Ousar e incidir pelo poder Judiciário em mãos negras

Por Diana Mendes e Tássia Mendonça
Em 1962, pouco mais de 70 anos após o fim da escravidão legal no Brasil, Mary Aguiar da Silva se tornou a primeira juíza negra do país. Ela deve ser reconhecida pelo pioneirismo em ocupar lugar de tomada de decisão e poder no Judiciário, campo ainda hoje majoritariamente branco e masculino. A segunda juíza negra só seria empossada cinco anos depois, e a terceira só assumiria mais de quarenta anos após Mary, em 2006. Isso significa que, em uma história de mais de 520 anos de país, demoramos mais de 400 para ter mulheres negras no Judiciário. O cenário de desigualdades étnico-raciais e de gênero no poder Judiciário continua refletindo o processo histórico e estrutural de exclusão da população negra dos espaços de poder.
Enquanto políticas orientadas para inclusão de pessoas e grupos historicamente discriminados, as ações afirmativas consistem em uma estratégia fundamental para a transformação desse quadro. A promoção do acesso ao ensino superior, através da implementação da Lei 12.711/2012, por exemplo, se provou eficaz e efetiva ao transformar as universidades em espaços mais diversos. Nesse sentido, pensar a representatividade negra também em carreiras jurídicas, desde os cursos de formação até os altos quadros da magistratura, é crucial para o avanço da democracia brasileira.
A desigualdade na Justiça brasileira é profunda, historicamente enraizada e de caráter sistêmico e estrutural. O STF — Supremo Tribunal Federal, desde a sua criação em 1891, teve apenas três ministros negros. Em toda a sua história, a suprema corte não teve nenhuma mulher negra em sua composição.
Já os dados do CNJ — Conselho Nacional de Justiça indicam que em cargos de primeira instância, como juízas, as mulheres negras não chegam a 7% e, quando se desdobra para cargos de desembargadores e desembargadoras, elas são apenas 2%.
O Ibirapitanga, desde o seu surgimento, estabeleceu a consolidação das iniciativas de ação afirmativa como um dos eixos estratégicos da sua atuação e vem apoiando organizações e projetos que fortaleçam o ingresso e permanência de pessoas negras na universidade, no sistema judicial, a produção de conhecimento sobre ações afirmativas e outras iniciativas voltadas à inclusão de pessoas negras em espaços de poder.
Uma das estratégias possíveis é por meio da reserva de vagas em concursos públicos, estimulando o acesso de pessoas negras às carreiras jurídicas. Esse é um dos caminhos trilhados pelo IAJ — Instituto de Acesso à Justiça, que concede bolsas de estudos em cursos preparatórios para pessoas negras ingressarem no campo jurídico, além de apoio psicológico e custeio de inscrições das provas, por meio do projeto Mary de Aguiar e Silva, nome que homenageia justamente a história dessa memorável liderança.
Outra iniciativa similar no campo é a Plataforma Alas que através do Edital Traços apoia trajetórias de pessoas negras interessadas em ingressar nas carreiras jurídicas ou na política institucional. Realizado pela Fundação Tide Setubal, em parceria com o Ibirapitanga, Open Society Foundations, Instituto Galo da Manhã e Porticus, em 2022 o Edital apoiou 71 lideranças negras em todas as regiões do país, dentre as quais, 27 na área jurídica.
Ainda há muito a ser feito e compreender o tamanho do desafio é fundamental, por isso, pesquisas que aprofundam os diagnósticos sobre esse tema são essenciais para o avanço das ações afirmativas. Em parceria com o Instituto Betty e Jacob Lafer, o Ibirapitanga apoia a pesquisa Operacionalizando a Equidade Racial no Judiciário, conduzida pelo Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas. O projeto tem o objetivo de fortalecer e aprimorar o debate sobre políticas de equidade racial no Poder Judiciário e auxiliar o Conselho Nacional de Justiça no desenvolvimento de políticas públicas.
Tanto o apoio a trajetórias individuais quanto o investimento em pesquisas sobre a presença, ingresso e permanência de pessoas negras no Judiciário são imprescindíveis para a democratização do acesso à justiça e para o enfrentamento do racismo e da desigualdade. Essas trajetórias têm nomes e histórias, como o da Josiane Nunes Alves que foi aprovada no concurso público para oficial de justiça do estado do Rio Grande do Sul (edital 43/2020). Ela obteve a maior nota entre todos os candidatos autodeclarados negros e tomou posse como oficial de justiça ao final de novembro de 2021. Outra mulher negra, Diana Gonçalves Viana Machado, obteve a 23ª colocação entre 191 cotistas negros na prova objetiva do concurso para assessor jurídico da PGE-RS. Isadora Pereira Trajano e Thanius Silvano Martins foram aprovados no XXXIII Exame de Ordem Unificado concluído pela OAB em janeiro de 2022. Essas são algumas das pessoas negras que foram contempladas com bolsas de estudo do IAJ, por meio do Projeto Mary de Aguiar e Silva.
Incidir de forma estrutural no campo jurídico, bem como abrir caminhos diretamente para que lideranças negras sejam um vetor da transformação social, são alguns dos compromissos de apoio do Ibirapitanga para mudar o cenário do poder Judiciário e da democracia brasileira com ações afirmativas. O pioneirismo de Mary de Aguiar se reflete tanto nos projetos que dão continuidade ao seu legado, quanto na ousadia de lideranças negras contemporâneas que, ao ingressarem na magistratura, têm o potencial de transformar o poder Judiciário e, por consequência, a democracia brasileira.
Diana Mendes e Tássia Mendonça são, respectivamente, gestora de portfólio e analista do programa Equidade racial do Instituto Ibirapitanga.
Fontes:
https://books.scielo.org/id/2mvbb/pdf/feres-9786599036477.pdf
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