Movimentos antirracistas que atravessam gerações Entrevista com Lúcia Xavier e Bianca Santana

Lúcia Xavier e Bianca Santana no I Encontro Internacional da Coalizão Negra Por Direitos, 2019.
Por Mohara Valle, gestora de conteúdo do Instituto Ibirapitanga
A questão racial e os movimentos antirracistas ganharam recentemente destaque e força no debate público brasileiro, como há muito tempo não era possível perceber. Ainda que esta presença da pauta racial tenha sido notória – transbordando, inclusive, as fronteiras nacionais para espalhar-se pelo mundo, com destaque especial aos Estados Unidos – o movimento antirracista no Brasil não é recente. Ao contrário, é parte fundamental da construção de nossa história. Reconhecendo esse legado, um senso de urgência se faz necessário. Mais do que declarar o apoio à luta antirracista, é necessário que toda a sociedade, incluindo os brancos, transformem essa afirmação em ações contundentes. Se vidas negras importam, nada menos que sua defesa hoje deve ser o sentido do antirracismo.
Instituto Ibirapitanga convidou Lúcia Xavier e Bianca Santana para uma conversa sobre os aspectos implicados nesse debate, localizando a perspectiva histórica de construção da luta antirracista a partir dos movimentos negros em diálogo com contextos político-sociais dos últimos anos.
Lúcia Xavier é assistente social, ativista de direitos humanos no Brasil e coordenadora geral de Criola, organização com mais de 25 anos de atuação. Bianca Santana é jornalista, escritora e doutora em ciência da informação pela Universidade de São Paulo. Atua na Uneafro Brasil, movimento que completou 10 anos em 2019, e atualmente se dedica à estruturação do Instituto de Referência Negra Peregum.
O encontro de suas experiências nessa entrevista faz emergir o legado de resistência negra, marcado pela participação das mulheres, bem como visibiliza a demanda por uma reorientação de práticas que tenham como horizonte o fim do racismo no país.
O racismo impacta direta, profunda e principalmente a população negra nas mais variadas dimensões. Além dessa face perversa, há também um ônus para a sociedade como um todo, que é privada de conhecimento histórico, tecnológico, estratégico, entre outros, com a manutenção da estrutura racista. Considerando o espaço e período de atuação das organizações que vocês representam – Criola e Instituto Peregum – bem como sua relação com outras, quais são os principais aprendizados que a sociedade civil brasileira deve ter com a experiência dos movimentos negros?
Lúcia Xavier: Eu começaria dizendo que a sociedade como um todo fica passiva quando vê a nossa morte. E eu, como lido muito com isso, digo: “Olha o que está acontecendo!” Essa conversa que a gente acabou de ter aqui [sobre um caso de dificuldade de atendimento para uma gravidez de risco]. Como alguém morre na hora do parto dessa forma? É possível, mas do jeito que acontece tem um sentido e um significado político de iniquidade, desprezo, violência muito grande. Então, por um lado, a sociedade ganha com o racismo. É uma forma de hierarquização. O racismo talvez seja a ideologia mais perfeita. Nada é tão bem criado por esse padrão de civilidade, por essa humanidade, de forma a deixar a gente completamente envolvida nesse processo: “Como é que eles não entendem, como é que eles não veem?”. Essa é um pouco a definição dessa nossa atuação política: “Olha, nós somos humanos também”. Por isso a gente investe tanto em movimentos, em ações políticas. As domésticas levaram 100 anos pra mudar nossa vida. É claro que em 30 anos os movimentos fizeram muito mais do que as domésticas, mas só foram capazes porque elas fizeram primeiro. Eu uso simbolicamente as domésticas porque foram elas que fizeram muitas das coisas, encontraram emprego, botaram os filhos para estudar, para que tivessem outro posicionamento. Hoje você tem uma geração de filhos de funcionários públicos, de professores. Eu acho que o nosso maior aprendizado foi termos vivido uma aniquilação, como nós vivemos no período da escravidão, e cento e poucos anos depois ainda estarmos de pé. Isso é de uma força política fora do comum. Eu não quero qualificar se foi negociação, se foi passividade. Eu não quero pensar assim. A gente reconstruiu tudo e assim que a gente foi reconstruindo, eles foram tomando. Essa apropriação, essa expropriação, é muito profunda. Mas essa recriação é enorme, é demais.
