Perguntas para desnaturalizar a fome: entrevista com Ana Maria Segall e Sheila de Carvalho

Colaboração na autorização do uso de imagens da parceria entre a campanha “Tem gente com fome” e Design Ativista
Para contribuir com o debate em torno da insegurança alimentar no cenário de abismos sociais brasileiros evidenciados e aprofundados pela pandemia de covid-19, o Ibirapitanga convidou para uma conversa duas mulheres com atuação chave nos esforços atuais de reflexão e ação de enfrentamento à fome no país.
Para a entrevista, o Ibirapitanga promoveu um encontro online entre a epidemiologista, sanitarista e pesquisadora da Rede PENSSAN — Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, Ana Maria Segall, e a advogada de direitos humanos, integrante da Uneafro Brasil e da Coalizão Negra por Direitos, Sheila de Carvalho.
Pela primeira vez em diálogo, de diferentes gerações e com atuação em campos distintos da sociedade civil, Ana Maria e Sheila estão envolvidas no atual ponto de convergência entre os movimentos negros e do campo alimentar — o combate ao recrudescimento das desigualdades sociais que resultam na insegurança alimentar grave incidindo em milhões de brasileiros.
Em março, a Rede PENSSAN lançou a pesquisa “Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil”, com apoio do Instituto Ibirapitanga e parceria de ActionAid Brasil, FES-Brasil e Oxfam Brasil. Os resultados, bastante alarmantes, estão disponíveis no site da campanha de divulgação da iniciativa, “Olhe para a fome” e tem pautado o debate público sobre a questão com ampla repercussão na mídia, dentro e fora do país.
Em articulação com outras iniciativas da sociedade civil, a Coalizão Negra por Direitos, também apoiada pelo Ibirapitanga, criou a campanha Tem Gente com Fome. Mapeando territórios e famílias que vivem em periferias de todo o Brasil, a campanha já arrecadou mais de 10 milhões de reais para a realização de ações diretas voltados às condições estruturais e financeiras dessas famílias e tem como meta a distribuição de alimentos.
O bate-papo criou a possibilidade de troca de experiências entre Ana Maria e Sheila, que imergiram em novos pontos de vista sobre o tema, identificando, ao mesmo tempo, as singularidades de cada trajetória. Além de apresentar os resultados da pesquisa, Ana Maria trouxe um panorama das iniciativas da sociedade civil e dos mecanismos de participação social para a garantia do direito à alimentação adequada e saudável. Sheila ressaltou o impacto dos retrocessos em políticas públicas nos custos relacionados à insegurança alimentar e abordou a experiência de linha de frente das mobilizações de contenção à fome nas comunidades periféricas brasileiras. Ambas reforçam o combate à fome como um desafio de todos os brasileiros, bem como a importância do fortalecimento a ações coordenadas entre redes de pesquisa e movimentos sociais para endereçar de maneira objetiva as lacunas deixadas pelo Estado, também para seu processo de responsabilização. Ao final da entrevista, Ana e Sheila também formularam perguntas uma para a outra.
Ibirapitanga: De acordo com a pesquisa “Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil” em dezembro de 2020, “116,8 milhões de brasileiros não tinham acesso pleno e permanente a alimentos”. Para além da consequência direta do contexto de crise sanitária, política e social enfrentada no Brasil hoje, a que outros fatores podemos atribuir a situação de fome no país?
Ana Maria: Encontrar o resultado de quase 117 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar, não é um dado novo que surgiu de repente. Na verdade, existem indicadores sociais do IBGE — Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que mostram o crescente empobrecimento da população brasileira. Recentemente, uma pesquisa da FGV — Fundação Getúlio Vargas revelou que, entre o final de 2014 e início de 2019, 32 milhões de brasileiros saíram da classe C e desceram para os estratos de classe D e E. Ou seja, aquilo que se obteve no período entre 2003 e 2014 — que foi exatamente retirar cerca de 40 milhões de brasileiros da pobreza e da extrema pobreza — foi revertido entre 2014 e 2019. Nesse tempo, claro que a insegurança alimentar aumentou.
Em 2013, a PNAD — Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio do IBGE mostrou o grande êxito das políticas públicas garantidas na década anterior. No entanto, nos anos sucessivos de 2013 até 2018, a POF — Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE mostrou que a insegurança alimentar grave aumentava 8% ao ano. Em 2018, a situação de insegurança grave dobrou, em comparação aos dados observados em 2009.
