O Brasil possível pela consciência negra

As eleições foram concluídas e podemos celebrar a conquista de um ambiente mais seguro para a manutenção e o aprofundamento da democracia no Brasil. Atores de movimentos negros participam da equipe de transição do governo, avançando para um novo cenário de esperança para a construção de uma democracia antirracista. Essa leitura, no entanto, precisa levar em conta uma dimensão fundamental: o problema da permanência da ocupação majoritária dos espaços de poder por homens brancos. Outro olhar mais adiante permite também visibilizar movimentos que, diante de todas as adversidades possíveis, foram capazes de virar o jogo político. Nas palavras da jornalista e conselheira do Ibirapitanga, Flávia Oliveira, trata-se de camadas da população brasileira que tiveram:
Uma lealdade inabalável, sobretudo dos identitários medidos nas pesquisas. As mulheres nunca arredaram o pé, os negros nunca arredaram o pé, os pobres nunca arredaram o pé, o Nordeste nunca arredou o pé. E eu posso dizer aqui, os religiosos de matriz africana, os indígenas, os LGBTQIA+ nunca arredaram o pé. Então foi uma vitória também maiúscula de uma união das maiorias minorizadas. […] Eu falo como mulher negra, como mulher negra do Candomblé, como mulher negra jornalista[…]. Então, eu faço esse desabafo, porque o povo brasileiro foi muito forte. O povo brasileiro progressista, comprometido com a escolha democrática pela construção da igualdade, pela permanência da Constituição cidadã de 1988. [Trechos de fala de Flávia Oliveira na edição 159 do podcast Angu de Grilo]
Numa visão interseccional necessária, Flávia nos apresenta um caminho fundamental de análise do cenário ressaltando também parte importante dos movimentos que nos trouxeram até este novo momento de defesa da democracia brasileira – os movimentos negros. Maioria na população nacional, as pessoas negras são historicamente alvo de violação de direitos em função do racismo estrutural, mas não se calaram diante dele. Desde a escravidão, passando pela Constituição de 1988, citada por Flávia, até os últimos anos de sofrimento diante do avanço da ultradireita, a Consciência Negra é essa linha de pensamento e ação que conduz e impulsiona uma sociedade melhor para todas as pessoas. Mais do que um dia, a Consciência Negra é um recurso dinâmico, em que a história é revisitada, mas também recriada a partir do presente povoado pelos movimentos em torno da questão racial. Ontem, hoje e amanhã, o que constrói o Brasil possível é a Consciência Negra, e não foi diferente nessas eleições, que se tornaram um portal para a continuidade do enfrentamento ao racismo em outro ambiente.
Esse ambiente já se prepara por meio do tímido, mas importante, aumento de pessoas negras, mulheres e LGBTQIAP+ nos parlamentos, bem como através do gabinete de transição de governo. Nele, queremos ver também a construção de viabilidade para que cada vez mais essa maioria negra brasileira alcance as posições de poder, ainda majoritariamente ocupadas por homens brancos. A exemplo da própria equipe de transição de governo, ainda vemos as pessoas negras setorizadas em áreas que são mais diretamente conectadas às questões raciais, de gênero e de cultura, por exemplo. Anielle Franco, que também compõe a equipe de transição, afirmou: “Também é importante que nós, mulheres e pessoas negras, estejamos em todos os espaços de decisão de forma transversal. Somos qualificadas para estar em todos os ministérios e secretarias. Vamos construir o Brasil do futuro, da esperança para todas, todes e todos”.
No Brasil atual, a passagem de faixa presidencial será feita, pessoalmente ou não, de um homem branco de ultra direita para outro homem branco, de esquerda e de origem popular, um movimento viabilizado pela maioria negra brasileira. No Brasil do futuro próximo, que deve ser construído também pelas pessoas brancas hoje no poder, queremos ver a faixa chegar a uma pessoa negra, prioritariamente mulher, comprometida com a agenda antirracista que seu povo construiu durante séculos.