Caminhos do audiovisual a partir da presença negra antes, ao lado e adiante

Da esquerda para a direita, Heitor Augusto, Fernanda Lomba e Raul Perez, idealizadores do Nicho 54, durante o “Nicho Novembro”, evento de lançamento do instituto, 2019.
Propor outros imaginários sobre e para a população negra é um esforço realizado por diferentes iniciativas voltadas à equidade racial, que povoam numa crescente a história do Brasil. Como epicentro de reflexão e ação nesse sentido, o campo audiovisual é um ambiente exemplar para observar o efeito. Um olhar aproximado e interessado revela as conexões entre essas iniciativas na área, o que, à primeira vista, pode parecer difícil de perceber. As ações que pensam e promovem a maior ocupação de profissionais negras/os/es no audiovisual hoje, foram possibilitadas por aquelas que abriram caminhos inacessíveis no passado. Constatar o fato também evidencia a capacidade dessas iniciativas que se fizeram reverberar, ainda que não tenham sido sistematicamente transmitidas de uma geração a outra, em função dos obstáculos apresentados pelo racismo estrutural. Neste campo com população negra ainda subrepresentada, seu imaginário e memória são montados e remontados, a partir dos múltiplos repertórios que geram ricas narrativas. Se manifestam desde o existir, pensar e fazer de profissionais negras/os/es até a ocupação das telas brancas de cinema.
Com a consciência do pertencimento a esta geração de profissionais, que agora acessam mais espaços a partir da atuação de seus antepassados diretos, o Nicho 54 se constituiu para ser um novo ator na continuidade do processo. A organização é inspirada também a partir de experiências internacionais que tratam da reparação da exclusão racial e de gênero no audiovisual, a exemplo do programa Diversity & Inclusion do European Film Market no Festival de Berlim. O Nicho 54 foi criado em 2019 para atuar na formação de jovens profissionais negras/os/es do audiovisual, incluindo perspectivas de gênero, classe e orientação sexual. Em 2020, a organização dá um novo passo em sua história, a partir do projeto “Nicho 54: formação e inserção de profissionais negres no setor audiovisual brasileiro”, apoiado pelo Instituto Ibirapitanga. A iniciativa é voltada à institucionalização da organização, prevendo também duas outras ações – o “Nicho responde” e o “Mapeamento de profissionais negres do audiovisual”.
Atento às demandas relacionadas às questões raciais no campo do audiovisual, o Nicho 54 desenvolve sua atuação em três eixos. Formação é um deles, também o eixo mais amplo, sendo interseccional aos demais. Está voltado à capacitação para jovens profissionais exercerem diferentes funções na cadeia do audiovisual. Outro eixo é curadoria, que abarca a formação do olhar e disputa do imaginário, seja na programação de filmes para o público em geral ou na oferta de oficinas e vivências curatoriais para jovens profissionais negros/as/es. Por último, mas não menos importante, o eixo mercado é responsável pelas ações de aproximação entre profissionais e a indústria audiovisual, incluindo construção de banco de dados de profissionais, sensibilização de contratantes e realização de ambientes de mercado para projetos de realizadores negras/os/es.
A atuação do Nicho 54 busca pautar o campo audiovisual, no lugar de simplesmente reagir a ele. Seu pensamento estratégico proporciona um olhar sobre toda a cadeia produtiva e criativa do audiovisual, para impactar suas extremidades e seus meandros.
A organização valoriza também a cultura de compartilhamento, num campo em que o poder da informação é ferramenta de manutenção de hierarquias. Dessa perspectiva, o Nicho 54 entende o compartilhamento de tecnologias como prática crucial para a expansão das potências negras.
A ação “Nicho responde” é um exemplo dessa prática, que também afirma o eixo formação da organização. A série de encontros online promoveu discussões sobre direito ao trabalho, mercado e política a partir da experiência de profissionais negras/os/es do audiovisual brasileiro, proporcionando o aprimoramento técnico e criativo de outros. Em seus sete encontros, o “Nicho responde” levou 14 profissionais para compartilhar suas experiências e conhecimentos, em torno dos temas pós-produção, direção de arte, roteiro, crítica, direção de fotografia, direção e produção executiva.
Como parte do eixo mercado, o “Mapeamento de profissionais negres do audiovisual” tem como objetivo construir uma cartografia de profissionais negras/os/es atuantes no audiovisual para facilitar conexões com vagas de trabalho, por meio de sensibilização com agentes contratantes. A ação busca gerar visibilidade para profissionais, simultaneamente funcionando como um instrumento complementar à responsabilização de agentes de mercado na alteração do cenário de exclusão racial no campo audiovisual.
Em seu primeiro ano, a atuação do Nicho 54 reflete a herança de experiências negras que imaginaram e seguiram pistas deste presente como seu futuro. Certos de que não andam só, o pensamento e ação dessa organização são conectados a uma geração que olha para o lado como orientação na sua proposta de contribuição ao futuro seguinte do audiovisual brasileiro.