Entre 2018 e 2020 houve uma aceleração brutal do aumento de pessoas e famílias em situação de fome no Brasil. A insegurança alimentar grave, experiência da fome nas famílias brasileiras, aumentou 27%. É um processo que vem acontecendo e a nossa pesquisa identifica o agravamento desse cenário com a pandemia, chegando ao número de 19 milhões de pessoas em situação de fome no Brasil, no final de 2020.
Sheila: Precisamos destacar o impacto do desmonte de políticas públicas que nós tivemos nos últimos anos. O cenário que vivemos hoje é uma consequência de quebras institucionais e de extinção de políticas sociais, que nos levam a refletir o que era o Brasil de 2011 e o que é o Brasil de 2021.
Em 2011, tínhamos o menor índice de desemprego, a cesta básica era de R$ 237,00, o botijão de gás custava em torno de R$ 38,00 e a gasolina por volta de R$ 2,60 o litro. O Brasil era premiado como um país referência na política de enfrentamento à fome, estávamos ali muito perto de atingirmos as metas de segurança alimentar na época, os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio.
Hoje vemos um quadro completamente diferente. Passamos dos 3,5% para quase 13% de pessoas em situação de extrema pobreza em 2021 e a fome faz parte dessa realidade. Há um aumento do valor da cesta básica para além dos índices da inflação. É uma situação muito ruim que não pode ser dissociada do impacto do que foi construir políticas focadas na reversão da desigualdade social e passar para um processo onde a desigualdade social é até favorecida e incentivada pelas instâncias governamentais. Então quando olhamos para o Brasil de 2011, encontramos um país que atingiu o menor nível de desigualdade social de sua história e hoje se encontra em um cenário completamente diferente, que tende a ser agravado.
Há de se lembrar que no ano de 2020 tivemos o apoio do auxílio emergencial, que ajudou a ultrapassar a crise sanitária e foi fundamental para muitas famílias conseguirem a sobrevivência durante o período. Hoje, ainda em pandemia, temos um teto de custos estabelecido pelo Congresso Nacional alocado para o Auxílio Emergencial e esse valor pode ter sido reduzido em sete vezes o total investido em 2020. É um cenário constitucional que vai levar a um colapso social.
Ibirapitanga: Quais as principais diferenças entre o cenário mais recente de fome no Brasil e o anterior, que remonta ao patamar da década de 90? De acordo com a pesquisa “Insegurança alimentar e covid-19 no Brasil”, quais são as características atuais da a fome no país?
Ana Maria: Do ponto de vista da fome em si, da dimensão de sofrimento das pessoas, eu tendo a dizer que não há diferença. É uma crueldade e uma irresponsabilidade deixar um contingente da população tão grande sofrendo as agruras da falta de alimento. A fome tem uma repercussão na dignidade das pessoas, no desajuste de famílias e na violência. Nesse aspecto ela é sempre uma situação de muito sofrimento e de muita crueldade e desumanidade, porque temos recursos para vencê-la.
Mas é claro, como a Sheila colocou, existe uma diferença muito grande do ponto de vista de abordagem do problema. O Brasil teve alguns ensaios de políticas públicas para o combate à fome, no século XX, como a criação do INAN — Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição, na década de 1970; uma belíssima campanha do Ibase — Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, fundada em 1981 pelo Herbert de Souza, o Betinho, da Ação da Cidadania, que criou milhares de comitês Brasil à fora, o que promoveu uma participação da sociedade civil importante. Tivemos as políticas e estratégias do programa Fome Zero, que geraram um impacto fantástico na redução da fome.
E agora, como a Sheila também colocou, vemos a antipolítica e a necropolítica, porque além da fome, estamos vivendo também a desigualdade em relação aos efeitos da pandemia. A grande diferença é a responsabilidade do Estado em relação à situação de recrudescimento da insegurança alimentar e da fome do Brasil.
Mais que a extinção de políticas públicas, existe determinação política de deixar a coisa evoluir como se fosse um fenômeno natural. O presidente da República se refere à fome como um mero acaso: “pessoas morrem”, “pessoas passam fome”.
Ibirapitanga: Em diálogo com as informações da pesquisa que Ana Maria ressaltou, mas também levando em conta a experiência dos movimentos negros, quais são as principais frentes de atuação e reivindicações para desnaturalizar e enfrentar a fome hoje?
