Sim, mas por quê? — Ações afirmativas como legado da luta por reparação do movimento negro

Sim, mas por quê? — Ações afirmativas como legado da luta por reparação do movimento negro
As ações afirmativas voltadas para a redução de desigualdades raciais e sociais hoje são uma realidade concreta nas políticas públicas e do setor privado no Brasil. Apesar de sua relevância, seja no campo da edução e em outras esferas sociais, com o passar dos anos, seu papel histórico como parte das lutas dos movimentos negros por políticas de reparação está menos aparente no debate público. Cada vez mais, há uma percepção das ações afirmativas como ações de inclusão, em detrimento do caráter reparatório e transformador dessas políticas.
Desde a disputa nas relações raciais e sociais, passando por sua implementação, até um novo ciclo de criação e atualização dessas políticas, conheça o legado das ações afirmativas como parte da luta por reparação no Brasil, pelas palavras de intelectuais e ativistas antirracistas.
Na ação compensatória de Abdias Nascimento, as ações afirmativas voltadas à população negra ganharam horizontes em forma de projetos de leis
A implementação das ações afirmativas para a redução de desigualdades raciais e sociais no Brasil têm nos movimentos negros contemporâneos um intenso ambiente de formulação. Entre os anos 80 e 90, chegamos a um ponto importante dessa luta, com a atuação como deputado federal e senador pelo Rio de Janeiro do ator, poeta, escritor, dramaturgo, artista plástico, professor universitário, político e ativista Abdias Nascimento.
Entre 1983 e 1984, Abdias apresentou, como deputado federal, dois projetos de lei nesse sentido. O Projeto de lei n.º 1.332, de 1983, de acordo com seu texto:
“Dispõe sobre ação compensatória visando à implementação do principio da isonomia social do negro, em relação aos demais segmentos étnicos da população brasileira, conforme direito assegurado pelo art. 153, § 1º da Constituição da República.”
Com uma perspectiva sistêmica e bastante detalhada, o PL abarcou ações afirmativas para garantir acesso e permanência para a população negra ao mundo do trabalho, aos setores público e privado; ao ensino de todos os níveis, bem como uma revisão antirracista de diferentes disciplinas na educação e de treinamento para intituições como as polícias civis, federal e estaduais. Àquela época, o PL também já demarcava a população negra a partir da combinação das categorias preto e pardo do IBGE — Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Já o Projeto de lei nº 3.196 de 1984 era voltado à reserva de quarenta por cento das vagas dos concursos vestibulares do Instituto Rio Branco para candidatas/os negras/os, um detalhamento do item já previsto no PL que dispunha sobre ação compensatória.
No Senado, em 1997, Abdias reapresentou o projeto de lei sobre ação compensatória (desta vez como PL 75). Na justificação do projeto, o senador ressaltou o caráter de reparação à escravidão e suas consequências da ação compensatória:
“É tempo de a Nação Brasileira saldar essa dívida fundamental para com os edificadores deste País. O princípio da isonomia na compensação do trabalho torna moral e juridicamente imperativa uma ação compensatória, da sociedade e do Estado, destinada a indenizar, embora tardiamente, o trabalho não-remunerado do negro escravizado e o trabalho sub-remunerado do negro supostamente libertado a 13 de maio de 1888.”
Na defesa das ações afirmativas voltadas para a população negra, a sociedade civil visibilizou seus benefícios e revelou políticas que beneficiaram a população branca no passado
Percorrendo um longo caminho de lutas e sendo precedida de algumas outras ações afirmativas como políticas públicas e do setor privado, a incidência política que resultou na Lei de Cotas marcou um momento de profunda disputa entre movimentos negros, aliados e intelectuais, sobretudo brancos, da academia e da cultura brasileiras.
Com a ideia de “democracia racial” como pano de fundo, seja defendendo que o Brasil não era um país racista ou que as cotas “agudizariam o racismo”, as vozes desses intelectuais ocuparam espaço na imprensa dos anos 2010 e fomentaram um debate público desfavorável à aprovação das cotas baseadas em raça e classe para acesso às universidades. Diante de questionamentos como “A adoção de cotas/ações afirmativas no Brasil caracterizaria a garantia de um direito ou o estabelecimento de um privilégio? Seriam as cotas/ações afirmativas um perigo para a sociedade e para as políticas públicas? As cotas para negros nos vestibulares das universidades públicas vão racializar a sociedade brasileira?”, Matilde Ribeiro, Ministra-chefe da Seppir — Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Brasil de 2003 a 2008, comentou:
“Ora vejamos, diante desses e de outros questionamentos é importante reafirmar que a racialização e a divisão racial são uma realidade em nossa sociedade e que as cotas raciais devem ser compreendidas como um direito, de acordo com os preceitos constitucionais. As cotas são desenvolvidas no sentido de corrigir uma real discriminação, em busca de uma igualdade de fato. Espera-se com isso que as ações afirmativas contribuam com a democratização das universidades.”
