Alimentar o pensamento para enfrentar a fome

“A fome é a expressão biológica de males sociológicos”. A frase de Josué de Castro afirma a dimensão social responsável por causar a fome em um chamado à desnaturalização da desigualdade, de forma sucinta, mas marcante.
Questão historicamente associada às consequências de guerras ou de fenômenos da natureza, a genealogia do pensamento de combate à fome teve um capítulo pioneiro na produção do médico, nutrólogo, professor, geógrafo, cientista social, político, escritor e ativista. O fenômeno da fome veio ao conhecimento de Josué de Castro nos mangues do Rio Capibaribe e em bairros de baixa renda no Recife. A partir do encontro com as pessoas que lá habitavam, Josué de Castro relaciona suas vidas às dos caranguejos do mangue, por sua vivência na lama, sua alimentação com caldo de caranguejo, entre outros aspectos resultantes da miséria e da luta pela sobrevivência diante da fome. A experiência nesse e em outros contextos do mundo o levou a criar “Geografia da Fome” (1964). É neste livro que o autor define a fome à luz de três pares – individual ou coletiva; endêmica ou epidêmica; parcial (oculta) ou total. Nesta produção, Josué de Castro se volta a compreender “não só a fome total, a verdadeira inanição (…), como o fenômeno (…) da fome parcial, a chamada fome oculta, na qual pela falta permanente de determinados elementos nutritivos, (…) grupos inteiros de populações se deixam morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias.”
Por ser pioneiro no pensamento social brasileiro ao tratar da questão alimentar de forma integrada e multidimensional, o legado do autor inspira a Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares. Lançada em 2021, a iniciativa conduzida pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e apoiada pelo Instituto Ibirapitanga é voltada a fomentar reflexão e produção de conhecimento para incidir sobre os sistemas alimentares. A Cátedra se constituiu como uma inovadora e contundente iniciativa, um espaço interdisciplinar com participação de atores diversos, que integra as dimensões econômica, social, cultural, jurídica, ambiental, política e de saúde, bem como o arcabouço legal, institucional e de governança dos sistemas alimentares.
Extrapolando o campo acadêmico, o pensamento de Josué de Castro inspirou o movimento musical Mangue beat. Nascido também no Recife e tendo Chico Science como um de seus principais representantes, suas letras de músicas foram fortemente calcadas no pensamento de Josué de Castro. O manifesto “Caranguejos com cérebro” (1992), que “funda” o Mangue beat, foi escrito por Fred Zero Quatro, da banda Mundo Livre S/A, e alude a Josué de Castro, em movimento elástico de imersão, transitando entre a miséria e caos presentes na Manguetown e a diversidade e riqueza dos mangues em seu ecossistema. Mangueboys e manguegirls surgem como personagens principais nesse novo universo, agentes do “terreno da alteração e expansão da consciência”.
Com o Manguebeat, é possível perceber Josué de Castro e o imaginário expandido da cidade, a partir do movimento musical, como propulsores de um pensamento sobre o mangue na construção de um pensamento crítico e político oriundo de um olhar para a miséria e a fome.
Ainda no âmbito da música, Elza Soares também expõe sua relação e experiência com a fome logo no primeiro momento de sua carreira. Mulher negra da favela da Moça Bonita, atual Vila Vintém, no Rio de Janeiro, a cantora teve a infância e adolescência marcadas pela pobreza na família composta por dez irmãos, e pela violência doméstica e sexual, sendo obrigada a se casar aos 12 anos com seu abusador. Apesar de sua difícil história, Elza Soares é hoje uma das maiores cantoras do Brasil, reconhecida internacionalmente. Logo no início de sua carreira, ao ser questionada de que planeta vinha pelo apresentador de programa Ary Barroso, em 1953, ela responde: “Do mesmo planeta que o senhor, seu Ary. Do planeta Fome”. Implicado nessa resposta, Ary Barroso ocupa, naquele momento, uma representação daqueles que não vivenciam a fome, mas compõem esse mesmo planeta. Em 2019, Elza Soares revisitou esse momento, ao dar o nome “Planeta Fome” a um álbum com uma lúcida posição política que evoca a resistência frente à crise das instituições governamentais e relações sociais brasileiras. Em entrevista ao G1, no ano seguinte, Elza afirmou: “Vim do planeta fome e continuo no planeta fome. É um país desigual, é uma coisa horrível, a gente vive nisso”.
