos nocivos que geram impactos à saúde. Quando o governo eliminou a agricultura familiar da pauta do MAPA – Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, favoreceu outro tipo de negócio, que diminui o alimento da mesa do brasileiro.

 No contexto anterior à pandemia, tivemos o aumento do custo de produtos da cesta básica e do arroz que chegou a 8 reais, porque deixamos de ter estoque regulador de preço de alimentos. Ou seja, estava melhor vender para fora do que para dentro. E a mesa do brasileiro? Onde está a proteção do consumo, com uma  cesta básica que veio crescendo absurdamente de preço, antes da pandemia? Então, tudo isso deve ser colocado nessa conta para explicar o que aconteceu. De certo, a pandemia gerou uma pressão, mas o desmonte vinha sendo construído. É muito importante frisar que não adianta dizer “acabou a pandemia a economia vai voltar”. Não vai, se não tivermos uma política de investimento clara, de crédito para o trabalho, política de geração de trabalho e renda de verdade.

No contexto da pandemia, houve a ruptura do mecanismo da agricultura familiar para o consumidor, bem como a paralisia de feiras, mercados e a paralisação na compra de alimentos da agricultura familiar para o programa de alimentação escolar, praticamente em todo país. O que causou a situação da insegurança alimentar ainda mais grave no campo. Então, nós chegamos aqui por conta de um desmonte de políticas públicas que veio acontecendo e não é um acidente, é um projeto que responde a determinados interesses, uma forma de conceber a economia e a distribuição de riquezas no país, que se potencializou com a pandemia, que serve de escudo para essa política de desmantelamento do social. 

Ibirapitanga: A pandemia é usada como desculpa e agora também a guerra na Ucrânia, certo? 

Sandra Chaves: Sim, agora colocam a guerra da Ucrânia como “culpada de tudo” e sabemos que o custo dos combustíveis, por exemplo, já vinha crescendo de maneira absurda. Recentemente eu vi um comentário que fala da redução do ICMS que foi aprovada pelo Congresso Nacional. Ficção científica. Só faz empobrecer mais quem é pobre, que são os estados. Porque isso não mexe no preço do combustível, porque o valor do ICMS depende do valor da base do combustível, o problema é na geração. Não é isso [redução de ICMS] que vai mudar a política de conformação do preço. Mas passa batido como uma “justificativa de ação” que transfere o ônus para o outro. É complexo.     

Ibirapitanga: Em abril de 2022 houve o lançamento da Vigitel — Vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Já em maio deste ano houve o lançamento do Covitel — Inquérito telefônico de fatores de risco para doenças crônicas não transmissíveis em tempos de pandemia. As duas pesquisas contam com a alimentação como um componente central e abordam também a questão da obesidade. Agora com os dados do 2º VIGISAN disponíveis, quais olhares podemos lançar sobre a coexistência da fome com a obesidade sob a perspectiva de sistemas alimentares?

Sandra Chaves: Eu faço parte do conselho consultivo da Vital Strategies e fui ao lançamento do Covitel. Propusemos e realizamos uma atividade no V ENPSSAN — Encontro nacional de pesquisa em soberania e segurança alimentar e nutricional, fazendo uma análise a partir do 1º Vigisan e do Covitel. Tristemente, reconhecemos que ambos os discursos apontam para um conjunto de desigualdades que marcam a nossa sociedade e a condição de viver e morrer das pessoas. Então, morar na Região Norte e Nordeste, nas zonas rurais, ter pessoa do gênero feminino de referência no domicílio, autodeclaradas pardas ou pretas e/ou de baixa escolaridade definem o maior risco de fome e de doenças crônicas não-transmissíveis, onde se inclui o sobrepeso e obesidade. 

Nós temos uma marca de desigualdade estrutural que vai incidir da mesma forma nos quadros de doenças cardiovasculares, da obesidade e da fome. Quanto à obesidade, segundo os dados apresentados no 2º Vigisan — que nessa nova versão agrupou bastante informação sobre alimentação — em primeira leitura, 15,4% das famílias brasileiras não consumiam diariamente café da manhã, 10% não almoçavam todos os dias e 19,9% não jantavam todos os dias. Ou seja, pessoas que moram em quase 20% dos domicílios mapeados dormem com fome.

