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Para uma agenda de Brasil: entrevista com Flávia Oliveira

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28.09.2021

Em conversa com Flavia Oliveira, integrante do conselho administrativo do Instituto, o Ibirapitanga abordou o estado da construção democrática no Brasil. Com olhar arguto, a jornalista abre uma reflexão sobre o papel dos movimentos sociais nesse processo, que já vislumbravam o momento em que nos encontramos hoje, partindo da premissa de que a consolidação da democracia só será viável por meio da valorização de suas demandas. Sua reflexão reforça os movimentos negro, de povos indígenas e de mulheres, que atuam nas frestas por direitos, num país onde o poder político de decisão ainda é predominantemente ocupado pela minoria da população — homens brancos de meia ou terceira idade. 

Instituto Ibirapitanga: Quais três aspectos você considera fundamentais para descrever o estado da democracia no Brasil atualmente? Por que eles são importantes?

Flávia Oliveira: Atualmente eu vejo a democracia no Brasil muito fragilizada, mas não significa que ela já tenha sido forte o suficiente. O governo Bolsonaro é um divisor de águas, mas antes dele, já apontava as assimetrias ou anomalias do que nos acostumamos a entender como democracia. Porque sempre houve ausência de representatividade e isso não foi uma invenção do atual presidente, talvez ele tenha significado um retrocesso de algumas poucas conquistas, ou uma radicalização dessa hegemonia do homem branco na política e nos espaços de poder, mas ele não inventou esse cenário. 

Entre os três aspectos que eu considero fundamentais, o primeiro diz respeito ao eixo da representatividade, que retrocedeu e se agravou na invisilbilidade de pessoas que sempre estiveram subrepresentadas e agora ainda mais, como, por exemplo, a ausência de negros, mulheres, indígenas e população LGBTQIAP+. Observa-se um retrocesso do ponto de vista da representação dos grupos que formam a sociedade brasileira.

Outro aspecto é a fragilidade institucional que observo com muita perplexidade o quanto os seus fundamentos já eram frágeis. Digo isso, porque hoje judicializamos procedimentos, iniciativas e decisões das instituições democráticas que já deveriam estar assegurados há muito tempo, do ponto de vista do marco legal. A lista tríplice para a escolha do procurador-geral da República, por exemplo: como  era baseada em liberalidade, em tradição? Como que o fato de o Ministro da Defesa ser um civil era uma liberalidade dos presidentes democratas Fernando Henrique, Lula, Dilma em particular? O Bolsonaro não inventou a inserção militar no Ministério da Defesa, quem fez isso foi o Michel Temer. Como só agora estamos discutindo a presença de militares, da ativa ou da reserva, em cargos civis e esse excesso de presença militar em cargos civis? Para mim é estarrecedor! Estarrecedor como o Bolsonaro, em seu primeiro ano de governo, por meio de “canetadas” desmobilizou, alterou a composição e mutilou conselhos de diálogo e espaços de representação da sociedade civil. Essas extinções aconteceram na educação, no meio ambiente, na saúde e na alimentação. Como isso não estava consolidado?

Tenho assistido com certa perplexidade a forma como alguns pilares, que a gente supunha fortes, vêm sendo demolidos e que na verdade, estavam ancorados na boa vontade, na benevolência de autoridades.

E o terceiro aspecto é que, independentemente desse governo, para além das ações da sociedade civil organizada, não tenho visto mobilização, iniciativas na direção da reconstrução da democracia permeadas por urgência de mais diversidade, ligadas a essa questão da representatividade política. 

Vou citar como exemplo o código eleitoral, a recente pequena reforma política que se apresentou no congresso. Não havia nada sobre, pelo contrário inclusive, apareceram propostas que obviamente dificultariam o aumento da diversidade. Havia proposta de voto distrital que, se passasse, obviamente privilegiaria quem já está no poder. Então, é curioso que a gente orienta muitas críticas para um governo, mas a base já vinha sendo corroída.  

Nunca tivemos democracia plena e a reconstrução do que costumávamos chamar de democracia, precisa se dar em bases diferentes do que as anteriores ao governo Bolsonaro. Ou os governos anteriores a ele não eram predominantemente masculinos brancos e de meia idade? Ou os parlamentares eleitos antes de 2018 também não eram predominantemente masculinos brancos, donos de alto patrimônio, de funções empresariais? Tudo isso já existia.

Instituto Ibirapitanga: Há quem defenda que não há um momento chave em que a presente escalada autoritária atingirá um ápice, na forma de um golpe de Estado de fato. Neste tipo de visão, o “golpe” está acontecendo continuamente e pode seguir, fazendo com que o Estado democrático de direitos passe por um processo de erosão, ao contrário de uma implosão. Qual sua percepção sobre essa visão?

