Acessando arquivos a partir das mulheres negras — Entrevista com Ana Flávia Magalhães Pinto

Ana Flávia Magalhães Pinto, diretora-geral do Arquivo Nacional |
“Estamos apostando hoje na possibilidade de disputar não mais um espaço dentro de outros projetos para as nossas questões, que são tidas como menores. Mas nós estamos apostando na possibilidade de que, através de nossas questões, nós consigamos efetivamente tocar, e tocar muito fundo, nas questões que dizem respeito à sociedade como um todo.”((Por uma política nacional de combate ao racismo e à desigualdade racial: Marcha Zumbi contra o racismo, pela cidadania e a vida, Brasília: Cultura Gráfica e Editora Ltda., 1996, p.1.)) Luiza Bairros
Portal entre o tempo que vivemos e um passado que ainda ressoa nele, a frase de Luiza Bairros abre o documento resultante da Marcha Zumbi contra o racismo, pela cidadania e a vida (1995). Debruçando-se sobre esse e outros documentos, alinhavando-os a uma escuta sensível a intelectuais negras, Ana Flávia Magalhães Pinto, em parceria com Felipe Freitas, desenvolveu em um artigo uma espécie de relicário que guarda e projeta memórias coletivas na contribuição de Luiza Bairros. Esse é um exemplo entre muitos dos esforços de movimentos negros dentro e fora da academia para reivindicar seu papel na história de construção de outro Brasil.
Ana Flávia Magalhães Pinto é historiadora e professora na UnB Universidade de Brasília. É a primeira docente negra do Departamento de História da UnB e atualmente é Diretora-geral do Arquivo Nacional. A abordagem à memória a partir do trabalho com o arquivo de diferentes protagonistas, entre os quais, mulheres negras, já é experiência de longa data da historiadora. Em entrevista ao Ibirapitanga, Ana Flávia Magalhães Pinto reflete sobre a contribuição de mulheres negras com a memória e políticas públicas de valorização da memória negra.
Ibirapitanga: Na sua trajetória como historiadora, a sua pesquisa se debruçou sobre uma gama de assuntos fundamentais nas relações raciais, como a atuação político-cultural de pensadores/as negros/as; imprensa negra; abolicionismos, experiências de liberdade e cidadania negras no período escravista e no pós-abolição, no Brasil e na Diáspora Africana. Dentro desses temas, as suas produções reúnem uma intensa contribuição de mulheres negras com a memória((Algumas dessas produções de Ana Flávia Magalhães Pinto:
Griôs da Diáspora Negra, de Ana Flávia Magalhães Pinto, Chaia Dechen e Jaqueline Fernandes (organizadoras))). Como o pensamento de mulheres negras colabora para a valorização da memória?
Ana Flávia Magalhães Pinto: Logo após a passagem de Luiza Bairros para a ancestralidade, em 2016, desenvolvi em parceria com Felipe Freitas e a partir de um diálogo orientador com Sueli Carneiro o artigo “Luiza Bairros, uma ‘bem lembrada’ entre nós 1953-2016”, sobre a trajetória dela. Essa experiência me fez dimensionar com maior nitidez o papel do pensamento de mulheres negras na minha produção intelectual. Mais do que objeto de análise, mulheres negras têm me ensinado a pensar e atuar no mundo, a lidar com as diferentes temporalidades. Penso que isso é algo a destacar na atuação de intelectuais ativistas, acadêmicas ou não. Quando Beatriz Nascimento fala sobre a importância de se escrever a história da população negra desde a liberdade, ela não estava tentando desviar dos traumas gerados pela escravidão. Ela, na verdade, estava afirmando uma agenda historiográfica com força de subverter uma matriz de memória racista e hegemônica, que sequestrava a nossa condição de sujeito histórico ao nos reduzir uma imagem desumanizadora de “escravos”, nem mesmo acatando o registro como “pessoas escravizadas”. Movimentos semelhantes podem ser identificados nas elaborações de pensamentos de mulheres como Lélia Gonzalez, Maria Firmina dos Reis, entre tantas outras.
Ibirapitanga: Nessa mesma chave de reflexão, qual o significado da chegada de uma mulher negra à posição de Diretora-geral do Arquivo Nacional?
Ana Flávia Magalhães Pinto: Eu não romantizo essa chegada de uma mulher negra como titular da Direção-geral do Arquivo Nacional após 185 anos de existência da instituição. Num país em que mulheres negras formam o maior segmento populacional, se pensarmos os eixos de raça e gênero, a presença de alguém como eu nesse lugar é motivo de muita preocupação.