Quando analisamos o padrão alimentar, entendemos melhor o aumento da obesidade. Voltando para a questão sistêmica, constatamos que não dá para culpabilizar a pessoa pelo seu problema de saúde, seja a doença crônica, a obesidade ou outras. Temos olhado muito para a obesidade e também para o ambiente alimentar em que aquela população vive e para o sistema alimentar onde se insere esse ambiente. Os estudos têm demonstrado o seguinte: as fronteiras que marcavam a obesidade acabaram, há 20 anos atrás ela era tida como doença de rico e a desnutrição era classificada como doença de pobre. Essa marcação se encerrou. Temos obesidade em todas as classes, regiões e tipos de vida — infância, adulto e alguns idosos. Onde há maior concentração de obesidade, há menor oferta de hortifrutigranjeiros. E existem mais ofertas de ultraprocessados, de produtos industrializados com alta densidade energética, baixo valor nutricional e pouca fibra.

O consumo de arroz e feijão foi diminuído. 46,5% das famílias brasileiras reduziram o consumo de feijão, 49% não compraram feijão nos últimos três meses antes da pesquisa, entre dezembro e fevereiro. 49% das famílias reduziram o consumo de arroz, 45,8% não  consumiram arroz nos últimos três meses. 70% das famílias não compraram carne nos últimos três meses. 73,6% não compraram vegetais nos últimos três meses e 64% não compraram frutas, então o que essa população está comendo? 

Eu costumo dizer que arroz e feijão explica a sobrevivência da nossa espécie enquanto brasileiros de norte a sul do país, por conta de sua complementaridade que atribui a composição perfeita de aminoácidos. Ora, se quase 50% das famílias, nesse país estão deixando de comprar arroz e feijão nos últimos três meses, é muito impactante, é absolutamente chocante e perverso. O que as famílias comerão? Ultraprocessados, que custam barato, cheios de açúcar, de carboidratos simples, de gordura de diferentes tipos que dão a noção de saciedade. 

A farinha de mandioca, que é a base de alimentação no Nordeste, está batendo sete reais, a básica está em cinco. É muito caro para um produto que é da cultura alimentar. Se todos estes valores fossem diretamente para o produtor, poderíamos ter uma melhoria da qualidade de vida do trabalhador rural, mas sabemos que não e, certamente, existe toda uma rede de intermediação que compromete o que entra na mesa do brasileiro, dando lugar a um alimento de baixa qualidade, o que no Guia alimentar brasileiro nem chamamos de alimento, são produtos ultraprocessados, de baixo valor nutricional. Fora outras questões da qualidade de vida, como o próprio estresse emocional da sobrevivência.

Ontem à noite levei a minha mãe para assistir ao culto a Santo Antônio, muito forte aqui na Bahia. Saímos da missa tarde e foi uma noite atípica em Salvador, com muito vento e temperatura amena. Ao sair da igreja, me deparei com uma senhora, sozinha, no largo,   vendendo bolo de carimã. Às 21h, uma senhora idosa naquela situação. Aquilo me doeu muito. Cidades como a nossa, que viveram o escravagismo, são as que mais têm comida de rua, porque a população negra esteve na rua desde a “tal abolição”.

Em Salvador, boa parte da população está inserida na economia informal, ambulantes de tudo. Existe toda uma cultura alimentar da rua, acarajé, abará, mingau, queijo coalho, essas coisas todas. Com a pandemia, isso tudo parou e tinha que parar. Qual foi a proteção para essas pessoas? Nem todos eles conseguiram entrar no cadastro de auxílio emergencial. E essas pessoas ficaram aí comendo o que?

Hoje temos ainda muito o que desvendar, mas cada vez mais estamos tirando a obesidade do sujeito para pensar no entorno da vida dele. A questão do acesso, referências alimentares, a formação do próprio gosto, em uma sociedade em que o marketing alimentar é tão forte e quer vender industrializado o tempo todo. É o “danoninho que vale por um bifinho”((Campanha da década de 1980 que atribuía o mesmo valor nutricional do produto lácteo industrializado a um pedaço de bife de carne bovina.)) , as proteínas que entram no suplemento, que é ridículo uma criança que entra no mercado e diz “eu quero brócolis“((Campanha do produto “Sustagem Kids”, suplemento alimentar com alto teor de açúcar.)) e a voz em off que diz, “essa criança não existe” e oferece o suplemento tal. De certo, quanto mais você compromete o acesso, quanto mais baixa renda, menor o consumo de vegetais e frutas. Em Salvador o molho de alface está custando no mínimo três reais. O que é um molho de alface para uma família de quatro, cinco, seis  pessoas com fome? Alface é ótimo, mas não pode ser o centro da refeição. Temos que ter alface, arroz, feijão, carne e legume cozido. Alface só não dá satisfação.

