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A questão racial na raiz dos sistemas alimentares no Brasil: Entrevista com Rute Costa

Sistemas alimentares
31.10.2023

Para todos os indicadores sociais aplicados à realidade brasileira, as distinções raciais são reveladoras das profundas desigualdades persistentes na sociedade. E isso não é diferente no campo alimentar. São poucas as perspectivas sobre alimentação no país que consideram tanto as desigualdades raciais que impactam negativamente a população negra nos índices socioeconômicos, quanto as contribuições africanas e afro-brasileiras para a riqueza da cultura alimentar do país.

No contexto da iniciativa “10 minutes for 10 years: conversations about the future of food” (10 minutos por 10 anos: conversas sobre o futuro da alimentação), da Global Alliance for the Future of Food, Manu Justo, coordenadora de portfólio do programa Sistemas alimentares do Instituto Ibirapitanga, entrevistou a nutricionista, pesquisadora e professora Rute Costa, sobre a centralidade da questão racial no campo alimentar no Brasil.  

Rute Costa é nutricionista e Mestre em Alimentação, Nutrição e Saúde pela UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É Doutora em Educação em Ciências e Saúde pela UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro. É professora do Instituto de Alimentação e Nutrição da UFRJ Macaé e do Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Saúde da UFRJ. Além disso, ela é líder do Grupo de Pesquisa CulinAfro e do Programa de Extensão AJEUM. É também integrante do Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígena, Clarissa Gomes da Silva. 

Na entrevista completa a seguir, com trechos no episódio de 10 minutos do podcast da Global Alliance for the Future of Food, Manu e Rute fazem um mergulho nos aprendizados que a especialista tem junto a comunidades quilombolas no estado do Rio de Janeiro, bem como do olhar para a alimentação desde afro perspectivas, que bebem da fonte de intelectuais negras/os do Brasil e de outros países da diáspora africana.

Manu Justo: O reconhecimento da estrutura de raça que nos organiza enquanto sociedade brasileira ainda é muito incipiente. Pessoas brancas não identificam-se enquanto sujeitos com vantagens sistemáticas perpetuadas pelo racismo. O mito da democracia racial ainda se faz presente em nossas cozinhas, temperado pelo apagamento histórico e evidenciado também pela falta de reconhecimento ou mesmo menção da nossa base culinária étnico-racial, negra e indígena em documentos oficiais de alimentação. 

A desigualdade no acesso à alimentação adequada e saudável evidencia, historicamente, os piores indicadores de insegurança alimentar e nutricional, e a maior incidência de doenças crônicas não transmissíveis entre a população negra, que no Brasil representa 56% de toda a população. Ainda que esse fato seja conhecido, há poucas políticas voltadas especificamente a essa população. Quais seriam as estratégias necessárias para lidar com essas iniquidades?

Rute Costa: Em primeiro lugar, quando falamos de alimentação, estamos falando de um direito humano. E toda vez que eu faço essa essa reflexão sobre o direito humano à alimentação vem uma pergunta: quem são os humanos sujeitos do direito à alimentação e nutrição adequada? Acho que essa pergunta é fundamental para pensar o acesso à alimentação, e não à qualquer alimentação, mas uma alimentação com sentido, adequada culturalmente e saudável do ponto de vista mais ampliado possível.

Por que começo com essa provocação? Porque o Brasil se funda a partir das desigualdades raciais, e não podemos esquecer que enquanto país não fomos capazes de superar a negação da humanidade das pessoas negras. Esse foi um dos pilares da fundação do país. Se acompanharmos a formulação das leis no período da República — eu não estou falando nem do período em que havia a escravização de pessoas negras — vamos encontrar uma série de impedimentos de acessos aos direitos básicos, como o direito ao trabalho e o direito à escolarização primária. A gente vê um movimento de dificuldade para o acesso à terra, aos aspectos relacionados à cidadania, ao reconhecimento das pessoas negras enquanto sujeitos, enquanto pessoas pertencentes a essa sociedade. E acho que essa é uma base importante, é um fundamento importante para pensarmos qualquer questão associada ao direito no Brasil. Temos um problema insuperado, que é a negação da humanidade de pessoas negras. E a partir disso vemos uma série de contextos que vão nos mostrar, historicamente, a exploração da natureza, e a expropriação dos corpos. Precisamos a partir daí fazer uma reflexão em diálogo com um conceito, que eu acho que é super importante, elaborado pelo filósofo, cientista, camaronês Achille Mbembe, que cunha o conceito de “necropolítica”. Mbembe trata a política como um exercício da razão, que na esfera pública amplia ou reduz a autonomia individual e coletiva. E quando falamos em autonomia, a gente também tá lidando no campo da alimentação. 