Sheila: Importante reforçar que este “investimento” em insegurança alimentar, a “não política”, na verdade, é uma política direcionada para não fazer política. Ela faz parte e integra um projeto de morte que temos visto se desenvolver no Brasil com muito mais força nos últimos anos. Então, estamos falando de uma política de morte que avança, tem suas sustentações e está direcionada a uma população muito específica. Porque a mesma população que passa fome hoje no Brasil é a população que está privada do acesso aos direitos sociais, que é a maior vítima de violência institucional, urbana ou do campo e é a população que tem mais propensão ao encarceramento.
Então, quando susta também a sobrevivência através da alimentação, fortalece um pacote de morte, que nós enquanto movimento negro, chamamos de “genocídio do povo negro”. Não é à toa que, em um cenário de pandemia, apesar do baixo número de vacinas aplicadas, o número de pessoas brancas que foram vacinadas é o dobro do registrado em pessoas negras; não é à toa que surgem propostas de “fura fila” da vacinação, que pretendem vacinar empresários primeiro, antes de vacinar pessoas que estão na linha de frente, com comorbidades e que tem mais risco de mortalidade.
E é importante dizer que esse risco vem de uma privação histórica de acesso à saúde, que favorece o desenvolvimento de comorbidades. Atualmente, as pessoas negras não só estão na linha de frente dos serviços essenciais, como vivem situações que proporcionam maior risco de contágio e, por terem maior índice de comorbidade, aumenta-se a possibilidade de serem mortas.
Somado a todo esse cenário de caos, ainda temos o agravamento de políticas sociais que dificultam a nossa sobrevivência, que é a questão da fome, do aumento de violência que ocorre mesmo durante o período de pandemia, privação ao acesso à educação e desmonte das políticas educacionais que se fortaleceu nos últimos anos. Tudo isso faz parte de um projeto e temos que discutir a fome a partir de um projeto de morte. Temos que analisar todo o cenário e identificar que a fome está inserida na tentativa de eliminar o que a elite considera enquanto pessoas indesejáveis e descartáveis, uma lógica que carregamos no nosso país há séculos e que tem se fortalecido nos últimos anos, na gestão do atual presidente.
Ibirapitanga: Como mencionado por você, o Brasil tem um histórico de construção e implementação de políticas de combate à insegurança alimentar que foram capazes de tirá-lo do Mapa da Fome da ONU em 2014. Em diálogo com os pontos levantados por Sheila, e considerando a experiência de construção dessas políticas, o que é possível aproveitar do que aprendemos no passado e o que precisaria ser revisto como estratégia?
Ana Maria: O protagonismo da sociedade civil foi fundamental para a formulação, acompanhamento e monitoramento das políticas públicas de sucesso, do início dos anos 2000. A recriação do Consea, logo como primeira medida do governo Lula, institucionalizou a participação da sociedade civil, que significou a mobilização de centenas de milhares de pessoas do Brasil inteiro, nas Conferências Nacionais [de Segurança Alimentar e Nutricional].
Foram as Conferências que passaram a demandar e exigir do Estado brasileiro políticas públicas que atendessem as necessidades de populações tradicionais e negras, que não estavam presentes anteriormente nas agendas das políticas públicas, por serem historicamente excluídas e vulnerabilizadas, com toda a sorte de agressão do próprio Estado.
Em 2019, a primeira medida do Governo Bolsonaro foi a extinção do Consea. Hoje presenciamos uma mobilização grande da sociedade civil de forma voluntária, sem nenhum apoio do Estado e sabemos que é fundamental que isso ocorra agora, porque estamos no vazio de ação governamental. A sociedade civil está tomando a frente de atender às populações em maior situação de vulnerabilidade, mas sabemos que, a longo prazo, isso não é sustentável. É necessário que retomemos a discussão e que façamos as pressões necessárias no parlamento, na Justiça, de alguma forma, para que possamos ter de novo a possibilidade de um Estado mais democrático, que ouça a sociedade civil e que implemente políticas públicas mais inclusivas.
Eu estava lendo a pesquisa da FGV Social sobre a alta da desigualdade, de autoria do professor Marcelo Neri, que fala uma coisa muito interessante: “nós vivemos um período de crescimento inclusivo e agora estamos vivendo uma recessão excludente”. Isso é muito grave! Por isso o debate democrático e o retorno da sociedade civil como protagonista são fundamentais nesse momento.