Ibirapitanga: Ou recorre ao miojo, que dá a ideia de que está comendo um macarrão. 

Sandra Chaves: Miojo é uma tragédia nutricional que é de baixo custo, rápido e bote lá quatro gramas de sódio direto na veia.   

Ibirapitanga: Isso que você trouxe, Sandra, é importante porque temos cada vez mais observado, a partir de outras pesquisas e incidências, a demanda de pensar os custos. Por trás de um suposto baixo custo oferecido pela indústria, tem todo um custo social e ambiental. Olhando para a alimentação, mas também para esse impacto ambiental, hoje em dia se fala da “sindemia global”, que centralizaas questões da desnutrição, obesidade e mudanças climáticas, ou seja, os custos socioambientais, não é mesmo?

Sandra Chaves: É muito interessante que no relatório sobre a “sindemia global” de 2019, sinais já vinham sendo colocados. Mediados pelo clima, os autores trouxeram a desnutrição e obesidade como facetas de um mesmo problema, que está nos sistemas alimentares, na forma como pensamos e realizamos a produção e distribuição dos alimentos. Tudo isso que aconteceu com a alimentação, bem como, a mercantilização globalizada, do “alimento mercadoria” ou “alimentos commodities”, são pólos de um mesmo problema: nutrição e obesidade.

O outro impacto é a questão educacional, ou seja, quando junto a esse pacote de desmonte temos ainda um enfraquecimento do processo educacional fundamental, a briga pela História, pela Sociologia, pela Filosofia, disciplinas que ajudam a nos pensar e a pensarmos a sociedade que vivemos, tudo que nos permite nos ver como sujeitos e analisarmos nossa sociedade como elemento nesse processo histórico vem sendo ameaçado. Ora, um povo que não conhece sua história não tem como construir futuro.

A própria questão da alimentação, que eu sempre gosto muito de trazer essa perspectiva histórica e vocês me provocaram com isso, mostra que nós conseguimos superar a fome em grande potencial. Gosto muito de lembrar isso aos meus alunos: de 2004 a 2013 nós tiramos milhões de pessoas da pobreza, nós reduzimos a fome abaixo de 4% com as nossas políticas, que aliás ensinamos ao mundo — como fazer transferência de renda, como fazer um círculo virtuoso com a agricultura familiar. Fizemos uma missão na África((A missão fez parte da iniciativa do PMA – Programa mundial de alimentos, da ONU, no qual o Brasil ajudou países do continente Africano a criarem programas sustentáveis de combate à fome e à pobreza. Entre eles foram contemplados, Moçambique, Ruanda, Guiné Níger e Malauí.)) , para levar a gestão do programa de alimentação escolar, segurança alimentar e o PAA, porque nós podíamos ensinar ao mundo. Agora, resolve tudo? Não. Temos que mudar as estruturas. Se cortam a política, imediatamente o problema reaparece, porque não conseguimos incluir todo mundo. Isso exige décadas, para conseguir mudar essa longa trajetória de exclusão.    

Ibirapitanga: Como você já tinha mencionado, a Rede PENSSAN organizou, também em junho, o V ENPSSAN, coordenado por você, cujo tema foi “Muitas fomes e crises sistêmicas: contribuições desde a soberania e a segurança alimentar e nutricional”. Como se deu a discussão a partir da relação entre a perspectiva dos sistemas alimentares e de segurança alimentar?