A gente chama isso de potência, mas eu acho que é muito mais que isso, é um enraizamento, te dá origem, te dá nome e sobrenome, te dá antepassado, cria uma África mítica para você, cria uma história e ainda faz isso tudo coletivamente.
Em que pese que nós somos o único grupo que consegue ter dimensões individuais e coletivas ao mesmo tempo. Então “eu sou da Oxum, você pode ser, a outra pode ser”, mas nós nunca seremos tratadas do mesmo jeito, a nossa roupa não será igual, o nosso modo de incorporar será diferente, a nossa iniciação será outra, isso é muito fantástico. Conseguir conviver com a diferença. São dois aprendizados importantíssimos. E esse último eu acho que é fundamental, porque ele fala diretamente das mulheres. Elas estão fortemente implicadas nessa transformação, nessa construção. Elas fazem isso desde período da escravidão.
Bianca Santana: Na minha geração é muito emblemático ter ouvido Geledés e Criola nessa apropriação de quem somos, a partir de um referencial de anterioridade, que não se baseia só na leitura colonial e racista sobre nós. É um presente muito grande, olhar pra possibilidade do devir a partir desse tempo mítico e de uma origem que nos foi ofertada de forma muito generosa. Pontuo isso dialogando com tudo que a Lúcia já trouxe para dizer que o modo como está colocado esse Estado moderno, inventado na Europa, com o Iluminismo, no mesmo período em que o racismo, foi tão importante para estruturar essa noção. Por um lado, ela não nos diz respeito e, por outro, ela está estruturada na nossa morte. Essa nossa leitura de que essa sociedade perde quando não nos inclui parte da noção de que o discurso deles de igualdade, de construção, nos inclui também, e aí a gente fala: “Poxa, mas vocês estão aí falando de igualdade, de direitos. Tem a gente também. E quando vocês não nos incluem nesses direitos, quando essa ideia de igualdade não serve para a gente, vocês perdem humanidade, vocês perdem como sociedade”. E é uma lógica que coexiste com os enfrentamentos, que coexistem com outras formas de atuação que também são nossas. Então o que eu vou te dizer é: essa sociedade quer nos matar ou nos deixar morrer – concordo integralmente com a Lúcia. Mas nós estamos nela, enquanto estamos nela vamos tentando existir e proteger as nossas e os nossos para que eles existam também. Talvez essa coexistência de estratégias diferentes seja o que de fato nos permita ser a maior parte da população brasileira. O que aconteceu com as nossas ancestrais pretas, que elas conseguiram de modos diversos criar condições para que nós estivéssemos aqui hoje, as três, tendo essa conversa? Esse é o nosso legado, essa é a nossa história, essa é a nossa força. Por isso que eu acho que a combinação de estratégias foi o que nos permitiu chegar até aqui e é o melhor que a gente tem e a gente deve continuar. Em alguns momentos vai ser de ruptura e denúncia, em outros vai ser de sentar, conversar e argumentar.
No último mês, a Marcha das Mulheres Negras completou cinco anos. Marcando o 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, a mobilização afirmou o protagonismo das mulheres negras na proposição de agendas concretas para o aprofundamento da democracia no Brasil. Quais os principais debates propostos pelas mulheres negras a partir de então e como eles estão colocados no atual contexto político de aprofundamento da crise democrática?