A partir da sua pergunta eu faço essa introdução porque acho fundamental termos isso em vista, como parte do plano. Que estratégias precisaríamos, que seriam necessárias? Primeiro o enfrentamento do racismo na sua forma estrutural, e um avanço para olhar as desigualdades raciais não como um elemento preso a uma caixa, mas como um elemento que dialoga com os outros, e que vão se potencializando quando estão atuando de forma entrecruzada. Por exemplo, temos os dados do inquérito feito pela Rede Penssan. Esses resultados foram apresentados mostrando os desafios no acesso à alimentação por pessoas negras, por mulheres, pessoas localizadas nas regiões Norte e Nordeste que são os mais afligidas pela questão da insegurança alimentar e nutricional na sua forma mais grave. Mas a minha pergunta é, será que não estamos falando de um mesmo sujeito? Então ter a capacidade e a disposição para olhar para essa estrutura, que faz com que um direito humano seja limitado no acesso a determinados grupos com características raciais, eu acho que essa é uma questão. Outras questões que nunca foram resolvidas nesse percurso histórico, tem a ver com acesso à terra. Precisamos solucionar a questão da titulação coletiva de terras para povos e comunidades tradicionais. Quando falamos do acesso coletivo às terras, estamos falando no acesso coletivo também à produção do seu próprio alimento, a partir de uma lógica cultural própria, ancestral, de base familiar. Temos um desafio e um atraso seculares e uma dívida histórica a ser resolvida. A população negra necessita da interferência do Estado a partir das políticas públicas, porque ao longo de mais de 500 anos de formação, disso que chamamos Brasil, temos sistematicamente o acesso negado aos direitos mais básicos dos seres humanos. É preciso ampliar a potência do PNAE — Programa Nacional de Alimentação Escolar, a potência da produção da agricultura familiar. Há muita coisa a ser feita, mas eu acredito que algo que precisa estar no nosso entendimento é que precisamos resolver a questão estrutural do racismo. Precisamos trabalhar de fato naquilo que faz com que a população negra persista com os dados mais iníquos, mais tristes ao olharmos em relação ao acesso à alimentação, em relação ao acesso à educação, às piores condições de saúde, de moradia, de acesso a bens, de possibilidade de viver. Porque é disso que a gente está falando, na estruturação de um Estado que decide não interferir na vida, não potencializar a vida, que opta por decidir pela morte da população negra. Então estamos falando de algo talvez muito mais grave, muito mais profundo. 