Houve uma intensa mobilização de movimentos negros para a quebra da ideia paradigmática de que o Brasil vivia uma democracia racial e até mesmo para a defesa da constitucionalidade das cotas, com os marcantes momentos da participação de lideranças e organizações da sociedade civil em audiência pública (2010) e como amicus curiae (2012) de forma contrária à ADPF 186. Na audiência pública, Sueli Carneiro, filósofa, escritora e ativista, afirmou (2019, p. 295)((CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Pólen Livros, 2019.)):
“É o que esperamos desta Suprema Corte, que ela seja parceira e protagonista de um processo de aprofundamento da democracia, da igualdade e da justiça social. E, num esforço cívico de tamanha envergadura, as cotas para negros, mais do que uma conquista dos movimentos negros, são parte essencial da expressão da vontade política da sociedade brasileira para corrigir injustiças históricas e contemporâneas que permitem que talentos, capacidades, sonhos e aspirações sejam frustrados por processos de exclusão que comprometem o nosso processo civilizatório.”
Ainda como parte desse debate, há também a importância de se reconhecer que a população branca no Brasil beneficiou-se de políticas que facilitaram sua permanência em posições de privilégio.
Entre uma das mais conhecidas, temos a extinta “Lei do Boi”, de 1968, a primeira lei no país a garantir cotas nas universidades públicas. Em seu texto, a lei definia que: “Os estabelecimentos de ensino médio agrícola e as escolas superiores de Agricultura e Veterinária, mantidos pela União, reservarão, anualmente, de preferência, de 50% (cinqüenta por cento) de suas vagas a candidatos agricultores ou filhos dêstes, proprietários ou não de terras, que residam com suas famílias na zona rural e 30% (trinta por cento) a agricultores ou filhos dêstes, proprietários ou não de terras, que residam em cidades ou vilas que não possuam estabelecimentos de ensino médio.”
Na prática, a lei serviu para favorecer filhos de grandes fazendeiros, em sua maioria brancos, que de fato conseguiam acessar e permanecer na universidade com essa política, o que criou novos privilégios para esse segmento e contribuiu para aprofundar a disparidade social entre brancos herdeiros de colonizadores e negros descendentes de pessoas escravizadas.
As ações afirmativas pré e pós-Lei de Cotas apontam para um amplo arcabouço a ser fortalecido e aprofundado
Apesar de a Lei de Cotas ser uma das políticas públicas de ações afirmativas voltadas para a redução das desigualdades raciais e sociais mais reconhecidas no país, sua aprovação em 2012 foi precedida de todo um arcabouço político-institucional, como pontua Andréa Lopes da Costa, socióloga e professora, no artigo “O espírito das ações afirmativas na era pré-cotas”:
“Os primeiros esforços mais contundentes do governo federal para a formulação de ações afirmativas foram completados com o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra (1995) criado com a finalidade articular, junto aos ministérios, ‘políticas para a valorização da População Negra’; e o Grupo de Trabalho para a Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação (1996), cuja a missão seria elaborar um plano de ações para a eliminação da discriminação no mercado de trabalho.
[…] Em retrospectiva, é correto afirmar que as políticas de cotas, desenvolvidas nos anos seguintes, são consequência da expertise política do ativismo negro e suas ações do período pré-cotas. Realizar este exercício é fundamental tanto para que se recupere as longas quatro décadas de ações afirmativas no Brasil, como também para constatar que uma agenda de lutas por ações afirmativas deve ir além da aplicação de cotas no ensino superior.”
