Norte, Brasil, América Latina: três pontos sobre visões políticas de mulheres negras

5º Festival Telas em Movimento, realizado por Negritar em novembro de 2022 |
Em sua longa extensão territorial, o Brasil conta com uma diversidade de realidades e visões que devem ser consideradas na construção democrática e na garantia de direitos. Com forte presença negra e indígena, o Norte brasileiro vem sendo palco de disputas territoriais que ganham visibilidade mais recente a partir das questões climáticas, de saúde e de fronteira com outros países. Ao mesmo tempo é uma região cultural e ambientalmente muito rica, na qual o protagonismo político de mulheres negras é uma fonte fundamental de transformação das dinâmicas dessas disputas, atravessadas pelo racismo e o machismo. Nesse contexto, duas organizações de mulheres negras se inserem para estimular a resistência e visibilidade negra a partir da região.
Fundado em 2000, o IMENA – Instituto de Mulheres Negras do Amapá é um exemplo desse protagonismo. Buscando a universalização e a efetivação dos direitos humanos, bem como a inclusão das populações afrodescendentes, especialmente mulheres e jovens, o instituto dá visibilidade à luta da mulher negra amazônida amapaense, bem como às suas necessidades e potencialidades, estimulando o enfrentamento ao racismo, ao machismo e a outras formas de opressão.
Completando cinco anos de atuação este ano, a Negritar realiza projetos audiovisuais de impacto social, por pessoas negras, indígenas e amazônidas. A iniciativa estimula uma nova dinâmica de criação, percepção e distribuição das narrativas amazônicas, por meio de formação audiovisual, além de debates e circuito de exibições.
Em 2022, as duas organizações foram selecionadas para receberem apoio do Instituto Ibirapitanga por meio da Chamada de Propostas Norte, Nordeste e Centro-oeste, voltada a intensificar as doações nas três regiões.
No mês que tem como marco o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, 25 de julho, o Ibirapitanga conversou com as duas organizações abordando três pontos de visões a partir do Norte sobre a ação das mulheres negras para o país e a região da América Latina.
Instituto Ibirapitanga: A partir da atuação da organização, como vocês entendem a importância e efetividade da ação das mulheres negras em diálogo com um projeto de país e em conexão com a América Latina?
Imena: Apesar da relação fraterna que existe entre os países da América Latina e a Pan-Amazônia, muitas vezes o ‘outro’ (aqueles que não habitam a Amazônia) classifica o bioma como um ecossistema indefeso, inabitável, sensível e que precisa da tutela do colonizador. A diversidade étnica que existe dentro da Amazônia é negligenciada, deslocando povos tradicionais negros para a margem desses debates. Nesse contexto, as mulheres negras amazônidas buscam a valorização de nossos povos, bem como o reconhecimento das especificidades, pluralidades culturais dentro do contexto amazônico, sendo este um caminho para tornar a criação e até efetivação de blocos que de fato sejam unidos e que funcionem para a bem comum dentro da América Latina e Amazônia.
Negritar: As mulheres amazônidas sempre estiveram na luta para combater a hegemonia ocidental, priorizando e resgatando as nossas lutas. Entendemos que pertencer e estar nesses espaços é de extrema importância, porque nos coloca no centro do debate, nos fortalecendo e nos conectando com outras organizações negras da América Latina. Viemos de um espaço em que os direitos e as oportunidades sempre foram limitados, e poder partilhar e trocar experiências com mulheres de outros lugares nos energiza para seguirmos caminhando.
Instituto Ibirapitanga: O 25 de julho é uma data que alude ao protagonismo das mulheres negras contra o racismo e as iniquidades de gênero articulado no território latino-americano, o que traz fortemente as dimensões de interseccionalidade e fronteiras. Quais contribuições você ressaltaria das mulheres negras da região Norte na reflexão e ação em torno deste marco?
Imena: Dentro do movimento negro amazônico destacamos a Rede Fulanas — Negras da Amazônia Brasileira, presente nos estados do Amapá, Acre, Rondônia, Amazonas, Maranhão, Pará e Tocantins.
“A iniciativa apoia ações que trabalham o feminismo negro, por meio das experiências da mulher negra no contexto amazônico, levando em conta a sua ancestralidade, mostrando a Amazônia como de fato é: diversa em culturas e povos, que cura, gera, cria, pare e que não é apenas uma enorme porção de terra rica em recursos, como é vista pelos de fora.”
Destaco aqui as estudiosas, Nilma Bentes e Zélia Amador, que fundaram o Cedenpa – Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará, principais referências do movimento no Norte e com grandes contribuições a nível nacional. Elas foram responsáveis por tematizar a questão racial, conquistando o reconhecimento de terras quilombolas dentro do Pará, medidas reparatórias para aqueles discriminados nos mercados de trabalho, abrindo precedentes para outros estados da região Norte.