E o que você traz na introdução também é muito importante, que é a necessidade de racializar a população branca, que ao longo da sua trajetória não precisa pensar em relação à sua raça, a dinâmica de viver. Como a sua raça vai interferir no acesso e na decisão de coisas tão basilares como a escolha de uma profissão, a escolha de uma carreira. Isso precisa ser feito porque, se não, parece que pensar e racializar o debate nos sistemas alimentares têm a ver com olhar a porção da população negra. Precisamos olhar também quais são as ações e as intenções da população branca nesse sistema. Quem é que está produzindo a monocultura nesse país? Quem está produzindo os alimentos ultraprocessados? Precisamos olhar essas questões porque é importante fazer o exercício da responsabilização. A autora Grada Kilomba, construiu um livro a partir de sua tese de doutorado, chamado “Memórias da Plantação”. Na introdução ela apresenta o que chama de “processo de consciencialização coletiva”, que possui cinco etapas: (i) negação, (ii) culpa, (iii) vergonha, (iv) reconhecimento, mas também aponta a (v) responsabilização, que é etapa  final, a etapa de conclusão desse processo de consciencialização coletiva. E quando ela fala de responsabilização, ela está apontando para a necessidade de encontrarmos soluções para o problema. Não só reconhecer que o problema existe, e sentir vergonha por viver num país com tantas desigualdades raciais, de gênero, mas também se responsabilizar, pensar como vamos resolver. E nesse processo é preciso estar próximo e em diálogo com esses sujeitos, que são os sujeitos alvo dessa desigualdade. Sim, são as mulheres negras da periferia ou das regiões Norte e Nordeste que estão vivenciando as mais profundas desigualdades em relação à alimentação. Mas também é esse mesmo grupo que está produzindo nos seus quintais produtivos, nos movimentos de mulheres, que está fazendo o movimento de preservação da biodiversidade nos seus espaços de atuação. É esse sujeito que merece o foco das políticas públicas no sentido da proteção, da provisão. São essas pessoas que estão nesses territórios, nos seus espaços, desenvolvendo soluções. É  próximo dessas pessoas que temos que estar, porque ali também tem a potência, e tem também os sentidos e as propostas para superarmos. É com essas pessoas que precisamos conversar também. 

Manu Justo: Rute, quero agradecer muito por sua fala e introdução, para além da resposta à nossa pergunta. Pensando na nossa dieta e na culinária brasileira, histórica e culturalmente composta pela diversidade de alimentos e uma alimentação in natura e saudável, que vem de um processo de receitas culinárias com origem na nossa formação étnico-racial, para mim uma questão que fica é: como você tem visto a inserção dessa perspectiva da nossa cultura alimentar, em um debate mais ampliado sobre alimentação no Brasil?

Rute Costa: Quando eu comecei a estudar a culinária afro-brasileira em 2014, bem no início desse estudo eu tinha a impressão de que havia uma certa incompetência da minha parte em encontrar estudos que dessem conta de apresentar, não de forma distorcida ou estigmatizada, a culinária afro-brasileira. Depois de um tempo eu fui percebendo que não tinha a ver com essa incapacidade, mas com uma ausência ou uma decisão por não trabalhar essa temática no campo de estudo da alimentação e nutrição no Brasil, mas não somente isso. Ao longo desse percurso, em diálogo com alguns colegas no campo da saúde coletiva, que trabalham com grupos que estão atuando no SUS e no espaço da educação, vínhamos percebendo muito essa ideia de que as produções da população negra e da população do campo eram algo atrasado, obsoleto, muito simples em termos de técnica. Algo como uma “comida de pobre”, com pouca elaboração, com pouca distinção. E eu acho que isso tinha muito a ver com a influência da perspectiva de mercado que há em relação à comida.