Ibirapitanga: Considerando a experiência brasileira, como a participação de lideranças e movimentos negras/os pautou, no passado, a construção de políticas de combate à insegurança alimentar? Há diferenças na atuação e alcance das lideranças e movimentos negros em torno desse tema agora?
Sheila: A luta contra a insegurança alimentar e o enfrentamento à fome esteve sempre na agenda principal da história da resistência negra. Nesse momento, temos investido em novas formas de tecnologias e ações políticas que possibilitem a realização de ações para atendimento direto às comunidades.
Estamos vivendo o momento do “nós por nós”, como estamos discutindo aqui, há uma falha sistêmica das instituições do Estado em prover políticas para o enfrentamento da insegurança alimentar. Nós, enquanto sociedade civil, temos que atuar de forma muito mais intensificada para suprirmos essas lacunas do Estado e garantirmos o mínimo de sobrevivência para nossas comunidades.
Enquanto Coalizão Negra por Direitos, que é a articulação que agrega hoje mais de 200 organizações do movimento negro no Brasil, reunimos as nossas expertizes, as nossas bases para atendermos a uma reivindicação de nossas comunidades. Porque chegou um momento em que a principal reivindicação das comunidades, especialmente aquelas situadas em regiões periféricas — grande maioria — era: “estou com fome”.
Reestruturar as políticas de enfrentamento à fome levará tempo indeterminado. Então, foi preciso viabilizar ações emergenciais enquanto sociedade civil para tentar suprir essa lacuna. No ano passado, a Uneafro atuou no atendimento às demandas da covid-19 nos nossos territórios e a partir dessa experiência foi possível ampliar para a rede da Coalizão Negra por Direitos como um todo, agindo com outros parceiros que também são integrantes da sociedade civil e estavam no mesmo projeto de fazer uma ação humanitária emergencial do enfrentamento à fome.
Estão presentes a Oxfam, Anistia Internacional, Nossas, Instituto Ethos, Redes da Maré, Ação Brasileira de Combate às Desigualdades, 342 Artes, Orgânico Solidário, Grupo Prerrogativas e Fundo Brasil de Direitos Humanos. São organizações relevantes dentro do campo da sociedade civil brasileira, que se juntaram à Coalizão em apoio para a ação emergencial humanitária no esquema “nós por nós” que acaba sendo isso: Nós que vamos atrás de recursos, nós que fazemos a distribuição, nós que repassamos essas compras e direcionamos às famílias que estão dentro das comunidades.
É um mapeamento longo que compreende 222 mil famílias. É muita gente passando fome no Brasil e os números estão na casa dos milhões. Não sabemos quando vamos reverter esse cenário de desigualdade e, para o movimento negro e sociedade civil, fica a tarefa da resistência ativa dentro do campo, de buscar atender à necessidade tão urgente que é a fome. A fome não pode esperar e aí a gente precisa se mobilizar entre nós, dentro do nosso campo.
Ibirapitanga: Historicamente, trabalhos de literatura e de expressão artística visual e musical, contribuíram também para denúncia, desnaturalização e produção de um imaginário que abordasse as realidades da fome no Brasil. Para além da mobilização de arrecadação para compra e distribuição de alimentos, junto à incidência política, vocês visualizam outras estratégias em curso ou a serem realizadas na abordagem à fome hoje?
Sheila: Um dos exercícios que fizemos para a campanha “Tem gente com fome”, inspirado no poema de Solano Trindade, foi abrir para que artistas expressassem o que aquele texto significava para elas.
Nossos discursos, dados, falas longas e estatísticas sobre um problema nem sempre são suficientes para atingir a sociedade de maneira efetiva e a arte se comunica de tal forma, que supre essa lacuna. A ação política precisa estar combinada com a ação cultural e a ação cultural também é uma ação política.
No Brasil, costumam rechaçar a arte produzida pelas nossas comunidades, catalogando-a como arte periférica ou arte urbana, isso quando chamam de arte… Temos que ampliar também o escopo de entendimento de arte e o seu papel na sociedade. Se conseguirmos utilizar a arte e a cultura para impulsionarmos uma mensagem política, um enfrentamento necessário para que consigamos desenvolver a nossa agenda, isso é fundamental.
