Tempos de pedra dura – notas sobre atuação nas frestas do advocacy contra agrotóxicos no Brasil

Em 2018, já no período de campanha para as eleições presidenciais, o ambiente era de profunda polarização e debates políticos concentrados em alguns temas, incluindo a discussão sobre o uso descontrolado de agrotóxicos no Brasil. Naquele momento, já era possível vislumbrar a estrutura que se consolidou após a eleição de Jair Bolsonaro: um governo comprometido com as demandas da bancada ruralista, fechando as portas à incidência política nas pautas de proteção ambiental e alimentação saudável. E foi assim que 2019 se tornou o ano mais tóxico na história do Brasil.
Mas foi também em 2018, que organizações e movimentos da sociedade civil buscaram se articular para possibilitar o enfrentamento ao cenário que se desenhava. Com isso, o ano de 2019 inaugurou um novo momento de incidência política voltada à questão alimentar, que ocupou as frestas e abriu caminhos na dura realidade de interlocução.
A internacionalização da pauta foi uma forte demanda e, com esse foco, a Human Rights Watch foi um dos atores que estiveram na linha de frente do primeiro ciclo de incidência no então novo governo. A Human Rights Watch é uma organização global de direitos humanos presente em 48 países. Em 2018, criou uma divisão voltada ao meio ambiente no Brasil, que inclui a problemática dos agrotóxicos.
Atenta às demandas que se aprofundariam em 2019, a organização desenvolveu e conduziu o “Marco regulatório para uso de agrotóxicos”, projeto de advocacy apoiado pelo Instituto Ibirapitanga, que partiu dos dados e conclusões da pesquisa “Você não quer mais respirar veneno – As falhas do Brasil na proteção de comunidades rurais expostas à dispersão de agrotóxicos”, lançada em 2018. Por meio do relatório da pesquisa, a Human Rights Watch demonstrou que as pessoas mais expostas aos poluentes tóxicos são aquelas com menos acesso à informação e com menos participação nos processos de decisão sobre questões ambientais.
Tendo em vista a redução do espaço de interação no núcleo do governo federal, a organização passou a concentrar-se em ações de mídia nacionais e internacionais, bem como em advocacy junto a outros órgãos, como o Congresso Nacional e o Ministério Público Federal, envolvendo também esferas internacionais de pressão. A organização conduziu ainda uma terceira frente de esforços, para obtenção de informações relevantes dos órgãos públicos acionando a Lei de acesso à informação.
Na frente voltada à mídia, a Human Rights Watch ressaltou as potenciais consequências da aprovação acelerada de agrotóxicos para as populações rurais, indígenas, quilombolas, crianças, jovens e adultos nas escolas rurais. Nesse caso, atuou também fortemente na criação de conexões entre interlocutores das comunidades onde a pesquisa foi realizada e a mídia, especialmente a estrangeira, para impulsionar a pressão internacional.
A organização atuou também com orientação de uma consultoria estratégica que desenvolveu um plano de incidência e advocacy, acompanhando a pauta no Congresso, além de elaborar os pedidos de acesso à informação.
Por meio dessa incidência, a Human Rights Watch passou a ser um ator reconhecido no tema dos agrotóxicos. Promotores e procuradores, além de organizações não governamentais, entraram em contato para reportar casos de intoxicação e outras violações relacionadas às relatadas pela pesquisa de 2018. Nesse sentido, houve também interesse crescente e cobertura ampla por parte da imprensa nacional e internacional.
Num momento de grande incerteza e ameaça de intensos retrocessos, a Human Rights Watch manteve uma troca constante de informação com parlamentares e suas equipes técnicas que contribuiu para uma maior adesão às preocupações da sociedade civil em relação ao Projeto de Lei 6299/02 – o PL do Veneno – e possibilitou uma temporária paralisação da tramitação do projeto.
Para a organização, foram importantes ao longo de todo o processo de advocacy a comprovação de conteúdo técnico, com rigor e aprofundado, característico de suas pesquisas; uma abordagem que não se centralizou no reforço a convicções; sua alta capacidade de pressão; e a disposição colaborativa com outras organizações. Ciente de que a articulação em rede favorece as ações de advocacy, a Human Rights Watch estreitou relações e ampliou sua colaboração com outras organizações que estavam atuando na linha de frente da incidência política contra a liberação de agrotóxicos, a exemplo do Greenpeace Brasil.