Lúcia Xavier: A Marcha nasce muitos anos antes. Ela sai em 2015. Ela nasce numa reunião da Articulação de Organizações de Mulheres Negras((A AMNB – Articulação de Organizações de Mulheres Negras é uma rede de organizações de mulheres negras, composta por 29 organizações de todas as regiões do Brasil.)) com uma proposta de Nilma Bentes((Uma das fundadoras do Cedenpa – Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará, em Belém, e uma das idealizadoras da Marcha das Mulheres Negras)) de fazer uma marcha, mas com alguns senões. O primeiro senão é que devia ser uma marcha só de mulheres. O segundo é que devia ser uma marcha organizada desde as localidades. Que deveria ser uma marcha de insurgência, não uma marcha organizativa. E aí, na medida em que a articulação começa a pensar na marcha, ela ganha um fôlego. Vira uma marcha do movimento negro, apesar de ser uma marcha de mulheres negras. Ela teve uma perspectiva importante de convocar as mulheres a pensar mudanças, mesmo vivendo em um governo de esquerda. Então a ideia era: “Tudo que foi feito, não foi suficiente. O que vamos fazer daqui pra frente?” Por isso ela também demora a se estruturar em termos da sua ação política, mas se revela como uma força de mobilização e engajamento enorme. Tão maior, que a gente diz que foram 50 mil, foram mais de 100 mil mulheres presentes em Brasília e também se reorganizando nos territórios. A carta da Marcha traz como princípio a mudança do paradigma e do modelo de civilidade. E oferece um novo modelo, pensando que nada se encaixa com o racismo e com a violência vividas. E mais que isso, ela olha desde o ponto de vista das mulheres. Porque ele vem da ideia dos povos andinos sobre bem viver, que também é conciliador. Que todo mundo cabe. Igual Palmares. Então o bem viver também vem disso, dá pra ter branco, negro, indígena. Que é a oposição a esse padrão de civilidade. Assim como a Marcha virou um símbolo de ação política, o mundo mudou. As forças conservadoras se reordenaram em termos ideológicos em vários lugares do mundo. A Marcha também traz um aprendizado para nós de que, se fomos capazes de chegar até ali, deveríamos seguir. E acho também que algumas das expressões que a gente usa com muita facilidade precisam sair do nosso vocabulário. Não tem democracia para nós, então não vamos dizer que esse país é democrático. País democrático tem que ter representação política. Tem um grupo que vive à mercê de uma sociedade. A gente precisa escancarar isso um pouco melhor. Porque isso também demandaria construir outras estratégias de representação política. A marcha é inspiradora para a gente renovar as nossas estratégias. Você lê as propostas que a Marcha encaminha naquela carta, elas estão vivas, elas dão vários planos de trabalho. A gente não precisava criar nenhum. Só aquilo.
Bianca Santana: Eu participei muito pouco aqui em São Paulo do núcleo propulsor da Marcha de 2015. Eu ainda estava muito conectada a grupos feministas majoritariamente brancos e nós ficávamos ali em poucas mulheres negras. Acompanhei muito perifericamente a construção, mas a Marcha em si foi um grande impacto. Na minha trajetória, e sei que na de muitas mulheres da minha geração e mais novas, a marcha de 2015 é um marco por falar: “Olha, é aqui o lugar de vocês, aqui é que a gente está pautando o caminho”. Consigo ver ali uma coletiva de um movimento de mulheres negras ganhar muito espaço e muitas mulheres se somarem a partir da Marcha de 2015. Eu lembro do documento ser de um grande impacto, de ali de fato estar uma agenda de proposição de caminho e ser “contra o racismo, contra o machismo e pelo bem viver”. Não tinha essa possibilidade de convívio pleno entre todo o ser e toda a humanidade e o todo numa proposta política com aquela formulação. Eu lembro a primeira vez que eu fui entender de onde vinha a noção do bem viver. E aí fez muito sentido entender que veio como uma proposta da Nilma Bentes, que é uma mulher do Norte do país em que essa construção amefricana, ameríndia está muito presente. Tem uma frase, naquele documento ali da Marcha que diz que: “Nós mulheres negras, na nossa generosidade, estamos dispostas a ofertar ao Estado brasileiro e à sociedade aquilo que a gente tem e sabe”. Quando a gente lê essa frase nos núcleos de educação da Uneafro, a mulherada cresce. Eu sei que, para mulheres que estão organizadas no movimento desde o começo dos anos 90, tem um marco ali das conferências feministas de trazer o feminismo negro, ou as pautas dos movimentos de mulheres negras como prioritários e isso ter sido importante na construção de políticas para as mulheres e no próprio discurso feminista brasileiro.
