Enraizar cozinhas para soluções sistêmicas

O agravamento da fome e desnutrição, o aumento da obesidade na população, o esgotamento das fontes de energia renováveis, a redução dos recursos hídricos e as ameaças à biodiversidade são algumas das graves consequências de políticas socioeconômicas e ambientais nocivas. Não há atalhos ou paliativos, no cenário atual, tais situações-limite demandam soluções sistêmicas.
No entanto, dificilmente será possível encontrar respostas e desenhar novas estratégias de intervenção nessa realidade sem o conhecimento e atuação sobre as especificidades locais. Viabilizar uma experiência nesse sentido é a contribuição que o MTST — Movimento dos Trabalhadores Sem Teto busca dar aos esforços voltados a essas soluções. O movimento vê na cozinha um espaço de enraizamento local do trabalho comunitário e de diferentes processos de formação política com potencial de impulsionar a transformação do presente cenário. Para isso desenvolveu o projeto Cozinhas Solidárias, que busca impactar diretamente a vida da população mais vulnerável das periferias urbanas, por meio da distribuição de alimentos saudáveis e sustentáveis produzidos por um processo que também valoriza a formação de profissionais nesse campo.
O projeto Cozinhas Solidárias surge no contexto da pandemia e de aprofundamento da crise política atual, mas é fruto do legado de lutas históricas do movimento e aponta para uma visão de longo prazo, que pode e deve inspirar o desenvolvimento de políticas públicas voltadas à garantia do direito à alimentação adequada e saudável da população mais vulnerável.
Operante desde 1997 e presente em 12 estados do Brasil, o MTST organiza e impulsiona identidades coletivas de trabalhadores urbanos a partir do local em que vivem, em torno de suas reivindicações e lutas. Nos últimos anos vem aprofundando sua atuação nas periferias pela defesa do direito à alimentação, que se tornou tema central para o movimento. As cozinhas coletivas são um marco deste processo, construídas e operadas em bairros periféricos de grandes cidades, como São Gonçalo e Niterói, no estado do Rio de Janeiro. A implementação de hortas orgânicas nos espaços coletivos e condomínios do MTST é outra iniciativa que vem avançando nos últimos dois anos para fomentar a produção de alimentos e fortalecer a atuação territorial. Diante da pandemia, em 2020, o MTST também lançou o Fundo de Solidariedade aos Sem-Teto Atingidos pelo Coronavírus, distribuindo mais de 220 toneladas de alimentos, 156.000 refeições para um total de 19.640 famílias nos centros urbanos brasileiros.
O MTST também se recentralizou como forte ator nas ações diretas e de rua relacionadas ao combate à fome e à desigualdade socioeconômica, tendo protagonizado episódios de protestos de ampla repercussão nos veículos de comunicação. A recente ocupação da Bolsa de Valores utilizou como palco o espaço onde a riqueza do Brasil é negociada, para denunciar a alta dos preços, em especial dos alimentos, e evidenciar enriquecimento de poucos bilionários a partir da exploração do trabalho de muitos. A ocupação da “Mansão da Rachadinha” também fez parte desta “jornada contra a fome” e foi realizada em frente à casa do Senador Flávio Bolsonaro, comprada por seis milhões de reais, o que levantou suspeita sobre a lisura do processo, em meio à crise que que levou milhões de brasileiros à insegurança alimentar.
Iniciativa mais recente no campo da alimentação, as Cozinhas Solidárias partem da operação de uma cozinha modelo em São Bernardo do Campo, apoiada pelo Instituto Ibirapitanga. Nela, o MTST implementa todos os elementos que, como equipamento modelo, servem de referência às 25 outras cozinhas. A experiência também procura influenciar a modelagem de políticas públicas capazes de articular, com base na garantia de alimentação equilibrada, o abastecimento de produtos vindos da agricultura familiar, tratamento correto dos detritos da cozinha, uso de composteiras para material orgânico, reutilização da água da chuva, entre outros princípios.
Com funcionamento diário, as Cozinhas Solidárias distribuem almoços gratuitos para as famílias das periferias dos centros urbanos do país. A meta do movimento é produzir e distribuir 32 mil refeições por mês a partir do funcionamento total das 26 cozinhas.
As cozinhas contam com equipe fixa de cozinheira/o e ajudante que passam por um processo de formação e recebem uma bolsa trabalho. O projeto articula professoras e formadoras voluntárias que ajudam na profissionalização, empregabilidade e geração de renda para pessoas da base do movimento, configurando-se como plataforma de formação para profissionais que trabalham com alimentação sustentável e segurança alimentar. Cada Cozinha Solidária conta também com um manual sanitário com orientações para o período de pandemia.
A iniciativa possui fontes diversas de financiamento, como campanhas de arrecadação solidária, apoio de entidades e organizações de cooperação, articulação com entidades locais, entre outros. Em parcerias como com o MPA — Movimento dos Pequenos Agricultores, o MTST garante a aquisição da produção de pequenos agricultores rurais, possibilitando que as cozinhas ofereçam alimentos saudáveis, ao mesmo tempo que fomenta a agricultura familiar e a agroecologia. Também com esse foco, o movimento busca, quando possível, associar a implantação das cozinhas às suas hortas urbanas.
Para viabilizar o componente do projeto voltado a apresentar alternativas à formulação de políticas públicas, a iniciativa conta com pesquisa de avaliação de impacto em parceria com o IEA / USP — Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. O objetivo da avaliação é identificar o efeito exclusivo de uma intervenção sobre as variáveis de resultado, tendo como base a perspectiva sistêmica da alimentação.
A cozinha modelo de São Bernardo do Campo já está em funcionamento e a história de sua idealização e construção é contada pelo mini doc “Do Teto ao Prato”, realizado por William Martins.
Do chão da cozinha, o MTST alimenta, cria espaços e esforços concretos de formulação de caminhos, práticas e políticas voltadas a superar os desafios profundos do atual sistema alimentar dominante.