A campanha “Tem Gente com Fome” contou com muito apoio da classe artística e de uma certa forma isso contribuiu muito para que conseguíssemos atingir o valor de arrecadação que temos hoje. Muitos artistas são influentes na sociedade, estão ali nas suas mídias e, juntos, somam e fortalecem nossa agenda de luta, além de chamarem a atenção para um problema estrutural.
A partir de um momento que se afirma: “tem gente com fome, tem gente com fome, tem gente com fome”, a fome é discutida, surgem perguntas de “Como chegamos aqui?” e “Por que estamos com fome?” A arte induz o questionamento, a cultura induz a problematização, especialmente para quem está apartado da construção dos movimentos sociais, da vivência acadêmica e das organizações da sociedade civil. É conseguir fazer com que a nossa mensagem tenha capilaridade dentro de um público muito mais amplo.
Ana Maria: Eu quero reforçar o que a Sheila fala, mas colocar uma questão que eu acho que é fundamental também, principalmente nesse momento que estamos vivendo, de tanto negacionismo e menosprezo pelo conhecimento. Há uma necessidade urgente de comunicar à população aquilo que a academia e a ciência produzem, trazer o conhecimento como alimento. Eu percebo que essa comunicação é muito facilitada pela entrada na cultura, nas artes, música e dança.
Eu tenho visto ações muito interessantes, relacionadas à verbalização desse conhecimento tão hermético na academia, que propõe responder ao negacionismo. Embora haja muita dificuldade, porque é uma luta desigual, estamos enfrentando.
Eu estava ouvindo novamente a música do Chico Science, que traz Josué de Castro, o grande ícone do combate à fome do Brasil que expressa o conhecimento acadêmico também voltado para as políticas públicas e pela realidade. Chico expressa Josué de Castro de forma poética e que todo mundo entende. É um esforço em que pessoas, academia e universidades devem colocar atenção: democratizar o conhecimento pela melhor forma, que é através da arte.
Ibirapitanga: Para vocês, há novidades e possibilidades criadas agora na convergência de movimentos em torno dessa questão, em especial entre os movimentos negros e os do campo alimentar? Qual a importância desse encontro de diferentes frentes da sociedade civil e o que há de necessário para que essa convergência seja positiva?
Ana Maria: Essa situação tão dramática que estamos vivendo acaba despertando também as pessoas e os movimentos. Por exemplo, eu faço parte de uma rede de pesquisa que está relacionada às universidades, aos institutos de pesquisa e às diferentes formas de produção de conhecimento, que se define como uma rede de pesquisa cidadã.
Isso ocorre porque a rede nasceu de uma convocação da sociedade civil em 2012, através de uma das últimas Conferências de Segurança Alimentar, para que a pesquisa e a academia gerassem conhecimento que atendesse às necessidades da população. A rede de pesquisa cidadã tem por missão o reconhecimento de que a academia é um dos lugares de produção de conhecimento e, com certeza, não é o único e nem é necessariamente o maior.
Essa é uma questão importante porque parte daí a iniciativa da rede em trabalhar com os movimentos sociais, atendendo às demandas que aparecem nas áreas urbanas e rurais. É uma convergência salutar que traz esperança de que realmente as dificuldades e sofrimento estão nos levando a um movimento de solidariedade, que talvez seja maior que do que o atendimento às nossas emergências nesse momento. Que possa ser algo para o futuro e para as novas gerações.
Eu tenho uma expectativa muito grande com relação a isso. Que não se encerre com o fim da pandemia, que continuemos juntando forças e fazendo esforços para sermos únicos, para não sermos esses quadradinhos separados que a gente vive com muita frequência, sobretudo nas nossas universidades.
Sheila: É exatamente isso, Ana. Estamos em um momento em que precisamos nos unir e aglutinar esses esforços. A produção acadêmica é fundamental para nossa luta, assim como a elaboração de ação de advocacy, dos movimentos sociais e ações comunitárias precisam atuar em consonância.
É muito importante reconhecermos parceiros de luta que estão juntos no enfrentamento dessa demanda. Não temos outra chance de sobrevivência senão através do fortalecimento desse campo de resistência.
A sociedade civil organizada hoje é o nosso espaço de construção de um novo mundo e é muito importante que consigamos conciliar esse mundo a partir de agendas específicas. A luta e enfrentamento à fome vem sendo uma das nossas razões principais de nos unirmos e nos colocarmos em resistência, mas tem outras agendas que também são tão importantes e consonantes. Continuamos, enquanto movimento negro, lutando contra um processo de genocídio negro, porque essa política é que possibilita todo esse desmonte que estamos vendo, a construção de um Estado que viola as nossas vidas e que desrespeita as nossas existências.
