Radar: três assuntos sobre sistemas alimentares que estamos acompanhando no Ibirapitanga

Os últimos dois meses foram marcados por uma agenda intensa na questão alimentar, especialmente em torno da Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU e do Dia Mundial da Alimentação. A necessidade de transformação dos sistemas alimentares globais ganha espaço de discussão e, consequentemente, avança em termos de produção de conhecimento, soluções e disputas narrativas.
A seguir, apresentamos três assuntos em discussão no campo dos sistemas alimentares que estão chamando nossa atenção.
1 | O mês após a primeira Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU
A primeira Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU foi realizada no dia 23 de setembro, com a intenção de lançar novas e ousadas ações para o progresso em todos os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que dependem, cada um em uma medida, de sistemas alimentares mais saudáveis, sustentáveis e equitativos, de acordo com a organização.
Desde seu processo preparatório, a Cúpula sofreu críticas de atores do campo, sobretudo, pela influência da indústria alimentar concomitante ao complexo e reduzido espaço de participação de movimentos sociais. Após sua realização, multiplicam-se conteúdos de críticas e balanços a respeito da experiência. Aqui trazemos alguns exemplos.
– Civil Eats
Em artigo intitulado “A primeira Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU deu às empresas voz demais?” (em tradução livre do Inglês), o veículo de notícias aborda as visões de diferentes participantes do evento. Em geral, os entrevistados criticam como a organização da Cúpula lançou mão de uma rede tão ampla e sem discernimento, bem como reuniu atores com visões opostas e com profunda diferença de poderes, resultando na abertura para que os “causadores do problema” sejam convidados a fazer parte da solução, sem mesmo proporcionar uma discussão sobre essas causas.
– Cátedra para Inclusão Produtiva Rural e Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis
Uma parceria entre a Cátedra para Inclusão Produtiva Rural, do Cebrap Sustentabilidade, e a Cátedra Josué de Castro, da Faculdade de Saúde Pública da USP, organizou o seminário “Food Systems Summit: balanço e perspectivas”, voltado a debater os resultados da Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU. O evento online contou com participações de Elisabetta Recine, coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional da UnB – Universidade de Brasília; de Ricardo Abramovay, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo e integrante do Conselho administrativo do Ibirapitanga; e Julio Berdegué, representante Regional da FAO para a América Latina e o Caribe.
Foram apontadas questões como o risco do enfraquecimento dos espaços multilaterais; a exclusão do CSA – Comitê Mundial sobre Segurança Alimentar; governança na tomada de decisões coletivas sobre sistemas alimentares após a cúpula; ausências marcantes, como da agenda sobre a pandemia e suas consequências e da discussão sobre ultraprocessados; e o acompanhamento e incidência sobre as rotas formuladas por países da América Latina para transformação de sistemas agroalimentares durante a cúpula.
– Idec e Colansa
As organizações parceiras da Colansa – Comunidade de Prática da América Latina e Caribe sobre Nutrição e Saúde, lançaram um manifesto com 16 pontos fundamentais para a transição de modelos de produção e consumo de alimentos. O documento tem como base a defesa dos direitos humanos, para a construção de sistemas alimentares equitativos, saudáveis e sustentáveis.
Por meio da iniciativa Alimentando Políticas, o Idec, uma das organizações parceiras da Colansa, divulga a ação como reforço às demandas da sociedade civil frente aos resultados da Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU. Para a Comunidade de Prática, a cúpula falhou no objetivo de dar voz e espaço para as pessoas afetadas pelos sistemas alimentares e se tornou uma oportunidade para formalizar a interferência da indústria.
– Instituto Fome Zero
A edição de outubro da live mensal do Instituto Fome Zero abordou os resultados da Cúpula Mundial dos Sistemas Alimentares da ONU, com as participações de Juliana Tângari, diretora do Instituto Comida do Amanhã; João Bosco Monte, presidente do Instituto Brasil África; Jaime Amorim, membro da direção nacional do MST e da coordenação internacional da Via Campesina; e mediação por José Graziano da Silva ex-diretor da FAO e diretor do Instituto Fome Zero.
A live apresentou contextualizações e percepções do ponto de vista dos participantes, que atuaram nos espaços preparatórios e da própria cúpula e, que fizeram parte de mobilizações paralelas e críticas ao formato do evento. O espaço abordou os aspectos preocupantes da cúpula, como a falta ou redução de espaço e representatividade de movimentos sociais, os compromissos firmados de forma vaga, as dúvidas sobre a participação do Brasil nos desdobramentos do processo e a necessidade de respostas mais céleres ao cenário dos sistemas alimentares. Mas também foram discutidas as possibilidades proporcionadas pela cúpula, a exemplo do impulsionamento do diálogo sobre sistemas alimentares por mais de dois anos com pessoas de 183 países, além da disposição de incidência de alguns movimentos para ganho de espaço na agenda pós-cúpula, entendendo-a como um ambiente em disputa.