Sandra Chaves: Que bom vocês terem feito essa pergunta! Como mencionei antes, não dá para falarmos do direito humano à alimentação sem pensarmos nos outros direitos e mecanismos que geram as decisões sobre produzir e distribuir, ou não, o alimento, ou seja, a comida. Então, não podemos pensar no fenômeno da alimentação e segurança alimentar sem compreendermos o que acontece nos demais sistemas. No V ENPSSAN discutimos que se nós definirmos a segurança alimentar como direito de todos a alimentos saudáveis, que respeitem a cultura alimentar dos povos, que sejam produzidos de maneira sustentável, temos que pensar no clima, nas mudanças violentas de temperatura, a questão da água e da segurança hídrica. Pensar a questão climática que gera perdas na produção de alimentos, o sistema financeiro, que expressa um modelo neoliberal que mantém desigualdades no acesso à alimentação, transformando o alimento em mercadoria internacional. O arroz passou a valer muito no mercado internacional, e chegou a oito reais no mercado interno. O Brasil teve que importar arroz, para alimentar minimamente sua população, uma questão completamente contraditória. A questão do mundo do trabalho, que precariza condições sem direitos sociais, sem nenhuma garantia e o próprio sistema de proteção social desmontado.

E uma coisa que modula tudo isso é o conjunto de preconceitos que leva às decisões sobre os sistemas, como o racismo, homofobia e o feminicídio, que se encontram em índices cada vez mais alarmantes. Nós consideramos e pensamos muito que o conceito de segurança alimentar é muito sensível para expressar um conjunto de crises de nossa sociedade, porque atinge uma necessidade tão essencial à vida. Essa máquina [nesse momento, Sandra aponta para o próprio corpo] não vive sem comida.

A insegurança denuncia muito mais que a falta de alimento, porque ela denuncia a falta de políticas, a falta de direitos, o modelo de produção, distribuição e comercialização de alimentos. Uma coisa que  precisamos estudar um pouco mais é que o nosso sistema de varejo está quase todo na mão do mercado internacional. Quem está por trás das marcas das grandes estruturas varejistas? Pão de Açúcar, Carrefour, entre outros, um  conjunto de interesses que escancara que nós não controlamos nem o varejo, daquilo que vai ser posto para a população consumir.

Foi muito importante modularmos nosso debate a partir dos sistemas alimentares e das crises. Na primeira conferência do encontro tivemos a presença da Dra Nora McKeon((Nora McKeon estudou história e ciência política na Universidade de Harvard e na Sorbonne antes de ingressar na Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, onde foi responsável por abrir a instituição à cooperação com organizações de pequenos produtores e sociedade civil.)) , que trabalha com a ideia de sistema global de segurança alimentar, onde ela pensa na possibilidade de rearticular tudo isso. Porque realmente não estamos isolados no mundo. Tem que haver uma normatização global, selo verde, proteção das matas, das águas desse planeta, pensar globalmente, porque isso incide no nosso prato de cada dia. Cada vez mais, nós estamos muito conscientes de que é sistêmico. São muitas fomes. 

Ibirapitanga: Gostaríamos de saber um pouco mais, quais seriam essas “muitas fomes” e que tipo de reflexões e propostas de incidência foram geradas por meio desse enfoque?

Sandra Chaves: Sempre falo para os meus alunos: vamos cantar, “você  tem fome de quê?” Atualmente classificamos “insegurança alimentar” como  leve, moderada e grave. A leve é quando há preocupação da falta de dinheiro para comprar comida, a moderada é quando, além da preocupação há problemas e redução quantitativa e algumas mudanças qualitativas em relação à alimentação do adulto e a insegurança alimentar grave é quando há privação mesmo, que atinge inclusive as crianças. Identificamos isto para comunicar a fome, culturalmente absorvida na insegurança grave, mas todas as dimensões têm um tipo de fome, porque se eu gosto de comer carne e não posso comprar, eu tenho uma fome de um sabor, de um gosto. Uma liderança indígena que participou do nosso evento cunhou o termo “saborenia”, não apenas o direito e autonomia dos povos para decidirem o que comer, mas também uma autonomia e liberdade do sabor que gostam, que culturalmente faz parte e que geram identificação e pertencimento.

Então, muitas fomes têm a ver com isso. Muitas fomes também são de democracia, igualdade, equidade e dignidade, porque se essas pessoas são submetidas a um cadastro indigno, uma fila indigna para receberem um benefício, isso não é democracia social pautada em direitos. Temos fome de direito à moradia, saúde, alimentação, saneamento e água. De respeito pela nossa cultura, pelas nossas escolhas, fome de educação. A renda é apenas uma das faltas, uma das lacunas importantes, numa sociedade capitalista, para que se cumpram os bens que fazem parte da vida, mas ao todo, é um conjunto de privação de direitos. São muitas fomes no sentido amplo e muitas crises, que nós como pesquisadores queremos aprofundar.