Flávia Oliveira: O jornalista e cientista político, Sérgio Abranches fala de um processo autoritário híbrido em curso no país, que ataca e ao mesmo tempo usa as instituições, se infiltrando e corroendo ao mesmo tempo. Eu acho que essa tese faz sentido, mas não descarto que o atual presidente da República possa sim ter em mente um projeto de perpetuação e alongamento de tempo no poder. Não acho que é para afastarmos dos nossos radares uma tentativa mais incisiva e clássica de golpe, porque há mobilização de uma base de apoio mais radicalizada, que responde ao projeto frustrado de reeleição do Bolsonaro. 

A infiltração desse modelo autoritário e pouco transparente já se dá na gestão pública. Temos algumas evidências, como o caso do procurador-geral da República e do presidente da câmara, ambos alinhados ao governo. Podemos observar uma tentativa de aproximação também do presidente do Senado, que vem tentando se desvincular de uma forma ponderada, fora os ataques crescentes ao STF e ao sistema eleitoral.

Objetivamente, hoje temos muito mais brasileiros desconfiados e com duvida da credibilidade e segurança do nosso sistema eleitoral eletrônico do que tínhamos em 2017, 2018 e 2019. Portanto, existem alguns pilares da estrutura política eleitoral que também  estão sendo abalados. 

Temos gastado muita energia em tentar conter o avanço desse movimento e acho que isso não é trivial: tem impedido a elaboração de pautas de interesse de toda a sociedade brasileira. Há diversas agendas que precisamos ampliar e elas estão até, em alguma medida, secundarizadas, porque a urgência é de erguer uma defesa da democracia. E nesse sentido, eu acho que o mês de setembro de 2021 foi muito simbólico, a partir de uma posição, seja do Luiz Fux, ministro e presidente do STF Supremo Tribunal Federal, seja do Luís Roberto Barroso, ministro do STF e presidente do TSE Tribunal Superior Eleitoral, seja do corregedor Luis Felipe Salomão, do também ministro do STF, Alexandre de Moraes, seja das articulações de organizações da sociedade civil, principalmente representações do empresariado se aliando na construção desta barreira, por terem compreendido finalmente que democracia é um ativo de estabilidade também para o ambiente de negócios e para a confiança do investidor.

Preciso lembrar que, quando usamos o nosso tempo para defendermos a democracia, deixamos de olhar outras agendas absolutamente urgentes. Enquanto isso, não tem política social, aumenta-se o IOF para arrecadar mais dois bilhões para o “Auxílio Brasil” — versão reformulada do Bolsa Família — e gerar mais 100 reais, quando a gente sabe que o problema está longe de ser esse, ou capaz de ser resolvido dessa forma.

Não é um problema a ser resolvido em dois meses, não é um problema de 200 reais. É o problema das crianças fora da escola, das menores inscrições do Enem, do fluxo e da distribuição errática de vacinas, nove meses depois do início da campanha nacional de imunização. E passamos o último mês e meio dedicados a falar que o Brasil é uma democracia, não precisávamos ter esse debate agora.

Estamos retrocedendo e isso é muito perigoso porque as desigualdades estão aumentando, a fome está aumentando, o desemprego está altíssimo, a renda está caindo, a inflação disparando, a água está acabando, a Amazônia está queimando e a gente está ali abordando a confiabilidade da urna eletrônica. Isso é muito desgastante, é muito cansativo. Está exaurindo forças, estratégias e musculatura da sociedade e das instituições para resolver problemas que não tínhamos e não precisávamos ter.

Instituto Ibirapitanga: O primeiro semestre deste ano foi marcado pelo início de uma série de protestos contra o governo federal, com uma periodicidade aproximadamente mensal. De lá para cá, vimos fortalecerem-se entre as reivindicações, as pautas da alimentação (sobretudo em função do aumento da fome e desnutrição) e da questão racial, junto à demanda por uma gestão responsável das consequências da pandemia de covid-19. Enquanto conselheira do Ibirapitanga, que tem esse dois temas centrais, como você vê a emergência desses debates na sociedade civil organizada atualmente e as possíveis interseções entre eles? O que você percebe de especial?

Flávia Oliveira: A abordagem de sistemas alimentares está absolutamente associada às desigualdades sociais e de gênero o que faz com que a interseção entre os programas de Equidade racial e Sistemas alimentares do Ibirapitanga seja cada vez mais relevante. 

É importante chamar atenção, inclusive à luz da pandemia, que sobrecarregou ainda mais as mulheres. Sempre debati esse tema da alimentação saudável com o pessoal da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, abordando a questão da sobrecarga da mulher e que a “criminalização” da comida processada devolve às mulheres o fogão. Então, tem que absorver também o debate de como é essa elaboração da comida saudável.

Essa assimetria nas atribuições domésticas envolve também raça, porque basicamente, a predominância de famílias de baixa renda, monoparentais, de mulheres sem cônjuge com filho pequeno, que têm que trabalhar e sustentar, também são pessoas negras. Esse debate não pode estar apartado.

 E de modo geral, por razões de renda, essas famílias também estão mais expostas a essas comidas ultracalóricas, salgadas que levam inclusive a indicadores de saúde muito alarmantes e índices de longevidade muito piores.