– Janine Giuberti Coutinho, Ana Paula Bortoletto Martins, Potira V. Preiss, Lorenza Longhi e Elisabetta Recine
O artigo “A Cúpula do Sistema Alimentar da ONU não lida com os desafios reais de dietas saudáveis e sustentáveis” (em tradução livre do Inglês) evidencia temas fundamentais sobre sistemas alimentares hoje que a cúpula não abordou, especialmente como iniciativas corporativas são prejudiciais à segurança alimentar, nutrição, saúde, meios de subsistência e para a crise climática.
O artigo foi produzido por um grupo de pesquisadoras e especialistas no campo de sistemas alimentares formado por Janine Giuberti Coutinho e Ana Paula Bortoletto Martins, do Idec; Potira V. Preiss, do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional da UNISC – Universidade DE Santa Cruz do Sul; Lorenza Longhi, consultora independente; e Elisabetta Recine, coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional da UnB – Universidade de Brasília.
Mais sobre o assunto: A influência das empresas foi uma das grandes críticas à Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU. Conheça aqui a HQ “A captura corporativa de sistemas alimentares” (em tradução livre do Inglês), por FIAN International e Zago Brothers.
2 | Contabilização de custos reais
Também arena central de atuação da Global Alliance for the Future of Food (Aliança Global pelo Futuro da Alimentação), rede da qual o Instituto Ibirapitanga é membro, o campo voltado à transformação dos sistemas alimentares acaba de receber mais contribuições de pesquisa para seu avanço. Por meio da iniciativa “Beacons of Hope” (Faróis da esperança), a Global Alliance lançou no dia 14 de outubro o relatório “Valor real: revelando os impactos positivos da transformação de sistemas alimentares” (em tradução livre do Inglês).
A publicação apresenta evidências da viabilidade da transformação dos sistemas alimentares e de seu impacto agora por meio da ferramenta TCA — True Cost Accounting (Contabilização de custos reais), que fornece uma compreensão holística das relações entre agricultura, alimentos, meio ambiente e bem-estar humano.
Ainda dentro desta abordagem, a Global Alliance divulgou uma carta de adesão demandando um “compromisso total e inequívoco com a contabilização de custos reais” na Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU e passou a colaborar com a Initiative on the True Value of Food (Iniciativa sobre o valor real da alimentação), coalizão formada a partir da cúpula que trabalhará na integração de estratégias como a Contabilização de custos reais nos planos do sistemas alimentares nacionais.
Mais sobre o assunto: Na esteira da Cúpula e outras agendas internacionais em torno do meio ambiente, artigo para a Inside Philanthropy aborda maneiras de evitar impactos devastadores socioambientais. Por Tonya Allen, presidente da Fundação McKnight; Andre Degenszajn, diretor-presidente do Instituto Ibirapitanga; Melanie Schultz van Haegen, CEO da Porticus — membros da Global Alliance for the Future of Food.
3 | Uma abordagem “plant based”
Recentemente o nome de Eric Adams ganhou destaque por sua possível vitória para candidatura à prefeitura de Nova Iorque pelo partido democrático estadunidense. Mas sua história e sua atual perspectiva de vida passaram a chamar atenção para os atentos ao campo dos sistemas alimentares.
Lançado em 2020, “Healthy at last: a plant-based approach to preventing and reversing diabetes and other chronic illnesses” (“Enfim saudável: uma abordagem baseada em plantas para prevenir e reverter o diabetes e outras doenças crônicas”, em tradução livre), é o livro em que Eric Adams compartilha suas mudanças no estilo de vida para recuperar sua saúde, após ser diagnosticado com diabetes tipo dois.
O livro inclui dicas de nutrição, receitas e detalhes sobre a vida de Adams. Mas vai além e cita pesquisas que comparam a dieta americana com as de outras regiões do mundo, aborda a realidade da vida em pântanos alimentares — locais onde a oferta de produtos ultraprocessados é alta —, traz um olhar para a alimentação na África Ocidental, onde vegetais verdes, legumes e tubérculos foram ingredientes principais do que é conhecido atualmente como alimento da alma, bem como a mudança dessa cultura para hábitos nocivos à saúde após a escravidão.
Em entrevista ao podcast The Ezra Klein Show, Eric Adams também explica a ideia de comida à base de plantas como metáfora sobre a abordagem de governo que ele implementaria na cidade de Nova Iorque — um trabalho com as causas-raiz dos problemas e não os sintomas —, usando como exemplo as questões que levam ao encarceramento em massa.