Ultraprocessados: não há o menos pior

Por Andre Degenszajn, diretor-presidente do Ibirapitanga
Poucos temas mobilizam tanto o debate público quanto a alimentação. Recomendações sobre o que se deve comer e o que se deve evitar estão por todos os lados, difundidas por pesquisadores nas universidades e por especialistas e pseudo-especialistas diversos nas redes sociais. Em meio a essa cacofonia, o Brasil tem o benefício de contar com o Guia Alimentar para a População Brasileira — política que traz a recomendação oficial do governo brasileiro para a alimentação da população — que no ano passado comemorou os 10 anos da sua segunda edição. Reconhecida no mundo todo e tendo inspirado a elaboração de guias em diversos países, a publicação está baseada na classificação NOVA, formulada pelo Professor Carlos Monteiro e pesquisadores do Nupens — Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP.
A NOVA inovou por deslocar um olhar sobre os nutrientes, que embasa a conhecida e obsoleta pirâmide alimentar, para um enfoque no grau de processamento dos alimentos. Apesar dessa concepção que fundamenta a construção do Guia ter sido estabelecida há 15 anos e deter ampla sustentação na comunidade científica, mais recentemente tem sido objeto de crescentes questionamentos. Eles coincidem – e são em grande medida motivados – com a ampliação do alcance dessa visão sobre os impactos do atual padrão alimentar na saúde humana.
De acordo com a classificação, em síntese, os alimentos são organizados em quatro categorias: alimentos in natura e minimamente processados; ingredientes culinários; processados; e ultraprocessados. O primeiro diz respeito aos alimentos tais como são encontrados na natureza ou que tenham passado por processamentos físicos, sem alterar a sua característica essencial (congelamento, pasteurização, moagem, desidratação, etc). O segundo grupo são alimentos que, combinados com o primeiro, produzem os processados. Estes são alimentos que podem ser produzidos em uma cozinha comum – e que, aliás, são feitos desde que os seres humanos passaram a preparar alimentos. O último grupo refere-se aos ultraprocessados, formulações industriais que utilizam como base fragmentos de alimentos como soja, milho e trigo, combinados com aditivos químicos, açúcar e outras substâncias destinadas a aumentar a palatabilidade, melhorar a textura e o aspecto desses produtos que, de outra forma, seriam intragáveis. O resultado é um produto barato, produzido em escala industrial, com a conveniência de terem longa duração e poderem ser transportados e armazenados mais facilmente do que a maior parte dos alimentos frescos.
Ao mesmo tempo, os ultraprocessados são, na sua maioria, produtos com baixo valor nutricional e alto poder viciante. Essas características, somadas aos investimentos em publicidade e lobby por parte da indústria, têm resultado no aumento do seu consumo em boa parte do mundo, chegando a responder por quase 60% das calorias consumidas pela população – como é o caso dos Estados Unidos. A dimensão dos impactos, tanto na saúde como para a indústria, combinada com o fortalecimento das evidências científicas que corroboram com as recomendações da classificação NOVA, tem ampliado exponencialmente o debate internacional sobre os ultraprocessados.
Por que o debate sobre ultraprocessados ganhou força recentemente?
Apesar dos pesquisadores do Nupens/USP e de tantos outros centros de pesquisa estarem sistematicamente produzindo e divulgando evidências sobre o tema – e o Guia alimentar ter mais de uma década –, o debate público em torno dos ultraprocessados ganhou mais visibilidade nos últimos anos. Alguns fatores talvez tenham contribuído para isso.
Em 2019, o pesquisador do National Institute of Health, Kevin Hall, realizou um estudo clínico randomizado com 20 pessoas, durante quatro semanas, no qual metade do grupo se alimentou com uma dieta livre de ultraprocessados e a outra, com uma dieta baseada em alimentos ultraprocessados. Após duas semanas, os grupos inverteram a dieta. Ambas as dietas foram controladas para oferecer a mesma quantidade de calorias, densidade energética, macronutrientes, açúcar, sódio e fibras. A intenção do estudo era estabelecer a relação de causalidade entre o consumo de alimentos ultraprocessados e o ganho de peso – e o resultado foi positivo. Esse estudo acabou por demonstrar em um experimento controlado aquilo que os estudos observacionais já indicavam – e foi fundamental para abalar a convicção dos céticos e para mobilizar a atenção da indústria.
Enquanto no campo da ciência as evidências se acumulavam, a discussão sobre ultraprocessados ainda ocupava pouca centralidade no debate público e na mídia não especializada. Contribuiu para isso o fato de o conceito ter sido estabelecido por um grupo de pesquisadores brasileiros que, por mais que tivessem amplo reconhecimento acadêmico internacional, produziam pesquisa, de primeira linha, na periferia global.
Alguns anos mais tarde, em 2023, movido também por certo ceticismo com relação ao conceito de ultraprocessados, o infectologista inglês Chris Van Tulleken resolveu realizar outro experimento. Diferente daquele conduzido por Kevin Hall, ele mesmo foi o objeto, tendo se submetido durante 30 dias a uma dieta composta em 80% por produtos ultraprocessados. Esse percentual pode parecer excessivo, mas representa a dieta de 20% dos jovens no Reino Unido. O resultado foram seis quilos a mais e dois anos para recuperar seu peso original. Desta experiência resultou ainda o livro Gente ultraprocessada, publicado no Brasil pela Editora Elefante, um documentário, podcasts e inúmeras entrevistas e artigos pelo mundo. Isso ajudou a popularizar um conceito – e uma discussão – que resistia em atravessar os muros da universidade.