Negritar: Nossos passos vêm de longe e reverenciamos nossas mais velhas que lutaram e lutam muito aqui neste território amazônico, para que possamos continuar vivas. São esses movimentos que fortalecem esse marco do dia 25 de julho.
“Por meio da cultura, tradição e ancestralidade, nos unimos na busca pela luta e garantia dos nossos direitos. Aprender com a interseccionalidade é fundamental para pensarmos em novas formas de discutir e lutar pela vida das mulheres negras amazônidas. Estamos na linha de frente!”
Instituto Ibirapitanga: Como o projeto apoiado pelo Instituto Ibirapitanga se insere e colabora com o contexto das mulheres negras no seu território de atuação?
Imena: O projeto “Novos Aquilombamentos Amazônicos” insere jovens negras amazônidas dentro do movimento. A exemplo, já estamos realizando a mobilização de mais de 30 jovens para a Marcha das Mulheres Negras que ocorrerá em 2025. Na busca por efetivação de direitos, a iniciativa vem articulando uma carta que reivindica soluções para as iniquidades que existem dentro da sociedade amapaense e refletem toda a região amazônica. Ser mulher negra e amazônida torna ainda maiores as nossas dificuldades e ampliam o preconceito, sexismo e elitismo potencializados pelo racismo estrutural. Em meio a tantas violências interseccionais, o projeto que estamos desenvolvendo com o apoio do Instituto Ibirapitanga oportuniza às mulheres jovens a criação de um pensamento crítico a respeito da situação em que estão inseridas e como contribuir para uma sociedade com base no bem viver.
Negritar: Para nós, o apoio fortalece não só a Negritar, mas as organizações negras na Amazônia. É através desses apoios que conseguimos viabilizar sonhos, que se tornam ações que garantem mais visibilidade e protagonismo, além de contribuirmos na geração de emprego para mulheres negras do Norte.
Conheça mais as organizações e os projetos apoiados
Imena
A organização de mais de 20 anos, está integrada e constrói parcerias com outras organizações e redes dos movimentos negros, como Cedenpa, Rede Fulanas e AMNB.
A história do IMENA é marcada por diversas iniciativas, como a formação de multiplicadoras no enfrentamento à violência contra a mulher em comunidades negras de Mazagão Velho e Carmo do Macacoari, dos quilombos de Torrão do Matapi e do Mel da Pedreira, bem como da área urbana de Macapá. A organização também acumula a experiência de combate ao racismo institucional no Amapá, tendo como uma de suas ações a realização do “Diagnóstico socioeconômico, cultural e político das comunidades remanescentes de quilombo do estado do Amapá”. A partir do diagnóstico, o IMENA deu suporte ao advocacy de lideranças das comunidades de Campina Grande, de Torrão do Matapi e do Rosa para o debate sobre as políticas públicas na saúde municipal de Macapá.
O Projeto Novos Aquilombamentos Amazônicos, apoiado pelo Ibirapitanga, busca empoderar a juventude negra, em especial as mulheres negras cis e trans de comunidades periféricas, quilombolas e tradicionais do município de Macapá e territórios próximos da capital, com formação política sobre as diversas questões históricas e contemporâneas dos movimentos negros.
Negritar
Completando cinco anos de atuação em 2023, a Negritar é uma organização de nova geração que realiza projetos culturais e atividades de produção, difusão e formação das periferias e comunidades tradicionais na Amazônia. Entre as organizações parceiras em sua atuação estão Instituto Clima e Sociedade, Cedenpa e FADESP – Fundação de Amparo e Desenvolvimento da Pesquisa.
A partir da série “Pretas”, que ganhou visibilidade e premiações através de circuitos de festivais, a Negritar nasceu na periferia do Jurunas, Belém do Pará, com o propósito de valorizar profissionais e produções audiovisuais negras e da Amazônia. A organização produz obras documentais e ficcionais sobre a realidade de pessoas negras como também promove a capacitação e difusão das produções por meio de circuitos de exibição, garantindo a democratização do acesso ao cinema por parte das periferias e comunidades tradicionais da Amazônia.
Com apoio do Instituto Ibirapitanga, a Negritar está finalizando o documentário de denúncia, “A sete palmas da liberdade”, que investiga, através de relatos de povos tradicionais da região do Alto Acará, o racismo ambiental que as comunidades sofrem há gerações. A obra explora a luta pela defesa da floresta viva, sustento dessa comunidade, que presencia diariamente a brutalidade da suposta “evolução agrária” implantada no Brasil.
O documentário é uma estratégia de fortalecimento dos contos dos povos tradicionais que fazem as denúncias de grilagem de terra por parte de grandes empresas. Conhecida pelos especialistas como “Guerra do Dendê”, a disputa de terra por duas grandes empresas, produtoras de dendê, gera assassinatos e coerção de lideranças indígenas e quilombolas, além de diversos crimes ambientais, culminando também na chegada de garimpeiros para intensificar a exploração na região.