O “plant based meat” é a alternativa para o futuro? — Entrevista com Marina Yamaoka

Na discussão sobre os impactos climáticos dos sistemas alimentares a questão da produção e consumo de carne tem sido central. Este é o setor que, em franco crescimento, demanda cada vez mais recursos naturais. Os impactos sociais e ambientais gerados pela produção bovina envolvem desmatamento para áreas de pastagem — a área destinada à criação de bois é 2,5 vezes maior que toda a área de lavouras brasileiras — aumento da produção intensiva de grãos para alimentação animal, poluição de recursos hídricos e emissão de gases do efeito estufa. O Brasil é um dos maiores produtores de carne do mundo e, mesmo sendo também seu maior exportador, consome boa parte do que é produzido: o mercado interno da carne bovina é quase quatro vezes maior que o externo sendo que somente cerca de 20% é exportado para outros países.
Ciente desses desafios, a indústria da carne tem se adaptado a este contexto criando alternativas como as “plant based meat” (carne à base de plantas), apresentadas como solução saudável e sustentável. No entanto, ainda que possa ser vista como alternativa ao meio ambiente, influenciando a redução da produção de carne, apresenta outras sérias questões como o fato de não deixar de ser um alimento ultraprocessado com impacto na saúde como agravamento das doenças crônicas não transmissíveis.
Utilizando do marketing que seduz e passando a mensagem de futuro e esperança, a indústria da carne à base de plantas se espalha e projeta franco crescimento para os próximos anos.
Em entrevista ao Ibirapitanga, a pesquisadora Marina Yamaoka reflete sobre os desafios de ampliar o debate em torno dos sistemas alimentares saudáveis, justos e resilientes em um cenário onde a indústria não mede esforços para manipular fórmulas, ampliar a oferta de ultraprocessados e disputar narrativas, por meio de campanhas estrategicamente pensadas para atribuir à indústria do alimento e ao agronegócio o progresso alimentar do país.
Maria Yamaoka é jornalista, mestre em desenvolvimento internacional com foco em políticas públicas e sistemas alimentares pela Sciences Po-Paris e estudante de Doutorado em Ciência Política. Marina atua como coordenadora do pólo brasileiro do Institut des Amériques, na promoção de projetos científicos transdisciplinares entre universidades e pesquisadores franceses e brasileiros. No Brasil, vem contribuindo para o fortalecimento de iniciativas apoiadas pelo Instituto Ibirapitanga, centrais para o desenvolvimento de Sistemas alimentares.
Atua como pesquisadora e coordenadora de comunicação na Cátedra Josué de Castro, um espaço de produção de conhecimento interdisciplinar, multidimensional compartilhado com diversos atores para discutir as transformações dos sistemas alimentares no país. Trabalhou como produtora executiva em O Joio e o Trigo, iniciativa de jornalismo investigativo sobre as implicações políticas, sociais, econômicas e ambientais da alimentação industrializada e como jornalista e consultora da Agência Bori que aproxima a ciência da população por meio da divulgação científica.
Instituto Ibirapitanga: Em artigo recente de sua co-autoria, “Convergência da indústria de ‘proteínas’ e suas implicações para sistemas alimentares resilientes e equitativos”, na tradução do inglês, são apresentadas reflexões sobre a ampliação das assimetrias de poder e fragilidades do modelo industrial de produção e comercialização de alimentos. Quais são as correlações possíveis entre práticas nocivas desse modelo e crises humanitárias, sanitárias e climáticas?
Marina Yamaoka: O artigo analisa a recente tendência de convergência na indústria de alimentos ricos em proteínas como, por exemplo, empresas de processamento de carne que expandem seu portfólio adquirindo empresas que produzem alternativas vegetais aos produtos de origem animal — como hambúrgueres à base de plantas — ou até startups que buscam criar carne cultivada. Esses movimentos de fusões e aquisições não são uma exclusividade de empresas que produzem, processam e comercializam carne, basta olhar para o caso das megafusões que aconteceram em 2015 nas indústrias de sementes, agrotóxicos e fertilizantes. No entanto, o que é interessante na análise do artigo é a articulação da indústria em torno de um macronutriente e como ela faz uso de estratégias de marketing reducionistas justamente para promover cada vez mais o consumo de proteínas. Um exemplo é a norte-americana Tyson que se posiciona como uma empresa que vende “mais do que frango” e que se define como uma “líder em proteínas”. O que o artigo mostra é que a convergência da indústria e a consequente concentração de poder nas mãos de poucas empresas podem, entre outros, reduzir a diversidade genética de animais e de lavouras. A consolidação da “indústria de proteína” tende a promover o modelo agroalimentar industrial, baseado em monoculturas de poucos tipos de grãos e a produção industrial de animais com traços genéticos parecidos. A ênfase em variedades geneticamente uniformes pode levar a uma menor resiliência dos sistemas alimentares e a uma maior suscetibilidade a parasitas e doenças. Além disso, a pecuária industrial contribui com a crise climática, seja pela produção de grãos para alimentar os animais, ou pelos gases emitidos no seu processo digestivo.