Fizemos uma pesquisa validada internacionalmente, conhecida como pesquisa domiciliar, mas quantas pessoas vivem na rua atualmente? Quando fui a São Paulo, me falaram que há 70 mil pessoas a mais na rua, a partir da pandemia. Como vamos mensurar a segurança alimentar dessas pessoas, dos assentamentos rurais e quilombolas que não estão nas amostras? Que existem, mas não existem “numericamente”, não existem nos mapas? 

Ibirapitanga: Aproveitando, diante dessa reflexão sobre as muitas fomes, você destacaria algumas ideias de incidência, que tenham surgido no encontro?

Sandra Chaves: Uma questão que estamos amadurecendo mais é a interseccionalidade de raça, gênero e classe, que ficou bem claro nos resultados do VIGISAN e que eu já sinalizei no estudo do Covitel também. Ser mulher, autodeclarada preta ou parda, rural, do Nordeste ou do Norte, aumenta o risco de pobreza e insegurança alimentar de uma forma impressionante, juntamente com o risco da doença crônica. Recentemente, eu fui orientadora de uma pesquisa de mestrado da Escola de Administração da UFBA, que mapeou a qualidade do ambiente urbano em Salvador e inseriu o estudo de insegurança alimentar por meio da EBIA – Escala Brasileira de Insegurança Alimentar. Com diferentes variáveis, a pesquisa mapeou mais de 15 mil domicílios em 160 bairros em Salvador e apresentou índices de insegurança alimentar muito alarmantes em quase 50% dos domicílios apontados. O estudo confirmou que os maiores índices de insegurança alimentar estão nas ocupações mais antigas e mais pobres.

Para a mesma escolaridade e a mesma renda, a mulher preta – responsável pelo domicílio – tem duas vezes mais riscos de insegurança alimentar, comparado com a mulher branca, homem branco e homem preto. Isso é racismo estrutural, que para nós é um desafio muito grande, porque temos que pensar em políticas afirmativas. 

Ibirapitanga: Seguindo na reflexão sobre soluções, quais devem ser os próximos passos de incidência sobre esse cenário crítico? Além de ações governamentais — que entendemos como estruturantes e que realmente podem solucionar a questão — como a sociedade civil pode contribuir com esse processo? 

Sandra Chaves: A sociedade civil tem nos ensinado muito porque ela contribuiu grandemente nesse cenário de pandemia, nós nem sabemos tudo. Eu não consigo imaginar que resultados teríamos experimentado nesse cenário se não fosse a sociedade civil, o Movimento Sem Terra, Movimento de Trabalhadores Sem Teto (que inclusive inaugurou a maior cozinha comunitária do Brasil na cidade de São Paulo), o Movimento Negro Unificado, são muitos e eu inclusive conheci movimentos de grande esforço dos pequenos agricultores, que distribuiram cestas básicas com comida de verdade, com vegetais, com frutas. Aquilo que o Estado não conseguiu levar para a escola, para garantir o PNAE – Programa Nacional de Alimentação Escolar, a agricultura familiar fez a partir de doações. 

Há um sentimento de solidariedade, felizmente, entre nós que não foi totalmente rompido pelas tentativas do individualismo que estão aí crescentes, mas no fundo nós somos solidários. Nós precisamos reaprender a sermos solidários com a pessoa que está na esquina da nossa casa. Porque às vezes somos solidários com as crianças órfãs da guerra da Ucrânia e não olhamos para a criança órfã que está na porta da nossa casa. Isso não é maldade pessoal, é a construção que é feita nas mídias, que nos desloca desse espaço e nos coloca em outro problema no mundo, então esses movimentos todos me emocionam muito, porque mostram quem tem muito pouco compartilhando bastante. 

Eu penso que temos um grande déficit na raiz da sociedade. O déficit da apropriação da noção de direitos, de que cidadão é portador de direito e de que o provedor do direito deve ser o Estado. Esse foi o contrato social desse Estado moderno. Eu trabalho com política social voltada para a pobreza e fome há muitos anos e em contato direto com a população, que quando recebe o benefício costuma dizer que foi Deus, que foi a graça divina, que foi o Salvador ou a Salvadora. Em parte, a noção de direito não foi construída, porque, se pensarmos bem, nossa história democrática é pequena e é uma democracia eleitoral civil, mas não é socialmente democrática porque nós não somos iguais socialmente, as diferenças estruturais estão aí. 