Ao longo do tempo fomos percebendo uma riqueza desse espaço da cozinha quando nos aproximamos do estudo sobre a culinária com povos e comunidades tradicionais, mais especificamente as comunidades quilombolas, aqui do interior do estado do Rio de Janeiro. E é um universo muito potente, muito complexo em relação à alimentação. Nossa primeira percepção desse espaço de produção da alimentação, foi a partir de conversas com mulheres negras da cidade de Macaé, que tem uma aproximação com a pesca, com a história da cultura negra de Macaé, bem como nos diálogos e nas práticas que realizamos nos espaços de Quilombo. Tivemos a oportunidade de realizar um Encontro Nacional sobre Alimentação Escolar Quilombola e conversar com representações de comunidades quilombolas de todas as regiões do país. Fomos percebendo um universo muito potente em termos de alimentação, diria saudável para o entendimento, mas eu não sei se essa palavra é capaz de dar conta da dimensão do que é feito nesses lugares. Eu acho importante destacar a ética Ubuntu. Eu enxergo que há dois pilares no que acontece nesses territórios, primeiro a ética Ubuntu e depois a biointeração. A ética Ubuntu vai nos falar de uma ideia de ser em totalidade. Esse talvez seja, de forma muito simplificada, o significado dessa ética. Então é a percepção de si, enquanto um sujeito que não está sozinho no mundo. Quando tratamos de uma existência do tipo “penso, logo existo”, eu existo por conta dessa razão individualizada? Não, na ética Ubuntu há uma ideia de existência que está relacionada com a totalidade. E de que totalidade estamos falando? Falamos de uma vida em comunidade, onde faz sentido viver em comunidade, faz sentido interagir com os outros sujeitos humanos que estão presentes no território, e as dinâmicas que acontecem nas famílias, nos pequenos grupos e nas famílias dentro de uma percepção muito ampla, uma família extensa. Mas também essa ideia da ética Ubuntu vai apontar para nós uma existência que faz sentido na relação com o reconhecimento da natureza e da sua dinâmica também como um sujeito. Tem uma potência muito grande nesse espaço da cozinha, porque percebemos, muito nitidamente, essa ética operando. A cozinha é um espaço de produção que tem a ver com o coletivo. É muito comum nos espaços de comunidades quilombolas encontrarmos, por exemplo, alguém que faz uma horta no seu quintal, mas que essa horta é produzida em parceria com a família que mora no quintal do lado. Essa família todo dia vai dividir tarefas que são negociadas ali no cotidiano.

Em segundo lugar, há um pilar muito importante que é o da “biointeração”, que Antônio Bispo dos Santos, mais conhecido como Nego Bispo, elaborou e publicou no seu livro “Colonização, Quilombos, Modos e Significações”. Ele fala de uma existência relacionada com a dinâmica da natureza. O reconhecimento da temporalidade de cada coisa, da necessidade de descanso da terra, de uma certa fronteira no sentido de um limite para aquela terra produzir, do distanciamento dessa ordem de sintetizar a natureza, e de perceber suas linguagens e se comunicar com elas. De perceber que quando venta não dá para pescar, ou de que aquela fruta tem que ser colhida no tempo certo, ou de organizar a produção a partir da quadra da lua, ou organizar o quintal numa dinâmica que converse com a dinâmica de percepção daquela mesma cosmopercepção. Uma percepção e uma organização que privilegia próximo da cozinha os temperos, mas também as plantas que tem a ver com a proteção espiritual, que tem a ver com os processos e os itinerários de cura, os itinerários de cuidados outros, como as rezas e benzeções. A cozinha é esse lugar que concentra essa dinâmica de viver em interação com aquilo que Nego Bispo vai chamar de cosmos, que não é o medo do cosmos, mas uma vivência em confluência com aquilo que a natureza produz. 

Essas cozinhas estão nos mostrando mais do que um acúmulo de receitas ou uma lista ampliada, ainda que tenha também essa potência da preservação daquilo que é biodiverso. Mostram para a gente uma forma de pensar a relação do ser humano com o outro ser humano e com a natureza. Isso é muito potente para a preservação da vida no mundo em muito tempo. Chamo a atenção para aquilo que o Ailton Krenak fala em “Ideias para adiar o fim do mundo” — quando olhamos para a cozinha desses povos e comunidades vemos um universo.

Enquanto sujeitos fazedores de ações no campo da universidade ou formuladores de políticas públicas ou aqueles que estão na ponta fazendo a política acontecer, precisamos olhar para esses espaços. Esses espaços e essas pessoas têm coisas muito importantes para nos dizer em relação à comida, que ainda não estão no radar do debate sobre alimentação no país. Há uma certa aproximação com o que o Guia Alimentar para a População Brasileira vai fazer, de olhar para a alimentação do ponto de vista regional, de reconhecer que há em cada região uma interação com o território que é benéfica e importante, e que precisamos valorizar esse fazer no lugar de nos preocuparmos com uma abordagem centrada nos nutrientes, e que foi muito utilizada pela indústria de alimentos como bandeira e conteúdo para desenvolver uma série de coisas comestíveis. O Guia faz esse movimento, mas ainda falta, nesse espaço de pensar, de fazer, de decidir sobre a alimentação que tem a ver com esse coletivo e esse país, o reconhecimento de que foram essas comunidades, esses povos, essas populações que preservaram muito daquilo que hoje valorizamos.