Instituto Ibirapitanga: Há um crescente debate sobre a controvérsia dos produtos “à base de plantas” como alternativas para solucionar consequências críticas dos sistemas alimentares. O artigo citado traz contribuições a esta discussão com enfoque na captura industrial desta narrativa. Você pode apontar os principais pontos dessas contribuições?
Marina Yamaoka: Os novos produtos “à base de plantas” se posicionam não só como uma alternativa ao consumo de carne, mas como soluções aos impactos ambientais e à saúde humana que a atual produção pecuária causa. A convergência da indústria da proteína pode soar contraditório num primeiro momento, porque as empresas tidas como tradicionais no setor também estão expandindo e investindo em “alternativas” aos seus próprios produtos. Ou seja, a JBS, que processa carne bovina, suína e frangos, optou por investir em outros tipos de proteínas e entrou no mercado das carnes vegetais em 2020, por meio da marca norte-americana chamada OZO. Em abril deste ano, a JBS comprou a terceira maior produtora de ítens “à base de plantas” na Europa.
Percebe-se que as alternativas são promovidas pela própria indústria de alimentos como soluções para problemas sérios, que são absorvidos por essa nova ‘indústria da proteína’. Isso é uma indicação de que esses produtos não vão necessariamente causar uma disruptura e transformar os sistemas alimentares, eles não representam forte concorrência à indústria tradicional e, mais do que isso, ajudam a consolidar a indústria da proteína, fortalecendo as assimetrias de poder que, como vimos antes, podem ter impactos negativos no meio ambiente.
A inclusão dos produtos “à base de plantas” dentro da categoria de ‘proteína’ contribui para fortalecer o reducionismo nutricional em apenas um macronutriente e ajuda a desviar a atenção do alto grau de processamento de muitos desses produtos.
Instituto Ibirapitanga: Nos conte por favor as recomendações centrais propostas no artigo para a transição para sistemas alimentares sustentáveis, saudáveis e justos.
Marina Yamaoka: Uma das principais recomendações do artigo é a necessidade da definição de práticas para concorrência entre empresas e ampliação do escopo da regulação antitruste, justamente para que se evite a concentração de poder nas mãos de poucos atores da indústria de alimentos. De novo, esse caso não é exclusivo da indústria da proteína, o mesmo vale para as fusões e aquisições na indústria de sementes, agrotóxicos, entre outros. Além disso, de uma forma mais geral, uma transição para sistemas alimentares sustentáveis, saudáveis e justos significa buscar soluções para as assimetrias de poder e isso poderia ser alcançado com o fortalecimento da soberania alimentar. Outro aspecto importante é aumentar a diversidade de culturas e de animais por meio de incentivos às práticas agroecológicas, que ajudam a tornar os sistemas alimentares mais resilientes. Por último, o artigo aponta para a necessidade de estudarmos com mais profundidade outras dimensões e efeitos da convergência da indústria da proteína como, por exemplo, o impacto do marketing utilizado na homogeneização de culturas alimentares ou no aumento do consumo de produtos pobres em nutrientes e ultraprocessados.
Instituto Ibirapitanga: Em relação a sua experiência no campo da comunicação sobre sistemas alimentares, quais são os maiores desafios atuais
Marina Yamaoka: Sistemas alimentares são complexos e suas relações ultrapassam a cadeia produtiva e tocam diferentes dimensões como, economia, desenvolvimento, cultura, meio ambiente e saúde humana.
O maior desafio é a comunicação estabelecer uma abordagem sistêmica sobre o assunto sem isolar fenômenos contextualmente amplos ou deixar de relacioná-los às diferentes dimensões com as quais os sistemas alimentares interagem. Um exemplo recente é o aumento do preço do arroz e feijão e como se deu a cobertura do assunto por alguns veículos. Boa parte relacionou os altos preços com a desvalorização do real frente ao dólar, mas deixaram de mencionar outros aspectos importantes como a safra ruim de grãos em outros países — o que é fundamental em um sistema alimentar globalizado —, a falta de um estoque interno estratégico, entre outros.