Como divisor de águas nas experiências de políticas de ação afirmativa, a Lei de Cotas marcou os anos 2010 com sua aprovação, mas já conta com 10 anos de experiência avaliada por diferentes óticas, ainda que seja necessário um mecanismo oficial para avaliação. No livro “10 anos da lei de cotas: conquistas e perspectivas” (2022, p. 519), Denise Carreira, Doutora e pós-doutoranda em Educação, e Rosana Heringer, Doutora em Sociologia e professora, concluem que:
“A Lei de Cotas e demais ações afirmativas implementadas na educação superior efetivamente têm contribuído para democratizar o acesso às universidades federais e tensionado por uma transformação profunda nos referenciais, sentidos e prioridades das universidades (agenda de pesquisa, currículos, mudanças de procedimentos e culturas institucionais), com um poder indutor de mudanças em outras universidades públicas e instituições privadas do país.”
De acordo com dados do Consórcio de Acompanhamento das Políticas Afirmativas, iniciativa apoiada pelo Instituto Ibirapitanga, atualmente, pretos e pardos (população negra) junto a indígenas somam 52% dos alunos do ensino superior público (antes da lei representavam 31%). Alunos das classes C, D e E eram 19% e agora são 52%. Em termos de impacto, para além da diversidade, abriu-se uma possibilidade de futuro e transformação de vida para essas parcelas majoritárias da população.
Junto à Lei de Cotas, a Lei 12.990/2014, de reserva de vagas em concursos públicos para pessoas negras, também esteve no centro dos debates sobre ações afirmativas voltadas a reduzir as desigualdades raciais nos anos 2010. A vigência da lei termina em 9 de junho de 2024, mas há ambiente social e político para sua prorrogação, principalmente por contarmos apenas com 35% de pessoas autodeclaradas negras como servidoras públicas do Governo Federal. No dia 13 de dezembro de 2023, a CDH — Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, aprovou o Projeto de Lei 1.958/2021, que prorroga por 25 anos e amplia para 30% a reserva de vagas em concursos públicos para negros. O projeto de lei segue tramitando agora aguardando designação do relator na CCJ — Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.
Para além das políticas públicas, as ações afirmativas se espraiaram também para o setor privado. Empresas e organizações vêm atuando numa revisão de suas culturas organizacionais e se somam na promoção de ações afirmativas em seus quadros funcionais, seja por uma pressão econômica, ou por pressões da sociedade civil, que há anos se articula em prol da justiça racial no mercado de trabalho. Daniel Teixeira, diretor executivo do CEERT – Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, na entrevista “Ações afirmativas e trabalho como direito”, para o Instituto Ibirapitanga, pontua que:
“Somente agora estamos vendo um outro movimento, depois das ações afirmativas das universidades ganharem mais corpo, de abertura para uma discussão mais amadurecida sobre ações afirmativas no mercado de trabalho. Começamos a ver mudanças ainda incipientes, mas que podem e vêm se tornando mais consistentes ao longo desses anos.”
Traduzidas de forma mais comum na priorização ou exclusividade de acesso de pessoas negras e indígenas em determinados processos seletivos para o mercado de trabalho, as ações afirmativas nesse campo podem ir muito além, mas ainda encontram obstáculos mesmo nos passos iniciais de acesso, nas redes e mecanismos próprios do mundo corporativo, a exemplo da remoção de uma vaga afirmativa pelo LinkedIn em 2022. O caso contou com reações de diversas organizações que implicaram numa mudança de política na rede, contribuindo para um aprofundamento do debate. Para Daniel, as ações afirmativas no mercado de trabalho precisam ter como horizonte o direito ao trabalho digno:
“[…] o direito ao trabalho digno é fundamental e só vemos futuro para o Brasil e instituições brasileiras se a juventude negra que vem demandando, batendo e chutando a porta porque precisa, estiver fazendo parte desse projeto de outro país e de outras instituições.”
Pensar as ações afirmativas como um meio para garantia do direito ao trabalho digno, recoloca o papel do Estado e de suas instituições em conexão com o aprofundamento de políticas e de um ambiente regulatório em conexão com o setor privado — tipo de articulação presente no trabalho de organizações históricas como o CEERT.
Um ambiente propício a um ciclo de expansão das ações afirmativas se desenvolve
A passagem de 2022 para 2023 foi marcada politicamente pelo fortalecimento de instituições públicas voltadas à equidade racial, em especial com a consolidação do MIR — Ministério da Igualdade Racial e sua agenda transversal a outras pastas do governo, como os ministérios da Justiça, dos Direitos Humanos, da Saúde, da Educação, da Cultura e das Mulheres.