Instituição histórica na luta global pelo meio ambiente, o Greenpeace passou a priorizar, em 2019, o trabalho com alimentação saudável, que se insere em sua estratégia voltada ao bom uso da terra. Engrossando a fileira das organizações que aceitaram o desafio de incidir sobre a questão dos agrotóxicos no primeiro momento do governo Bolsonaro, o Greenpeace desenvolveu o projeto “Agricultura e alimentação”, apoiado pelo Instituto Ibirapitanga. O projeto centrou-se inicialmente na mobilização da sociedade e dos agentes políticos pela tramitação de leis em torno da regulação dos agrotóxicos.
Na primeira etapa da iniciativa a organização deu continuidade à parceria realizada desde 2016 com o coletivo Chega de Agrotóxicos, composto por diversos atores da sociedade civil e de governo para atuar na prevenção a retrocessos na legislação de agrotóxicos, a partir das perspectivas de direitos humanos e do consumidor.
Numa abordagem sistêmica, o Greenpeace fomentou a atuação em rede para, de um lado, denunciar o modelo de produção com agrotóxicos, que degrada o solo, contamina a água e destrói a biodiversidade; e, de outro, promover os sistemas agroecológicos como agenda positiva e necessária à agricultura brasileira.
Em 2020, o Greenpeace lançou a “Contagem regressiva para a destruição”, uma série de vídeos sobre as conexões entre desmatamento, violação dos direitos indígenas, mudanças climáticas, sistemas alimentares, agrotóxicos e o modelo de produção agrícola, com apresentação pela atriz Alice Braga. A série promoveu também um chamado à sociedade civil a pressionar governos e companhias responsáveis por esses processos destrutivos.
No dia do meio ambiente, a organização ajudou a pautar a questão dos agrotóxicos, por meio do lançamento de um estudo do Greenpeace Alemanha, com apoio do Greenpeace Brasil, que trata da venda por parte de empresas europeias ao Brasil de pesticidas extremamente tóxicos e já proibidos na Europa.
O Greenpeace apoiou também a Campanha Contra os Agrotóxicos e Pela Vida na produção de vídeos explicando os malefícios do paraquate e o papel da Anvisa – Anvisa Agência Nacional de Vigilância Sanitária, como ação de pressão pública nas redes sociais, para a permanência da proibição do agrotóxico. A ação foi parcialmente bem sucedida – a Anvisa manteve a proibição, mas editou a Resolução da Diretoria Colegiada 177, permitindo o uso do Paraquate em estoques.
Sempre buscando estabelecer equilíbrio entre a denúncia do modelo atual e a proposição, na etapa final do projeto, o Greenpeace promoveu a defesa da agroecologia e, por meio dela, o acesso à comida de verdade. Pela ocasião do Dia Mundial da Alimentação, o Greenpeace se uniu a mais de 100 coletivos e organizações da sociedade civil, pesquisadores, chefs e artistas em uma grande aliança para o enfrentamento à insegurança alimentar, com a campanha “Gente é pra brilhar não pra morrer de fome”, que apresentou a agroecologia como solução. Em torno da campanha, foram realizados um aulão em parceria com a Mídia Ninja; uma série de diálogos que reuniram nomes como Leonardo Boff, Ailton Krenak e Bela Gil; e o “Marmitaço”, um esforço de distribuição de milhares de refeições saudáveis às populações mais vulneráveis de grandes cidades.
Em parceria com o Quebrando o Tabu, o Greenpeace pautou o tema agroecologia no quadro do “SAC” do veículo de comunicação. A chef de cozinha Irina Cordeiro foi a apresentadora do SAC da Comida sem agrotóxicos. A organização desenvolveu também o e-book chamado “Guia de Produtores Agroecológicos”, disponível no site “Comida sem veneno” para ampliar a visibilidade de quem está produzindo e distribuindo comida de verdade em diversas regiões no país.
O contexto de intensa liberação do uso de agrotóxicos trouxe uma janela de oportunidade para tratar do tema na mídia e o Greenpeace teve um papel fundamental, sendo reconhecido como porta-voz central para a questão dentro e fora do Brasil. Ao todo, o Greenpeace teve 862 menções na mídia – incluindo matérias em veículos de grande circulação internacional e nacional.
Diante da máquina de aprovar venenos implementada pelo atual governo federal, essas duas iniciativas aliaram uma visão de contexto à atuação por meio de ajustes de rota num ambiente hostil. Em movimento elástico colocaram-se junto às populações atingidas localmente para visibilizar suas demandas nos âmbitos nacional e internacional. Com a parceria de outras organizações do campo e atraindo atenção internacional, mais ainda sem conhecer os caminhos possíveis, Human Rights Watch e Greenpeace, inventaram-nos, em experiências que deixam importantes aprendizados para as estratégias de advocacy em sistemas alimentares.