Sete aspectos da abolição inconclusa na visão de quatro lideranças negras

No dia 13 de maio de 1888, a Lei Áurea determinou a abolição da escravatura no Brasil, último país das Américas a oficialmente proibir o sistema. O fim da escravidão colonial teve motivações econômicas – a Revolução Industrial criou mais mercados consumidores e modificou as relações de trabalho, tornando o sistema escravocrata inviável financeiramente. A escassez de políticas públicas de Estado para equidade racial, bem como a permanência daquelas que empregam violações de direitos às vidas negras, aliam-se à ainda frágil adesão de brancas/os ao antirracismo. 133 anos após, o caminho de luta por garantia de direitos segue sendo trilhado majoritariamente por negras/os.
É a partir dessa perspectiva histórica que organizações negras e seus movimentos pautam o 13 de maio como data de visibilidade e luta em torno da abolição inconclusa e suas consequências para a população negra. Para apresentar diferentes nuances desta questão, o Ibirapitanga ouviu quatro lideranças negras de organizações que apóia: Sueli Carneiro, do Geledés – Instituto da Mulher Negra; Karen Luise, do IAJ – Instituto de Acesso à Justiça; Nathália Oliveira e Dudu Ribeiro, da Iniciativa Negra.
Suas reflexões alimentaram o processo de criação de conteúdo do Instituto Ibirapitanga sobre as repercussões da abolição inconclusa. Oferecem perspectivas em torno dos aspectos da abolição inconclusa identificados hoje no Brasil, bem como das presentes estratégias de enfrentamento a esse contexto no trabalho das organizações de que as lideranças fazem parte.
Veja sete aspectos para entender e endereçar a questão da abolição inconclusa no Brasil na visão de Sueli Carneiro, Karen Luise, Nathália Oliveira e Dudu Ribeiro:
Origens e ecos
Para desnaturalizar a condição atual da população negra no Brasil, alguns pontos tornam mais nítidos suas raízes e desdobramentos.
1. Os abismos sociais entre negros e brancos têm origem na abolição inconclusa, orientada à exclusão social da população negra pela falta de acesso a direitos
Karen Luise pontua que “o Brasil declarou extinta a escravidão no país com uma lei que se resumiu a dois artigos”. A juíza denuncia de forma perspicaz e direta uma abolição sem compromisso com a real emancipação das pessoas negras naquele cenário.
Essa ausência de planos para “o dia seguinte” ao 13 de maio, faz parte, na verdade, da construção de um projeto de perpetuação do racismo estrutural em outra lógica produtiva e econômica.
É o que explicita Sueli Carneiro em sua concisa e precisa reflexão: “As desigualdades que hoje percebemos vêm sendo construídas historicamente e decorrem de uma abolição inconclusa. Uma abolição desacompanhada de políticas efetivas de inclusão das pessoas anteriormente escravizadas que, ao contrário, foram relegadas socialmente por meio de uma política eugenista de branqueamento da sociedade, pelo estímulo à imigração europeia; de políticas de exclusão que impediram o acesso democrático dos negros à educação formal, ao mercado de trabalho e limitaram suas possibilidades de participação política”.
2. Do pós-abolição até aqui, novos mecanismos foram criados para sofisticar e aprofundar o racismo estrutural
Para Sueli Carneiro “a esse acúmulo de desvantagens históricas somam-se, no presente, outros mecanismos de exclusão racial, que impedem aos negros o acesso democrático, sobretudo às oportunidades de trabalho, condição essencial para a reprodução da vida.”
De acordo com a filósofa, tais mecanismos são “os persistentes ecos, na sociedade brasileira, do racialismo do século XIX, que estabeleceram a classificação e hierarquização da diversidade humana em raças superiores e inferiores, o que o avanço científico hoje desmente, mas que se mantém, no imaginário social, produzindo efeitos de poder, processos de exclusão e/ou subalternização realizados por meio de práticas discriminatórias explícitas ou veladas e/ou por omissão diante de suas evidências, sobretudo daqueles a quem competiria erradicá-las ou puni-las.”
Com foco na correlação íntima entre os meios de manutenção do racismo e a política de drogas, Nathália Oliveira e Dudu Ribeiro afirmam: “Nós entendemos que a dita ‘guerra às drogas’ carrega diversos resquícios de uma “sobrevida” da escravidão, realizada através dos mecanismos oriundos daquele modelo, mas atualizados constantemente desde a abolição. Produz uma posicionalidade negra que é única e incomunicável dentro da sociedade contemporânea, cuja característica principal é a violência gratuita e estrutural.”