Essa comida que antes era vista como atrasada, pobre, simples, hoje é vista como uma grande potência para tratarmos a alimentação saudável e adequada. É esse angu, é essa planta livre que está ali nos quintais que tem potência para adiarmos o fim do mundo. Mas ainda falta muito não só do reconhecer, mas do aprender com eles e elas, com essas pessoas e essas comunidades, e poder inserir isso no contexto. Esse conhecimento e fazer que são muito maiores, do que um conjunto de receitas e o olhar para a cozinha em perspectiva limitada. A cozinha é a produção de saúde, do ponto de vista físico, espiritual, social. Saúde é lugar de cuidado, de produção de tecnologias. Tem muita tecnologia social sendo produzida nesse contexto que não está no nosso radar. Precisa não só olhar, mas dar a honra a quem está produzindo. Porque também há um mecanismo, eu vou usar essa expressão, de “vampirização da academia”, que vai lá e se aproveita de tudo que é produzido nesses espaços e que recebe depois um nome muito bonito, muito elaborado, que entra no livro e que faz alguém da academia ser reconhecido. Não é disso que eu estou falando, é de outra ordem, de indicarmos o protagonismo desse fazer a essas pessoas. São pessoas que têm sim cor, raça, gênero e localização geográfica. É dizer quem são os sujeitos, senão tudo se torna brasileiro e isso é uma armadilha que acontece. Olhamos para as produções da população negra, da população indígena, e não reconhecemos sua autoria e colocamos nesse lugar universal. Essa é não só uma armadilha, mas uma estratégia de dominação muito utilizada na colonização branca nesse território nacional.

Manu Justo: Rute, para além do seu lugar de pesquisadora, você trabalha em diálogo com coletivos e movimentos sociais, e gostaria muito que você compartilhasse com a gente sobre essas iniciativas. 

Rute Costa: Eu acho difícil desassociar essa dimensão, a pesquisadora é também a Rute, a professora, aquela que gosta do samba de roda, que faz capoeira, que dança forró, é isso tudo. Também esse ser sendo em totalidade dessas pessoas todas que me compõem. Mas tem algo que eu queria deixar como experiência, como um caminho possível que foi a escolha do nosso Grupo de Pesquisa e Extensão CulinAfro, que foi de trabalhar colocando a extensão universitária no centro das nossas ações. A gente não entende a extensão universitária como um meio que faz chegar um conhecimento especializado da universidade, numa linguagem simples para impor essa consciência sobre outras consciências. Não é disso que eu estou falando. Pensamos a extensão universitária como um caminho possível de construir outro conhecimento a partir de uma relação, de uma relação que envolve respeito, que envolve vínculo, que envolve o que Paulo Freire muito fala em sua trajetória, que é a amorosidade. A amorosidade, a relação de afeto, de amor, de respeito, de proximidade. A gente decide trabalhar as pesquisas, o processo de ensino, o processo de elaboração dos nossos materiais a partir de uma extensão universitária baseada na educação popular de fundamento freireano.

Os caminhos que fizemos ao longo desse tempo, são de aproximação de uma série de comunidades aqui do interior do estado e outras que recentemente temos trabalhado na cidade do Rio de Janeiro. Previmos nesse processo de formulação de conhecimento, um tempo de chegar, de conhecer, de nos deixar sermos conhecidas por essas comunidades, um tempo de construção de vínculo. De participar da vida da comunidade, de ir às festas da comunidade, de irmos aos enterros, de estarmos juntos, de passar alguns finais de semana. De construir esse lugar de aproximação, e a partir dessa dinâmica de estar junto, vamos conhecendo pela vivência, pela escuta quais são as questões. As questões quando eu falo são os desafios do cotidiano, os desafios estruturais dessas comunidades em relação à alimentação, acesso à água, o trânsito no território, a questão da titulação da terra, tudo isso vai se tornando conhecimento para nós. Entendemos como equipamentos públicos, as unidades de saúde e escolares estão em diálogo com a comunidade. Temos visto que é um caminho muito potente, conhecer os problemas a partir da extensão universitária para depois irmos decidindo juntos quais problemas a comunidade vai nos dizer que são prioridade.