O Brasil passou mais tempo naturalizando essa ausência do que fortalecendo essa presença. Isso faz parte da nossa memória coletiva. Não devemos acreditar, portanto, que a chegada de uma mulher negra cuja trajetória se fez questionando essas violências historicamente mantidas signifique a superação dos problemas. Uma aposta apenas nessa presença isolada pode até mesmo contribuir para alavancar uma atualização da própria exclusão que se quer combater.
Ibirapitanga: Quando pensamos o acesso à informação como direito e também como possibilidade de produção de conhecimento, de que forma a gestão do Arquivo Nacional pode colaborar para a valorização da memória negra, aliada também à ampliação do conhecimento sobre a memória da escravidão? Quais ações o Arquivo tem feito nesse sentido?
Ana Flávia Magalhães Pinto: Nas últimas décadas, temos assistido a uma transformação das práticas em instituições de memória e das próprias políticas de memória em escala global. Movimentos que demandam a descolonização de museus, dos monumentos, passaram a ser mais visíveis, sobretudo em anos recentes. Esforços nesse sentido também são empreendidos em arquivos, embora o processo de mudança seja diferente e até mesmo mais difícil. Os arquivos não são apenas equipamentos de cultura. Muitos são equipamentos também dedicados à gestão pública. Ocorre que, independentemente do perfil, é preciso avançar na problematização do alcance político-social dos arquivos. É preciso aproximar o povo brasileiro do patrimônio documental nacional. Estimular a percepção do que pode ser lembrado e como, por meio dos documentos que já estão e poderão ser custodiados no Arquivo Nacional, tem sido uma dimensão chave da atual gestão. Temos ainda promovido ações de sensibilização entre gestores de órgãos públicos nessa mesma direção. A Semana Nacional de Arquivos tem sido outra ação importante, bem como o desenvolvimento de ferramentas tecnológicas que potencializam o acesso aos documentos e o engajamento de usuários na qualificação da descrição arquivística, de modo que seja cada vez mais fácil, a qualquer pessoa, perceber a presença do povo brasileiro no acervo da maior instituição arquivística do país. Por isso, temos dado prioridade a ações de aproximação com grupos historicamente subdimensionados na política nacional de arquivos, a exemplo da população negra, povos indígenas, comunidade LGBTQIAPN+, representações das regiões Nordeste, Norte, Centro-Oeste e Sul.
Ibirapitanga: Ainda pensando a valorização da memória negra, na sua visão, quais são algumas das prioridades que temos no atual contexto em termos de políticas públicas?
Ana Flávia Magalhães Pinto: Segundo os mais recentes dados do IBGE, a população negra representa 55,5% do povo brasileiro. É com base nessa relevância e no imperativo de combater o racismo que temos desenhado e contribuído para o desenho de políticas públicas tanto voltadas à interface com representantes de estados e municípios quanto até mesmo em perspectiva internacional. Nesse sentido, as políticas públicas desenvolvidas pelo Arquivo Nacional e o MGI — Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, do qual ele passou a fazer parte como uma Secretaria, têm lidado cotidianamente com o desafio de tratar a diversidade não como tema, mas como fundamento. Não é algo fácil, nem simples, mas esse envolvimento permanente tem servido para sensibilizar e constranger segmentos ainda resistentes à garantia de uma experiência mais profunda de democracia em nosso país.
Ibirapitanga: Em sua percepção, qual o papel dos arquivos comunitários na preservação da memória negra?
Ana Flávia Magalhães Pinto: Os arquivos comunitários têm sido fundamentais para a preservação da memória negra, em especial naquilo que escapa aos critérios até hoje vigentes na gestão de documentos públicos. Não se pode dizer que a população negra esteja ausente da documentação produzida em órgãos oficiais de governo. Ao mesmo tempo, também não podemos dizer que os registros sejam feitos com base na perspectiva dessa população. Daí a importância de garantirmos uma política pública que garanta a salvaguarda de acervos constituídos a partir de diferentes propósitos, assegurando uma memória mais polifônica. A mesma observação vale para outros segmentos da nossa população, a exemplo de povos indígenas, mulheres, pessoas LGBTQIAPN+, comunidades periféricas, rurais, povos tradicionais, entre tantos outros que têm desenvolvido projetos com acervos comunitários frequentemente sem o respaldo de políticas públicas com foco em arquivos.