É muito importante que estejamos juntos com outros atores para superarmos isso. E lembrando também, que estamos falando de desigualdades históricas dentro de um Brasil que sempre foi desigual. Nossa resistência vem de séculos de desigualdade e descriminação.
Ana Maria: [para Sheila] Como está a mobilização da Coalizão Negra por Direitos nas áreas rurais brasileiras? Sabemos que essa população é pequena e majoritariamente negra, de populações tradicionais. Como as mobilizações dessas iniciativas dão conta da situação que é mais dramática, apesar da densidade demográfica menor em termos absolutos? Quais as estratégias, frente às dificuldades encontradas?
Sheila: O que fazemos é tentar conectar a formação política junto com a ação humanitária. Não é uma questão de “agenda assistencialista” — que aqui nesse momento é necessário, porque tem muita gente com fome — a nossa iniciativa espera conectar ação política com ação de formação e debate sobre o porquê da importância das doações e o que esperamos atingir com isso a longo prazo.
Ao mesmo tempo que temos a ação comunitária de enfrentamento à fome, somos uma das organizações que lidera o processo de luta pelo auxílio emergencial e pela instituição de renda básica universal nos 27 estados do Brasil, em tramitação no STF — Supremo Tribunal Federal.
O que é interessante para nós neste momento, não é só fazer uma ação humanitária isolada, é fazer isso de forma estratégica, conectado com outros movimentos de resistência, em atuação com o plano das institucionalidades e da criação de políticas que repensam o mundo e o que vamos fazer a partir daí.
Nesse momento também retornamos a um cenário em que a construção de um debate político dentro de nossas comunidades é muito importante. “Qual a importância dos direitos humanos?”; “Qual a importância de políticas públicas de enfrentamento à fome?”; “O que é violência e por que passamos por isso?”; “O que é racismo?”. Fomentar esses diálogos, de maneira mais ampla dentro das nossas comunidades, permite a conexão com o que estamos vivendo enquanto sistema de privação.
Sheila: [para Ana Maria] Gostaria queria que você contasse a importância de conselhos participativos, abordasse a extinção do Consea e qual a relevância deles para a criação de políticas de segurança alimentar. Por que foi o primeiro a ser extinto?
Ana Maria: Na década de 1990, o Brasil criou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar que foi extinto no governo do Fernando Henrique Cardoso, a partir da criação do Comunidade Solidária. Isso não substituiu de forma alguma o Conselho, que na época era uma forma de organizar todos os comitês da Ação da Cidadania no Brasil e dar a eles o caráter institucional para incidência e formação de políticas públicas.
O Consea foi recriado no início do governo do Partido dos Trabalhadores, quando o Lula tomou posse. Por trás da recriação do Conselho estava a ideia de criação de uma democracia representativa e participativa no Brasil. O ressurgimento das conferências nacionais, promovidas a cada quatro anos, contribuíram para uma grande capilaridade a partir da reunião de populações também nos municípios brasileiros. Havia as conferências municipais cujos delegados eram eleitos para as conferências estaduais e em seguida levavam suas pautas para as conferências nacionais.
Isso possibilitou subsidiar o Consea com proposições de políticas públicas muito objetivas. Além das políticas universais de transferências de renda, o Conselho influenciou muito na expansão de políticas de crédito rural, a questão do abastecimento e compra de alimentos dos produtores de agricultura familiar, viabilizou as pautas relacionadas às populações tradicionais e as questões das políticas de cotas.
Apesar da sua extinção pelo atual governo, a experiência nesses 14 anos de governo do PT solidificou na sociedade brasileira a certeza de que a sociedade civil precisa ter voz e pode incidir nas políticas públicas. Tanto isso é verdade que vamos ter esse ano a Conferência Popular de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, que é a continuidade da parcela da sociedade civil que fazia parte do Consea nesses anos todos.
O Consea não morreu. Isso nos dá esperança de que, assim que os tempos melhorarem e essa tempestade passar, a gente possa conduzi-lo, assim como vários conselhos nacionais extintos na primeira canetada do primeiro dia de governo desse “necropolítico” que temos aí como presidente.