Não sei se é geracional, mas a minha sensação é de que 2015 foi um outro marco. E foi um marco de fato de mais popularização do movimento de mulheres negras, das organizações de mulheres negras e de uma convocação mesmo.
Lúcia Xavier: Deixa eu pontuar uma coisa que Bianca traz que é muito legal. Acho que faltou um ponto nas distinções do que a marcha traz. Que é o reconhecimento das diferentes mulheres negras que somos e a inclusão das mulheres trans, e agora também das pessoas com útero. Eu acho que isso faz toda a diferença. Porque, na perspectiva feminista, novamente a ideia de uma mulher negra universal estava presente. É aquela que foi pra faculdade. As outras eram aquelas que precisavam de ajuda para se libertar, as cozinheiras. Por isso que eu falo muito de domésticas. A ancestralidade exige que você olhe para trás. Se você não reconhece, você não consegue caminhar. E eu acho que isso foi um passo acertadíssimo da Marcha. Foi necessário visibilizá-las: “Nós somos todas essas mulheres”.
Pensando agora na dimensão das articulações e redes, tanto Criola, quanto Uneafro, fazem parte da Coalizão Negra por Direitos, uma das mobilizações sociais mais consistentes e notórias na incidência política contra retrocessos na perspectiva racial atualmente no Brasil. É composta por organizações negras de diferentes gerações e trajetórias, como podemos ver nessa conversa. Para vocês, o que converge ao nascimento e atuação da Coalizão?
Bianca Santana: Para explicar uma diferença, a Uneafro é um movimento que atua em 32 territórios com muitas pessoas com visões de mundo, perspectivas diferentes entre si. Na Uneafro não há uma figura jurídica. Parte importante do que a Uneafro faz não precisa nem de financiamento, nem de relações com financiador, nada disso. Junto com a fundação da Uneafro, foi fundada outra entidade que até hoje funcionou só como CNPJ. Ano passado fizemos uma avaliação estratégica e vimos que valia à pena transformar essa entidade em uma organização da sociedade civil. Por isso a gente está trabalhando para estruturar o Instituto de Referência Negra Peregum como uma organização. Então a Uneafro hoje é a entidade a que Peregum está diretamente vinculada. Todo mundo de Peregum é da Uneafro também, mas nem todo mundo da Uneafro é de Peregum. A ideia é ter uma organização da sociedade civil que possa prestar serviços a movimentos que não queiram se institucionalizar como organização. Vou falar aqui como Uneafro. Na estrutura da Coalizão existe uma secretaria operativa, composta por 20 entidades de diferentes regiões do país. Tanto Uneafro, quanto Criola estão na operativa. Para a Uneafro, fazer incidência política, de forma coletiva, com organizações diversas do movimento negro, é muito importante. A Uneafro tem núcleos de educação popular em vários territórios, formação política, os encontros de mulheres negras, uma série de outras coisas, e tem também incidência política. Já compôs aqui em São Paulo uma série de movimentações coletivas para fazer protesto, demandar politicamente e tinha um desejo muito forte de estar mais perto de outras organizações de movimento negro nacionalmente. Se nessa conjuntura, nós, pessoas negras, estamos pouco representadas, nisso que não é uma democracia, como a Lúcia já falou tão bem pra gente; se nós não temos parlamentares suficientes eleitos pra nos representarem na política institucional, a gente precisa se organizar para fazer isso como sociedade civil, sabendo que o movimento negro e que o movimento de mulheres negras já faz isso há muito tempo, muito antes da Coalizão Negra existir. Mas neste momento histórico, nos parece estratégica essa aliança como Coalizão Negra por Direitos pra fazer incidência política nacional e internacionalmente.