Portanto,  esse é o movimento que nós enquanto sociedade civil temos que fazer: bater à porta do Estado para salvaguardar vidas e trajetórias nas comunidades. É o Estado que vai poder pensar em políticas que reduzam as desigualdades gerais, então nós temos que estimular e conhecer mais as experiências da sociedade civil, que se apropria da noção de direitos e que precisa lutar pela volta do CONSEA e por outras políticas públicas que foram dizimadas nesse governo. Nós temos que voltar a ter um lugar nesse Estado que vem aí, para definirmos e construirmos políticas públicas, fazendo nossa parte enquanto sociedade civil, mas pressionando o Estado para que ele aja em função dos interesses da sociedade e não de alguns interesses particularistas e privatistas. Sem a sociedade civil organizada, vamos mudar o governo, mas não o Estado.

Doações relacionadas

  • Sistemas alimentares

    Rede Penssan – Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional

    A Rede PenSSAN – Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional promove conhecimento acadêmico interdisciplinar e multiprofissional, comprometido com a superação da fome e a promoção da soberania e da segurança alimentar e nutricional. A rede atua na defesa da qualidade dos alimentos e da alimentação adequada e saudável, que respeite as circunstâncias socioambientais e culturais, a partir da geração de conhecimento para a contribuição com políticas públicas e influência ao cenário nacional e internacional.
    Saiba mais
    • Monitoramento e avaliação de situações de insegurança alimentar e nutricional no contexto da pandemia de Covid-19

      Sobre a doação

      A partir de inquérito populacional com amostra nacional, realizado por meio de 2.050 entrevistas em domicílios urbanos e rurais, metodologia consagrada, o apoio está voltado à realização da pesquisa para gerar informações rápidas e confiáveis, sobre situações de insegurança alimentar no Brasil. Espera-se que esse conhecimento seja capaz de incidir sobre processos decisórios de administração pública e na capacidade de mobilização da sociedade civil organizada em torno da questão. Está voltado a responder à falta de dados atualizados que revelem a real dimensão da ocorrência de fome ou dificuldades no acesso aos alimentos, em especial, a partir da crise alimentar gerada pela pandemia de Covid-19.

      Valor

      R$ 160.000,00

      Duração

      12 meses

      Ano

      2020
    • II Inquérito nacional de [in]segurança alimentar e fome no contexto da covid-19 — Brasil 2021

      Sobre a doação

      Apoio para a realização do II Inquérito sobre insegurança alimentar no contexto da covid-19 no Brasil. A pesquisa será realizada por meio de entrevistas domiciliares, com amostra representativa das macrorregiões brasileiras e suas respectivas áreas urbanas e rurais. O apoio prevê o fornecimento de dados atualizados sobre as condições de acesso a alimentos saudáveis e  permitirá observar a evolução da insegurança alimentar e fome no Brasil, no contexto de pandemia, entre 2020 e 2021. Por meio do apoio, o segundo inquérito servirá de subsídio para o debate público em torno da insegurança alimentar no Brasil e de instrumento de pressão social para a formulação e implementação de políticas públicas de combate à fome e à miséria no país. 

      Valor

      R$ 200.000,00

      Duração

      6 meses

      Ano

      2021
    • Apoio às atividades de divulgação científica da Rede Penssan

      Sobre a doação

      Apoio voltado a estimular as relações entre pesquisadores/as da região Norte e dar visibilidade e reconhecimento a pesquisas na área de segurança alimentar e nutricional por meio da premiação Anna Peliano de Dissertações e Teses. Considerando o espaço de reconhecimento que a Rede PENSSAN alcançou nestes últimos anos, principalmente após a realização dos 1° e 2° VIGISAN, o apoio viabiliza a realização de encontro com 40 participantes, culminando na criação de uma rede de pesquisa para a região Norte com os pesquisadores participantes, contando com o apoio da Rede PENSSAN.

      Valor

      R$ 100.000,00

      Duração

      12 meses

      Ano

      2022

Receba informações do Ibirapitanga