Por exemplo, no Quilombo da Machadinha, em Quissamã, município na Região Norte Fluminense, a comunidade se organizou e identificou que precisava da nossa participação no processo de adequação cultural do cardápio da escola, pedindo para que olhássemos para o programa de alimentação escolar em diálogo com a cultura alimentar da comunidade. Não foi uma decisão nossa, foi uma decisão da Associação em reunião. Essa pauta foi estabelecida e o nosso nome foi indicado para trabalhar junto com representantes da comunidade que atuavam na escola e que identificaram ser este um problema em que poderíamos atuar.

Há outra experiência, no assentamento Oswaldo de Oliveira, um assentamento da reforma agrária aqui em Macaé, que é uma unidade de preservação. Depois de um tempo acompanhando e em diálogo, participando das reuniões, estando no território, identificamos que, entre muitas questões, havia um problema relacionado ao escoamento da mandioca. É um espaço que não tem energia elétrica, então não tem como armazenar esse alimento que tem uma perecibilidade. Uma das soluções daquela comunidade foi construir uma casa de farinha adequada àquela realidade, com captação de energia solar, com equipamentos movidos à tração humana, mecânica. Todo o processo de feitura desse espaço de produção da farinha, da tapioca, do beju foi feito nesse caminhar junto. Então apareceu como solução deles e delas, que tinham nas suas trajetórias de vida experiências de produção de farinha. O PDS — Projeto de Desenvolvimento Sustentável Oswaldo de Oliveira nos apontou quais eram as problemáticas, quais eram as potências e também a solução. Numa equipe de professores da nutrição, da engenharia de produção, da engenharia mecânica, com os estudantes fomos construindo, juntos, no laboratório, no assentamento, e testando esse espaço novo que é a casa de farinha. 

São duas experiências que destaquei aqui, a primeira no Quilombo da Machadinha e outra no PDS Oswaldo de Oliveira, nas quais não fizemos uma intervenção. Porque não encontramos um problema, fizemos um diagnóstico e encontramos a solução de forma coletiva, vem sendo feito assim. Às vezes é mais demorado, têm as suas tensões, não é um processo romântico sem desafios, mas é uma possibilidade da academia não se sobrepor, não se achar o sujeito de autoridade do saber, que vai estar promovendo inovações, sendo o centro da tecnologia, isso não é verdade. Tem muita coisa sendo produzida nesses espaços. Muitas soluções possíveis para aprendermos juntos. Voltando em Paulo Freire, ele vai dizer que não há saber maior ou menor, há saberes diferentes. Que podem ser aprendidos por ambos, por essas duas comunidades, a comunidade acadêmica e essas comunidades dos exemplos que eu citei aqui. Porque, na verdade, todos nós somos sociedade, a universidade não está fora desses lugares. É um caminho possível e é um caminho muito profícuo, que tem sido muito especial poder trabalhar nessa perspectiva de aprender com, de fazer com e não para.

Tem muito mais para aprendermos, e os verdadeiros fazedores dessa potência que anunciamos aqui não somos nós da academia. Mas são aqueles e aquelas que estão nesses espaços das comunidades, espaços rurais e urbanos produzindo saberes centrados numa afro perspectiva da vida. E eu queria, para fechar, trazer um ponto de jongo, do Jongo do Arrozal, que fica em Piraí: “Na minha fazenda não tem trabalhador. Na minha fazenda não tem trabalhador. Apareceu planta na roça, foi formiga quem plantou. Quem plantou, quem plantou. Apareceu planta na roça, foi o formiga quem plantou, quem plantou, quem plantou. Apareceu planta na roça, foi formiga quem plantou. Machado!”

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