Lúcia Xavier: Vou seguir na mesma linha da Bianca, porque Criola é das organizações que mais funda redes. Nós fundamos a Articulação de Organizações de Mulheres Negras, fundamos a Rede Ciberativista((Rede Nacional de Ciberativistas em Defesa das Mulheres Negras, que atua em defesa dos direitos das mulheres negras através do ciberativismo.)), somos partícipes em diferentes fóruns contra violência, fundamos a Rede de Controle Social e Saúde, apoiamos a RENAFRO((RENAFRO – Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, instância de articulação da sociedade civil que envolve adeptas/os da tradição religiosa afro-brasileira, gestores e profissionais de saúde, integrantes de organizações não-governamentais, pesquisadores e lideranças do movimento negro)), apoiamos a Rede Lailai((Rede Lai Lai Apejo – população negra e DST/Aids, rede de controle social em DST, HIV e Aids e população negra.)). Essa tarefa de trabalho coletivo é muito importante. Mas o momento em que nasce a coalizão é um momento em que era necessário ter um outro formato para ação política. Nós mesmas de Criola já tínhamos convocado reuniões para dialogar com diferentes setores, especialmente no Rio de Janeiro, e algumas representações nacionais para pensar alternativas e processos, conhecer o que estava sendo gestado. E quando a Coalizão nasce dizendo: “Olha, tem aqui três organizações para fazer isso, você quer vir?” Oferecendo aquela denúncia para CIDH((Comissão Interamericana de Direitos Humanos)), depois atuando na questão das cotas, essa incidência foi fundamental para que a gente pudesse pensar a Coalizão. Ela vai revigorar estratégias políticas que fazem muita diferença hoje, a própria incidência no parlamento, o único espaço aberto [de governo]. A incidência no Judiciário. A vantagem da Coalizão é que ela abarca várias gerações, ela abarca novas estratégias. Novas estratégias do ponto de vista tecnológico, do ponto de vista da comunicação. Então essas novas estratégias se alimentam da força, dos esforços das diversas organizações. Hoje, como contraponto do debate político antirracista, ela cumpre um papel fundamental. A Coalizão está fazendo discussão sobre representação política, representação sobre acesso à política de assistência básica, está olhando a saúde, faz debate político sobre os temas da população negra. Ela, como força política, é o que a gente tem de melhor. Mesmo aqueles que acham que a Coalizão não deve ser o ponto de convergência da ação política, convergem à ela quando é necessário. Vide a manifestação sobre a morte de João Pedro e as mortes ocorridas no Rio de Janeiro e no Brasil, vide o manifesto “Enquanto houver racismo não haverá democracia”. O próprio encontro sobre marco regulatório [da sociedade civil]da Coalizão tinha diversas frentes, com diversas perspectivas, pessoas de diversas trajetórias ali presentes. A Coalizão é composta por organizações de lésbicas e bissexuais, ainda não tem tantas organizações trans. A Coalizão tem muita juventude, tem muitas organizações e coletivos periféricos. Tem muitas organizações antigas, com mais de 50 anos. Tem aí uma força política dos esforços que a população negra tem feito para se fazer representar, para debater as suas questões, para dar sentido e significado à ação política antirracista. E, certamente, quando você fala das manifestações, tanto as de maio, quanto as de junho, elas têm um sentido importante, porque num processo como esse de pandemia, talvez a gente não tivesse tido as condições de articular tantas forças políticas para se fazer presente.
Sobre esse ponto das manifestações, temos afirmado a centralidade da questão racial no enfrentamento às desigualdades. Em meio à pandemia, protestos antirracistas despertaram uma ampla ocupação das ruas em reação a mortes de pessoas negras, tanto no Brasil, quanto nos Estados Unidos. Foi uma reação internacional, aqui relacionada às operações que estavam acontecendo em várias comunidades. Teve também a morte do menino Miguel. Para vocês qual a importância, os possíveis desdobramentos desse marco no Brasil e suas conexões internacionais?