A mesma necessidade de abordagem sistêmica vale para as consequências da inflação nos impactos da alta do arroz e feijão na cultura alimentar dos brasileiros, por exemplo. Outro desafio para os comunicadores que cobrem pautas de sistemas alimentares é o financiamento privado, proveniente da indústria, a pesquisas, que nem sempre estão expostas em artigos ou outros materiais de cunho científico, o que dificulta saber se um estudo é enviesado ou não e isso acaba criando obstáculos a uma comunicação que realmente se baseia em evidências científicas e livres de interesses privados.
Instituto Ibirapitanga: Na sua caminhada até aqui, quais exemplos você compartilharia de adaptações, achados, novos caminhos encontrados na comunicação sobre sistemas alimentares?
Marina Yamaoka: O primeiro é o podcast Prato Cheio, de O Joio e O Trigo, no qual eu era produtora-executiva. Uma das preocupações da equipe é justamente conseguir tratar um assunto específico com a complexidade de uma abordagem sistêmica, trazendo a maior quantidade de informações possíveis sobre política, economia, cultura, meio ambiente, saúde e conflitos de interesses por parte da indústria. Acho que um dos achados importantes que tivemos no processo de manter essa abordagem sistêmica foi de não adotarmos um tom explicativo ou professoral, por mais complexo que fosse um assunto, optando por apurar histórias humanas que ganhassem espaço nos roteiros. Desculpe o trocadilho, mas acho que isso dá muito mais sabor para as pautas, elas passam a ser boas histórias, algo que as pessoas lêem, escutam, se sentem conectadas e mais impelidas a compartilhar, mesmo se o assunto não seja necessariamente leve como alimentação nas prisões brasileiras. Esse episódio [O prato do preso], por exemplo, foi vencedor do 43o Prêmio Vladimir Herzog. A segunda experiência é com a Cátedra Josué de Castro, pensando principalmente na parceria que temos com a plataforma jornalístico-acadêmica do Nexo Políticas Públicas. O espaço em um veículo de comunicação nos permite divulgar temas acadêmicos importantes em formatos diferentes e linguagem acessível, ajudando a disseminar evidências científicas sobre sistemas alimentares, não apenas no meio acadêmico, mas para um público mais amplo.
Instituto Ibirapitanga: Quais as possíveis colaborações que a comunicação ainda deverá dar ao desenvolvimento de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis?
Marina Yamaoka: Um ponto importante que não mencionei quando falamos dos desafios é a necessidade de termos uma narrativa coesa e bem articulada para o desenvolvimento de sistemas alimentares saudáveis, sustentáveis e justos. Inclusive, no ano passado, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação publicou um relatório chamado “Segurança Alimentar e Nutricional – Construindo uma Narrativa Global para 2030.” Nesse estudo, a organização atualiza o conceito de segurança alimentar e nutricional e aponta para uma necessidade urgente de estabelecer uma narrativa global a respeito do assunto, que permita fortalecer o conceito e adotar uma estrutura analítica e política de sistemas alimentares. Acredito que a comunicação pode contribuir na construção dessa narrativa, não diria que necessariamente global, mas para enfrentar a disputa feroz de narrativas que acontece no Brasil. O campo do agronegócio utiliza de mensagens-chaves fortes, simples e que justamente não se conectam à abordagem sistêmica. Frases como ‘o agro brasileiro alimenta o mundo’ ou o ‘agronegócio é o setor mais dinâmico’ vêm se tornando muito conhecidas e carecem de desconstrução por meio de análises mais aprofundadas. Felizmente, temos jornalistas e pesquisadores trabalhando nisso. Também precisamos de narrativas fortes para promoção da defesa dos sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis, que consigam passar as mensagens-chave de transformação de forma eficaz e efetiva, sem abandonar a complexidade do assunto.
Instituto Ibirapitanga: Você poderia compartilhar uma referência no tema de sistemas alimentares que foi importante para seu aprendizado neste campo?
Marina Yamaoka: Durante o mestrado, eu tive a oportunidade de assistir uma palestra da Vandana Shiva que me marcou muito pela habilidade que ela tinha de, em poucas frases e em uma mesma resposta, falar sobre desigualdades econômicas, questões de gênero, a proteção do meio ambiente e a necessidade de proteger sementes crioulas. Cada resposta que ela dava amarrava muito bem as diferentes pontas dos sistemas alimentares e por isso eu recomendo o livro ‘Who Really Feeds the World? The Failures of Agribusiness’ no qual ela aponta as falhas do sistema agroalimentar industrial e aponta soluções agroecológicas para transformação dos sistemas alimentares. Outra referência mais recente que me marcou é o documentário ‘Chão’, da Camila Freitas, que tem um olhar ao mesmo tempo forte e delicado sobre a luta pela terra e pela Reforma Agrária Popular.