Debulhar o milho: antirracismo na perspectiva ativa dos Terreiros e do movimento social negro

O texto a seguir é um trecho da fala de Winnie Bueno durante o debate “Branquitude e fronteiras do antirracismo”, realizado pelo Ibirapitanga em 12 de agosto de 2021. No trecho, Winnie responde à pergunta do público sobre o que poderia ser uma atitude de responsabilização efetiva com o antirracismo por parte de pessoas brancas.
Eu acho que uma atitude de responsabilização é se responsabilizar. Se responsabilizar perpassa justamente por não jogar a responsabilidade para as pessoas negras dizerem o que as pessoas brancas precisam fazer. Isso, para mim, é o ponto de partida. Eu já cheguei em um ponto da minha vida acadêmica e ativista, em que eu realmente penso que uma atitude de responsabilização passa por assumir a responsabilidade sobre o que fazer diante do diagnóstico que acabamos de apresentar aqui. Perpassa por não jogar a responsabilidade do problema para as pessoas negras, porque, como o Ronilso disse muito bem, esse não é um problema das pessoas negras, é um problema de sociedade – especialmente no Brasil, cuja maioria da população é negra.
Num país cuja população negra é maioria, se os índices de precariedade de vida, de morte, de violência, de despossessão de todo tipo são voltados para essa população, estamos falando de um país inteiro que assassina os seus habitantes, desapossa e deixa os seus habitantes em níveis absurdos de precariedade.
Dessa forma, isso deixa de ser um problema da população negra e, em tese, deveria ser um problema da sociedade. Por que não se entende isso como um problema da sociedade, mas como um problema da população negra? Porque quem vai ser atingido por esse cenário é a população negra. A população branca não está sendo atingida diretamente.
Com a Constituição, eu penso que tivemos avanços, no sentido de formar uma semiconsciência sobre racismo, sobretudo de ativistas em movimentos sociais ditos progressistas.
Hoje se fala em racismo estrutural inclusive como uma ferramenta, novamente, voltada à desresponsabilização – o que é da dinâmica do racismo. A ideia de racismo estrutural é utilizada como justificativa: “Bom, mas aí é estrutura, não se trata do indivíduo. Então o que vamos fazer? É estrutural…”.
Eu li e reli o inquérito policial a respeito do assassinato do João Alberto – um caso que eu acompanhei muito no detalhe. O inquérito traz o racismo nesse lugar, de apontar que existe uma estrutura racista que gera, por consequência, a brutalidade do seu assassinato. Mas ao mesmo tempo, esse inquérito desloca o racismo como crime. Nos é dito: “Bom, não é um crime racista”. Ora, mas como não? Ora, como nós não temos ali diagnosticado um crime profundamente racista, inclusive com níveis de tortura envolvidos?! Ao mesmo tempo em que é usado esse diagnóstico, a partir do conceito de racismo estrutural presente na peça, é dito que o crime em si não tem uma conotação racista, o que tem relação com o que o Ronilso disse muito bem:
no Brasil, nós temos uma forma de amortização da insurgência, da revolta da população negra, que é muito eficaz. Eficaz, inclusive, nesse lugar de que sejamos nós, pessoas negras, que tenhamos de dizer para as pessoas brancas o que elas precisam fazer – uma resposta para mim quase impossível, porque eu não sou branca.
Como vocês podem ver, eu sou uma mulher negra, que vive em um estado [Rio Grande do Sul] onde a maioria absoluta das pessoas é branca. Nunca vivi, nunca fui lida como branca. Em que pese hoje morar em um bairro de classe média, ter feito universidade, estar no doutorado, eu continuo não sendo lida a partir desse outro lugar, dessa outra fronteira. Eu continuo sendo lida como uma pessoa negra. A sociedade continua me interpelando como uma pessoa negra. E eu sei o que eu, Winnie, preciso fazer, preciso compreender para enfrentar todos os processos de violência, de descredibilidade, de silenciamento que vão me ser atribuídos por ser uma mulher negra. Eu não sei como é viver sendo uma pessoa branca. Posso imaginar, mas aqui não estamos fazendo um exercício de imaginação, certo? Acho que esse é um ponto importante:
uma responsabilidade ativa significa, sobretudo, pensar ativamente no que é possível fazer e em como se responsabilizar de fato.