Lúcia Xavier: Eu acho que seria de se esperar que houvessem esses protestos, não acho que seria uma coisa nova, espontânea, como foi o caso do George Floyd, ou uma outra situação, como foi o caso da Marielle. Acho que os protestos tinham um cunho muito parecido com os Estados Unidos de falar das mortes, mas também vinham falar das insatisfações, das questões que estão presentes no contexto da sociedade brasileira, sobretudo para a população negra, que não estão sendo levadas em consideração. A pandemia revelava um profundo quadro de iniquidade, mas há também uma situação de violência gratuita muito forte em relação à população. Isso fez com que, sobretudo a juventude, resolvesse sair, mesmo sabendo dos riscos que correria numa pandemia. Acho até que, por causa das condições internacionais, a violência de Estado contra elas foi menor do que se esperava. Eu acho que aquilo foi também um desabafo. Para virar ação política, como foi o caso do George Floyd, que acabou virando permanente, ou como foi também a situação da Marielle, que passou um tempo com os protestos. Tava ficando um pouco insustentável para esses grupos, porque a gente está falando de gente que não faz política só protestando. Estamos falando de gente que está atuando nas comunidades, coletando alimentos, atuando na prevenção, cuidando dos seus, buscando recursos para sua sobrevivência. Um pouco como a história das mulheres negras. Estão atoladas de coisas e ainda fazem política. Então, certamente não houve uma sequência contínua [de protestos]. Mas deu, talvez, um despertar na juventude, no sentido de estar articulada para ações.Trouxe para a juventude o desafio da sua própria organização para o futuro. Acho também que, de alguma forma, essa distinção internacional parecia que geraria no Brasil uma reação de brancos, mas não foi o caso. E isso nos chama atenção, de novo, para o fato de que essa nossa disputa, nossa atuação, está ainda isentando os brancos da sua responsabilidade. Eles assinam manifesto, concordam conosco que é um absurdo, mas eles não saem à rua pra para protestar contra essa violência. Eles não abrem mão da violência contra nós. E isso é que é mais drástico. São todos processos que são muito complexos e que a gente precisa pensar como fortalecer essa militância, esse ativismo para que ele possa dar continuidade ao embate político, porque, depois do protesto as mortes pioraram. A violência foi enorme. Todo dia você vê um videozinho de tortura contra a população negra, mulheres, crianças, adultos. Julho, em relação às ações das mulheres((Em torno do Dia Internacional da Mulher Negra Latinoamericana e Caribenha)), foi feito de maneira a refletir a realidade, de valorizar, de reforçar ações políticas de maior permanência, de maior consistência. Será de novo no escopo da Marcha? Será de novo nas premências que as crises econômicas, políticas e sanitárias trouxeram? Como é que se desenha esse novo mercado de trabalho? O que será da juventude? O que será das mulheres negras que são afetadas imparcialmente em relação à isso? Com muita ênfase, sem emprego, doentes… Tem aí desafios que a gente só vai conseguir compreender um pouco mais na medida em que a pandemia também arrefecer. Porque aí vai dar pra para saber como é que a população negra vai reagir.
Bianca Santana: Eu sempre falo que eu me sinto um disco riscado, repetindo uma mesma pergunta: “onde vocês estavam quando o movimento negro convocou para o último ato? Quando nós convocamos depois dos garotos e da garota pisoteados em Paraisópolis? Quando nós fizemos atos em vários lugares do Brasil em protesto ao assassinato de Ágatha Félix?” O movimento negro se articula em denunciar a violência policial, a violência racial também nas ruas. Em muitos momentos. Me parece que tem uma atenção e apoio enormes ao que acontece fora daqui. É como se nós devêssemos atender sempre aos chamados das entidades brancas, mas quando o movimento negro convoca ninguém sente que precisa ir pra rua com a gente. Teve uma mobilização maior nas redes, como já tivemos em outros momentos, mas me parece sempre pontual. Me parece que, em muitas organizações, a centralidade do tema racial tem muito mais a ver com uma agenda de financiamento privado do que de fato com uma compreensão profunda da questão racial como central no enfrentamento às desigualdades e às injustiças. Que pactos verdadeiros são possíveis? Minha sensação é de que o tempo todo querem nos usar. Nós fomos objeto de estudo científico quando uma sociologia brasileira começou a ser fundada e também das políticas assistencialistas, além das políticas públicas de violência. E agora parece também que a gente é objeto de uma certa narrativa que eu tenho dúvidas do quanto nos beneficia.
Pensando nesse ponto da responsabilização de todos, incluindo dos brancos, quais são para vocês os atuais desafios para a constituição de uma frente ampla antirracista no Brasil?