O ministério conta com a Secretaria de Políticas de Ações Afirmativas e Combate e Superação do Racismo e o primeiro ano de atuação do MIR neste eixo teve como alguns dos resultados: (i) Decreto 11.785/2023 que instituiu o PFAA — Programa Federal de Ações Afirmativas na administração pública federal direta, com foco nas populações negra, quilombola e indígena, nas pessoas com deficiência e nas mulheres; (ii) Decreto 11.443/2023, que prevê o preenchimento de, no mínimo, 30% dos cargos e funções comissionadas na administração pública federal por pessoas negras; (iii) Programa Esperança Garcia, para apoiar o ingresso de pessoas negras nas carreiras da Advocacia Pública Nacional; (iv) Acordo de Cooperação entre MIR, Ministério das Relações Exteriores, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e Fundação Cultural Palmares para continuidade do Programa de Ações Afirmativas; (v) parceria com Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos e a Fundação Escola Nacional de Administração Pública para realização da 4ª edição do Programa LideraGov — extraordinária para servidores negros; (vi) Atlânticas — Programa Beatriz Nascimento de Mulheres na Ciência, que oferece bolsas de doutorado sanduíche e pós-doutorado no exterior para mulheres negras, indígenas, quilombolas e ciganas; e (vii) Parceria com CNPq para fortalecimento do Programa Institucional de Iniciação Científica para Ações Afirmativas e oferecimento de bolsas destinadas aos alunos negros.
Em outras esferas públicas de poder a perspectiva também é positiva para o campo das ações afirmativas. Ao assumir a presidência do CNJ — Conselho Nacional de Justiça, o ministro Luís Roberto Barroso tem como responsabilidade a continuidade do avanço do debate e da implementação de políticas de ação afirmativa para o Judiciário, trabalho iniciado na gestão da ministra Rosa Weber. Nesse contexto, alguns compromissos, programas e políticas estão sendo implementados, a exemplo do Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial, voltado à promoção da equidade racial no poder Judiciário, à desarticulação do racismo institucional, à sistematização dos dados raciais do poder Judiciário e à articulação interinstitucional e social para a garantia de cultura antirracista na atuação do Poder Judiciário. O pacto teve adesão de todo o poder Judiciário.
Ainda no esforço para promoção de equidade racial, o CNJ aprovou uma resolução que estabelece um novo exame nacional para ingresso na magistratura em que pessoas negras e indígenas terão uma nota de corte de 50%, enquanto os demais concorrentes deverão acertar ao menos 70% das questões da prova.
Também como parte dos avanços mais recentes em torno das ações afirmativas, a Lei 14.723/23, atualizou a Lei de Cotas, que agora é permanente, com a previsão de que seja avaliada e atualizada a cada dez anos, uma mudança fundamental que expressa uma conquista dos movimentos negros para toda a sociedade. Além disso, a nova legislação prevê a mudança do mecanismo de ingresso dos cotistas no ensino superior federal, a redução da renda familiar para reservas de vagas e a inclusão de estudantes quilombolas como beneficiários. Em entrevista para a Folha de São Paulo, Luiz Augusto Campos, coordenador do Gemaa — Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa pontua que:
“As alterações na Lei de Cotas consolidam os avanços positivos que ela proporcionou ao país nos últimos dez anos. Também corrigem problemas pontuais que surgiram nesse período. Mas o mais importante é que a revisão torna a lei permanente, afastando uma insegurança [jurídica] que existia.”
Após a atualização da Lei de Cotas, há demanda também pelo aprimoramento da relação entre acesso e permanência. No artigo “Possibilidades de integração entre as políticas de ingresso (Lei de cotas) e de permanência (Lei da Pnaes)”, Sandro Augusto Silva Ferreira, sociólogo e pró-reitor de ações afirmativas da UFSB — Universidade Federal do Sul da Bahia, atenta para as próximas demandas da agenda legislativa em torno das políticas de ação afirmativa nas universidades:
“São diversas as aproximações entre a nova Lei de Cotas, n. 14.723/2023 e o PL nº. 1434/2011, produzindo a tão desejada integração entre as políticas de ingresso (cotas) e permanência (assistência estudantil), mas, diferente da primeira que já contou com a sanção presidencial, a segunda ainda tem um percurso a cumprir, e nele será necessário atenção para não ocorrer recuos que deixem escapar a oportunidade de que os recursos da assistência estudantil contribuam para o sucesso desta importante conquista que é a Lei de Cotas.”