O caminho da expressão artística sobre a fome é trilhado também pela literatura brasileira, que tem exemplos emblemáticos em seus clássicos. O romance “Vidas Secas” (1938), de Graciliano Ramos, é um deles. Com um texto marcado por sequências de frases curtas, mas intensas, o autor faz emergir toda uma estética própria para tratar da miséria e da fome. Ainda que seja lembrado por esse aspecto, o livro também traz uma forte presença narrativa sobre o período de chuvas, além de apontar relações de desigualdade e monopólio do uso da terra, que moldam um discurso da miséria e da fome como fenômenos político-sociais.
“A cor da fome é amarela”. A frase de Carolina de Jesus, uma das mais notáveis escritoras brasileiras, imprime para a sociedade uma experiência sensorial do fenômeno, para além do automático vazio no estômago. Narrado em primeira pessoa, “Quarto de Despejo” (1960) apresenta o cotidiano, pensamento político e a experiência de fome vivida por Carolina, mulher negra, e por seus filhos, quando era catadora de papel na favela do Canindé, em São Paulo. No livro repleto de frases que definem os contornos dessa vivência, a autora não se furta também de apontar os responsáveis pelo processo: “Quem inventou a fome são os que comem.”
Em poesia, Solano Trindade, denunciou: “Tem gente com fome”. Homem negro, Solano Trindade foi poeta, folclorista, pintor, ator, teatrólogo, cineasta e militante do movimento negro e do partido comunista. Sua trajetória passa pelas cidades do Recife, Rio de Janeiro, São Paulo e Embu das Artes. A frase “Tem gente com fome”, repetida como o ritmo do trem presente no cenário criado por Solano, inspira e dá nome a ações de denúncia e resposta à fome atualmente, na campanha conduzida pela Coalizão Negra por Direitos, junto a demais iniciativas da sociedade civil. Solano também denunciou o aspecto político autoritário que produz a fome e ao mesmo tempo silencia sua exposição, evidenciado no verso do poema em que coloca: “se tem gente com fome / dá de comer / Mas o freio de ar / todo autoritário / manda o trem calar”. Em um período permeado por visões e práticas políticas autoritárias, o reencontro com esse autor que não se omitiu sobre a fome se faz oportuno.
Mais recentemente um novo exemplo na literatura contribui para a exposição da fome, pela autora afroindígena e feminista Helena Silvestre, editora da Revista Amazonas e integrante do movimento Luta Popular, nascida e criada nas aldeias e quilombos da região metropolitana de São Paulo. Seu livro “Notas sobre a fome” (2019) também faz coro às referências ao pensamento de Josué de Castro. “Escrevi sobre a escassez produzida como maldição e sobre as guerras de quem, mesmo com fome, procura o sol e respira na lama, com os caranguejos teimosos do mangue”, descreve a autora no livro. Nesta autoficção, Helena Silvestre apresenta experiências da própria vida, o trauma da fome, traz seu pensamento sobre a estrutura política do país e os movimentos negros e de mulheres como agentes de transformação.
As artes visuais também estão se colocando a favor de uma produção imagética de denúncia à fome. Uma parceria entre a campanha “Tem gente com fome” e a página Design Ativista convocou artistas e designers a criarem imagens que promovam a causa de forma provocativa. O resultado foi uma autêntica profusão de imagens que adiciona novos olhares de crítica ao cenário de fome no Brasil.
No país que construiu uma experiência mundialmente reconhecida de enfrentamento à fome, há que se recorrer às bases de pensamento que trabalharam em sua desnaturalização. “O Brasil tem fome de ética e passa fome em consequência da falta de ética na política”, disse Betinho. Partindo-se de percepções fundamentais como esta, toda uma cadeia de movimentos e construção de políticas se desenvolveu, a exemplo da “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e Pela Vida”, criada pelo sociólogo.
Ao tirar a fome do silêncio e da naturalidade, a produção na academia, nas artes e nos movimentos sociais gerou um legado que reverbera em novas iniciativas para a transformação da questão alimentar no atual contexto. Em movimento circular de revisitas e surgimento de novas referências para expor a crise, pessoas de diferentes lugares de fala e de coletividade contribuem com alimento intelectual, na recusa atual e futura à política da fome.