Lúcia Xavier: Sempre visualizo limitações nesse campo. Eu acho também que essas frentes, para serem fundamentais, teriam que partir do princípio de que esses grupos precisariam declarar publicamente que não querem mais esse tipo de conduta. Não estão dizendo: “Parem de bater! Parem de matar!” A questão é a seguinte: O cara quer mesmo que o racismo seja erradicado? Que medidas ele acha que deve construir para isso? Porque, se não, fica perguntando para a gente: “O que você acha que eu devo fazer? Na minha estatística diz que morre mais negro”. Mas isso não é suficiente, porque ele não toma as medidas que fazem com que a gente diminua a força das desigualdades, a força da violência. O que eu vejo são articulações e esforços para melhorar essa dinâmica antirracista. Quais são os nossos desafios? Consolidar novas estratégias que permitam não só o confronto dessas relações raciais perversas, mas que tenham, no mínimo, no horizonte, o fim dessa violência, porque ela é muito, muito contundente. E acho também que é necessário esgarçar essas relações, não tem mais como a gente ficar tentando costurar. Denunciar que é racismo é muito fácil, agora tomar as medidas contra é muito difícil. Tem um desafio na sociedade que é fazer mais que declarar, reorientar sua prática contra o racismo. Não é do nosso lugar, que é outra questão importante. Então eu acho que tem uma ideia de que “vocês apontam o caminho”. Eu fico olhando para a cara do sujeito: “que caminho, meu querido? Se está tudo na sua mão”. São desafios para consolidação de um processo humanizado que está demorando muito. Ou mesmo essa discussão sobre racismo e democracia. Ela está tão contundente, todo mundo acha lindo. Não botou nada em suas redes, não jogou nada nos seus sites, não fez reverberar. Ou quando eu disse: “Negros morrem mais pela covid-19 do que brancos”. Eu denunciei que faltava o quesito raça/cor. Agora tem que fazer o que? Evitar que ele morra. Eu só denunciei o quesito para mostrar que há uma incoerência na ação, porque você não está me vendo. Aí falam: “Ah que chato isso né, tá faltando o quesito raça/cor” e deixam a pessoa morrer. Eu acho que esse desafio é complexo, porque ele é a base da luta antirracista. Convencer a eles que a gente não pode morrer. De qualquer forma, são muitos os desafios que a gente tem nessa nova fase. A pandemia trouxe para nós muitas questões para serem debatidas e eu acho que a gente ainda tem uma larga caminhada para compreender como será a luta antirracista nesse período.
Bianca Santana: Eu observo sempre com muito cuidado essa tentativa de constituição de frente ampla antirracista ou de grupos brancos antirracistas. Por mais que eu ache que seja essencial e que já tenha passado da hora, me parece que, do que eu tenho visto, essas pessoas e esses grupos têm muita dificuldade de olhar para a agenda do movimento negro e assumir essa agenda. O movimento negro denuncia que há um genocídio em curso no Brasil. Esses manifestos antirracistas, essas conversas sobre frente ampla antirracista, elas denunciam o genocídio negro no Brasil? Ou essa palavra é forte demais? O fato de a palavra ser forte demais me mostra, me indica, as relativizações que esses grupos fazem. Tem algo de um benefício histórico da população branca no Brasil. Essas pessoas, elas querem, do lugar que elas ocupam, fazer um discurso antirracista. Dá para ver vários movimentos de fato de tentativa de acomodação ou tentativa de aprimoramento. Então, como é que eu faço pra colocar mais pessoas negras na minha instituição? Isso existe mesmo e já é um movimento positivo, é interessante. Mas incorporar as agendas do movimento negro como agendas prioritárias das próprias entidades e da própria ação no mundo, eu estou longe de ver. E a gente está falando também sobre poder. Quem ocupa esse lugar vai buscar continuar. Então eu tenho aqui pessoas negras na minha equipe, “mas é para fazer o trabalho exatamente do jeito como sempre foi feito, viu?” Os questionamentos não são bem recebidos, eles não são bem vistos. Determinada formação é necessária. Um currículo muito parecido com o de pessoas brancas é essencial. Eu olho com receio, ressalva, sobre essas frentes amplas antirracistas no Brasil. Porque eu vejo muito nesse sentido de: “Vamos mexer, vamos mudar, para tudo ficar como está”.