É fundamental termos o cruzamento desses dois debates para pensarmos sistemas alimentares à luz de desenvolvimento local, de cozinhas comunitárias, de políticas públicas que dêem conta dessa necessidade, à luz do saneamento, da oferta de água potável, da política de educação, da alimentação escolar pautada por uma comida mais saudável e que considere as características regionais. Isso tem tudo a ver com raça, com o combate às desigualdades raciais e os direitos democráticos da população negra.

Temos,  por exemplo, milhares de comunidades quilombolas espalhadas pelo Brasil inteiro reconhecidas ou não. E boa parte delas tira ou pretende tirar da produção de alimentos sustentável, orgânica, o próprio sustento.

Acho que isso é fundamental porque, na verdade, hoje vejo muitas vezes o debate sobre sistemas alimentares ocupando uma faixa da população que não é a base, que não é exatamente a população que está mais mal alimentada. Além disso, acho que é fundamental o diálogo com instâncias subnacionais de poder estados e municípios. Que essa agenda pode ser incrementada não só a partir da pressão junto ao governo federal, mas também, governadores e prefeitos podem fazer muita coisa. 

Instituto Ibirapitanga: Ainda nessa toada, desde antes da pandemia, no início do governo Bolsonaro, o movimento negro tomou a dianteira na incidência política para barrar retrocessos e, mais tarde, se tornou uma das frentes mais presentes no enfrentamento à atual situação de agravamento da crise política e sanitária. Quais são os pontos mais importantes que passaram a figurar com força na pauta racial de 2019 para cá, no contexto de recrudescimento do ambiente político?

Flávia Oliveira: Eu acho que essa construção não é de hoje, o movimento negro vem atuando há muito tempo, antes da abolição, no pós abolição e durante a ditadura. Nós aprendemos muito com os nossos mais velhos, os que nos antecederam. Sem dúvida, nós do movimento negro e o movimento dos povos indígenas temos algum reconhecimento da sociedade brasileira, pelos diagnósticos precoces do que estaria por vir.

Eu acho que é fundamental reivindicar esse protagonismo no diagnóstico. Todo mundo ali sabia o imenso retrocesso que se avizinhava e eu carrego inclusive esse rancor, porque na campanha de 2018 houve críticas por uma suposta agenda identitária, quando na verdade, não havia nada de identitário sendo construído naquela agenda.

 Alguns grupos que já tinham experimentado poder e que achavam que, à moda brasileira, era possível acomodar, fazer um pacto, moderar, trazer para o centro, tentaram desqualificar e apartaram esse nosso movimento.

Eu preciso chamar atenção para isso, porque embora nos acusem de sermos identitários, quem entendia de Brasil éramos nós. Nós sabemos muito de Brasil. E falando especificamente do movimento negro, eu acho que ele deu um salto do ponto de vista da mobilização e de construção de protagonismo político do Brasil de Bolsonaro. Simplesmente nesse cenário criou-se a Coalizão negra por direitos. Uma articulação de unidade das organizações que estavam fragmentadas e que decidiram montar uma grande tenda para expandir as agendas prioritárias. Isso se deu no macro na presença da Coalizão por meio de manifestos, com aproximação, no parlamento brasieiro e em organizações multilaterais e se deu também no micro, como, por exemplo, na campanha “Tem gente com fome”. 

Ninguém deixou de atuar diante das inúmeras dificuldades, do agravamento da crise, do risco sanitário, ninguém deixou de atuar pelos nossos. Tivemos a organização de espécies de mutirões para viabilizar a inscrição para o auxílio emergencial de pessoas que não tinham nem computador, nem internet, nem smartphone porque o governo criou uma política de acesso que desprezou o sistema de assistência social e que seria inviável pra muita gente que não tem o letramento digital. E neste cenário, as organizações do movimento negro e de mulheres negras, em particular, foram fundamentais para viabilizar esse acesso.

Tivemos forte atuação no enfrentamento à violência policial que aumentou, seja por manifestações, passeatas, ou por provocação ao STF, para a execução da ADPF 635, com participação de diversas organizações da sociedade civil e do movimento negro. Isso, no enfrentamento à pandemia, entre maio e junho, em seu momento mais dramático e de maiores índices de letalidade.

Levamos à diante, a partir do interesse da mídia pelo caso George Floyd, chamamos a atenção e tivemos uma mobilização muito robusta, que aumentou muito a visibilidade do movimento negro brasileiro, do movimento de mulheres negras, durante a pandemia um feito extraordinario, diante do recurso e das condições.

Mas isso não começou em 2019 e nem em 2020, o próprio assassinato de Marielle Franco, infelizmente, também serviu de combustível, mas sempre estivemos aqui, apesar da falta de representatividade na política. Conseguimos atuar pelas frestas e avançar em um arcabouço de medidas jurídico-institucionais para as leis de criminalização do racismo, lei de cotas e políticas universais que também nos interessam, porque a agenda do movimento negro é uma agenda de Brasil.

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