No Terreiro, há essa dinâmica: você é responsável por determinadas tarefas. Quando você é responsável, você vai aprendendo. Você começa aprendendo, por exemplo, como é que se debulha o milho. Aí a sua tarefa e responsabilidade é debulhar o milho. A partir do momento em que você entende como se debulha o milho, a sua responsabilidade é debulhar o milho. Daqui a pouco, a sua responsabilidade será bater o pirão do amalá de Xangô. A partir do momento em que você entende como bater o pirão do amalá de Xangô, é a sua responsabilidade bater o pirão do amalá de Xangô. Portanto, você não poderá responsabilizar outra pessoa, caso o pirão do amalá de Xangô não tenha saído certo.
Para mim, nesse caso, estamos tratando de algo que é muito parecido com a prática do Terreiro. E penso que pessoas que param em um debate que se chama “Branquitude e fronteiras do antirracismo” entendem um pouquinho “como é que se debulha o milho”. A partir do momento em que você entende, você não pode cobrar de outra pessoa que ela debulhe o milho. E se você sabe como debulhar o milho e não o faz, esse é um problema seu, que não o fez. Não pode ser responsabilidade de outra pessoa. Isso, para mim, é responsabilidade ativa, que é como eu aprendi no Terreiro e como aprendi no movimento social negro. Não tem receita de bolo.
Como eu disse, o racismo é um problema complexo. Pensando sobre as instituições, é evidente que há uma consciência dos ativistas sociais sobre o racismo antinegro.
A organização e a agência política de pessoas negras precisam ser centralizadas. Às vezes, nos parece que se fala de racismo como se não soubéssemos o que fazer, como se não tivéssemos uma agenda política constituída há muitos anos sobre como lidar com esse problema no contexto brasileiro – um problema que afeta a economia, a educação, a cultura, a segurança pública, a política, no que diz respeito à produção de normas; que afeta cada âmbito da sociedade. Temos agenda para isso, e uma agenda que existe há muito tempo.
Ela se constitui a partir das próprias pessoas negras, a partir do próprio movimento social negro. Numa agência política importante e que tem impactos, inclusive, na maneira com que se pensa ações, atitudes e o combate ao racismo desde as instituições – o que não se faz com estagiário. Não se faz contratando pessoas negras, por exemplo, em instituições para cargos que não sejam de decisão. Não se faz dizendo: “nós temos na nossa equipe uma maioria de pessoas negras” – mas uma maioria de pessoas negras que cumpre tarefa e que, na hora de decidir para onde vai o recurso, o que essas estão dizendo é secundário. É começar a trazer não só as contribuições teóricas do ativismo, do movimento social negro para dentro das instituições, mas também trazer para dentro das instituições a expertise de gestão dessas pessoas, porque estamos há muito tempo gerindo um movimento social que já poderia, há muito tempo, ter acabado. E ele não acabou. Ao contrário, ele se fortaleceu.
Se existe algo neste país, nos últimos 40 anos, que deu certo, é o movimento social negro, porque ele foi atacado de todas as formas possíveis e imagináveis, por todos os setores. E hoje, chegamos em 2021, em um cenário em que, não só esse movimento ainda existe, mas ele persiste e organiza – e isso é muito importante dizer.
Eu faço parte da Coalizão Negra por Direitos – parte significativa dos atos e manifestações contra o atual governo. Eles emergiram a partir do momento em que dissemos: “Não vai dar mais para ficarmos em casa, porque estamos morrendo. Nós vamos ter que fazer alguma coisa. Nós vamos ter que sair para a rua”. E saímos para a rua.
Quero finalizar com isso. O que acontece quando esses movimentos ganham um corpo maior? Eles são suprimidos. É retirada a importância, a centralidade do movimento social negro no enfrentamento à política que está colocada neste país hoje. O que as pessoas brancas podem efetivamente fazer? Como as pessoas brancas podem se responsabilizar ativamente? Se responsabilizando. Colocando a sua responsabilidade em uma perspectiva ativa, e não em uma perspectiva passiva, que perpasse justamente por darmos a receita do que os brancos têm de fazer. Não somos brancos. Nós não temos a receita do que vocês precisam fazer.
Winnie Bueno é Iyalorixá, bacharel em Direito pela UFPEL e doutoranda em Sociologia pela UFRGS. Colabora junto aos movimentos sociais voltados a questões raciais, de gênero, direitos humanos, intolerância religiosa e ao pensamento feminista negro. É autora do livro “Imagens de Controle”, atua como consultora para combate ao racismo, diversidade de gênero e justiça social e é colunista do site Itaú Cultural e da Revista Gama.