No último ano, multiplicaram-se os artigos nos principais jornais do mundo abordando os impactos no consumo de alimentos ultraprocessados. Se algum tempo antes ainda havia uma resistência em se adotar o termo, ele passou a ser uma constante nos debates sobre nutrição e saúde.
E de onde vêm as resistências?
Uma das principais dificuldades com a classificação NOVA e o conceito de ultraprocessados é que ele representa um desafio estrutural para a indústria de alimentos. Acostumada ao nutricionismo, que reduz o alimento a um conjunto de nutrientes, a indústria se especializou em formular e reformular produtos para supostamente serem “mais saudáveis”, “menos calóricos”, com “mais fibras”, “menos gordura”, “mais proteicos” etc. O problema é que a classificação dos alimentos pelo grau de processamento coloca em xeque justamente o processo pelo qual esses produtos são elaborados. Não se trata de subtrair ou adicionar um ingrediente, mas abandonar por completo os métodos de fabricação desses produtos nocivos à saúde, que não são apenas convenientes, mas extremamente lucrativos.
Com isso, alguns grupos e pesquisadores, isentos ou nem tanto, passaram a questionar a NOVA, alegando dificuldade de aplicação, falta de precisão e excessiva generalização da classificação, por não estabelecer distinção entre os ultraprocessados ruins e os menos piores. Recentemente, a agência de jornalismo investigativo O joio e o trigo publicou artigo fazendo uma revisão dos argumentos e armadilhas do discurso sobre os “ultraprocessados do bem”. Nos principais jornais e revistas, diversas matérias têm sido publicadas especulando sobre a necessidade de distinguir entre produtos ultraprocessados, fundamentalmente a partir do argumento de que alguns deles podem oferecer nutrientes importantes, como pães, cereais matinais e iogurtes ultraprocessados. Os verdadeiros vilões, segundo um estudo, seriam as carnes processadas e as bebidas açucaradas.
O fato de que possa haver produtos ultraprocessados menos piores não os torna melhores ou equivalentes aos seus análogos processados. Mais importante do que estabelecer distinções específicas entre produtos selecionados, é necessário transformar a base da alimentação – ou o que ela tem se tornado com o advento dos ultraprocessados.
Hierarquizar ultraprocessados buscando destacar aqueles que supostamente trariam benefícios, ou menos prejuízos, é o caminho mais eficaz para manter as coisas como estão ou aprofundar a tendência em curso de aumento no consumo de ultraprocessados como um todo.
Mesmo aqueles “menos piores”, pelos comportamentos alimentares que estimulam, fortalecem padrões que acabam incentivando o alto consumo de ultraprocessados.
O investimento em produzir controvérsias em torno do conceito de ultraprocessados abriu espaço ainda para ataques em novas frentes, desta vez patrocinada pela Fundação Novo Nordisk – mantida pela empresa que obtém a maior parte de seu lucro de um medicamento utilizado no combate à obesidade. Nem é preciso muito esforço para explicitar o conflito de interesse. Em iniciativa desenvolvida em parceria com a reputada revista The British Medical Journal, a Fundação financiou um projeto para fazer uma “atualização” da classificação NOVA, agora supostamente baseada em evidências. Esse episódio levou à publicação de uma carta aberta assinada pelo Prof. Carlos Monteiro no qual o autor solicita que o referido projeto não faça menção a qualquer conexão, atualização ou melhoria da NOVA. Com um discurso de modernização e aperfeiçoamento, a classificação corre o risco de ser substituída por uma evolução que a descaracteriza e a esvazia de sentido. É a antiga estratégia de manter as coisas como estão – ou de produzir um retrocesso – lançando mão justamente de uma retórica de inovação.
Ironicamente, de onde menos se esperava apareceu um (pouco confiável) aliado na luta contra os ultraprocessados. Negacionista de imunização e porta-voz de falsas evidências no campo da saúde, o Secretário de saúde dos Estados Unidos, Robert F. Kennedy Jr., tem sido o principal defensor no governo americano de uma dieta livre de ultraprocessados. É surpreendente que justamente a partir de um governo que chafurda em conflitos de interesse com o setor privado venha uma das vozes mais aguerridas no combate aos ultraprocessados. Independentemente dos seus métodos, RFK tem sido eficaz em dar força para esse debate nos Estados Unidos – resta ver se os incisivos discursos darão lugar a mudanças efetivas.
É provável que esse movimento, ao mesmo tempo em que populariza e difunde o debate sobre alimentação saudável, produza resistências de maneira crescente. O embate que se anuncia será fundamentado em evidências científicas, mas, acima de tudo, em dinâmicas políticas. Neste sentido, será necessária a construção de alianças que vão muito além dos centros de pesquisa e um exercício sistemático de controle social sobre os conflitos de interesse que permeiam a relação da indústria com os processos regulatórios e a construção de políticas públicas no campo alimentar. Trata-se de um importante legado que essa geração tem a oportunidade de deixar para as próximas.