A cientista social e o historiador, concluem que “a atual política de drogas que proíbe a produção e comercialização de apenas algumas substâncias psicoativas, é um sustentáculo que organiza ideologicamente ações estatais de grande impacto, com um amplo consentimento social, permitindo que as vidas negras sigam valendo tão pouco.”
3. O trabalho é uma esfera central neste debate
Na escravidão, o trabalho forçado era o que sustentava a sociedade colonial. Após a erosão da lógica, o projeto de manutenção do racismo levou a maioria da população negra ao desemprego ou a posições subalternizadas e, consequentemente, de baixa remuneração.
Karen Luise sintetiza que “dentre os tantos impactos nas vidas dos escravizados – gerados por séculos de exploração e concessão de liberdade sem a construção de políticas de Estado que garantissem condições de vida dignas para a população negra – um deles foi o da inserção no mercado de trabalho.”
Sueli Carneiro contribui afirmando que: “A promoção de recursos humanos é informada pela persistência de preconceitos e estereótipos em relação à mão de obra negra; seja em função do estigma do passado de escravizado, seja pelas construções ideológicas posteriores à escravidão que alardearam uma suposta inaptidão dos negros para se ajustarem às técnicas disciplinares do mundo do trabalho formal e livre, justificando assim a sua substituição e preterição pelo trabalhador imigrante; seja ainda, simplesmente, por se lhe atribuir uma inadequação aos padrões estéticos ditados pelo marketing das empresas o que, a depender do lugar que ocupe, depreciaria a imagem da empresa ou de seus produtos.”
4. Diferentes pontas do racismo estrutural confluem para o sistema de Justiça
De um lado, as dinâmicas de formação e ocupação de cargos dificultam ou impedem a presença de profissionais negros no sistema de Justiça, espaço que representa o oposto da maioria da população.
“Todos sabemos das inúmeras dificuldades encontradas nesse sentido, iniciando-se pelo acesso à educação até as oportunidades para ocupação de espaços privilegiados socialmente. As carreiras jurídicas estão entre aquelas nas quais a população negra encontra maiores obstáculos. São cursos caros, que implicam em muita preparação, dedicação e tempo” explica, Karen Luise.
Em outra ponta do sistema, a política de drogas funciona para encarcerar ou pôr fim às vidas negras pelo braço militar do Estado, marcado frequentemente por práticas ilegais que seguem impunes no sistema de Justiça.
É uma combinação de fatores que leva a esse cenário, como colocam Nathália Oliveira e Dudu Ribeiro: “A ação violenta das forças de segurança nas periferias e favelas, o encarceramento absurdo, o número de mortos na “guerra às drogas” e as demais ações criminosas do Estado reúnem um conjunto de motivos suficientes para que nosso país dedique uma ação emergencial para buscar soluções a essa situação complexa. No entanto, a letargia para cessar essa guerra tem nos custado milhares de vidas todos os anos, sem mobilizar pesquisas ou estudos e sem produzir políticas públicas eficientes, resultado de séculos de racismo que produziu a naturalização das diversas situações de violência sofridas, sobretudo, pelas pessoas negras.”
Nathália e Dudu argumentam ainda que é necessário agir sobre “a natureza das práticas discriminatórias no Brasil – as quais, por meio da guerra às drogas, organizam dispositivos de controle da racialidade – e sobre a maneira como elas se articulam e se retroalimentam ou se realinham para cumprir um determinado objetivo estratégico, face instrumental do projeto genocida do Estado brasileiro atualizado.”
Movimentos à conclusão
Os esforços para produzir deslocamentos partem majoritariamente da ação política das organizações da sociedade civil a partir de alguns pontos de compreensão desta realidade((Nathália Oliveira e Dudu Ribeiro aprofundam mais esta perspectiva no artigo “O massacre negro brasileiro na guerra às drogas” da Revista SUR.)).
5. Interseccionalidade é crucial para abordar a complexa realidade do racismo no Brasil
Trabalhada historicamente por intelectuais e ativistas negras, a interseccionalidade é “uma teórica e metodológica usada para pensar a inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado, e as articulações decorrentes daí”((De acordo com Carla Akotirene na entrevista “O que é interseccionalidade”, para Geledés.)).
Exemplo fundamental de ação pautada na interseccionalidade, “Geledés é uma organização da sociedade civil que se posiciona em defesa de mulheres e negros por entender que esses dois segmentos sociais padecem de desvantagens e discriminações no acesso às oportunidades sociais em função do racismo e do sexismo vigentes na sociedade brasileira”, explica Sueli Carneiro.
A ação política e social de Geledés tem como áreas prioritárias “a questão racial, as questões de gênero, [abordando] as implicações desses temas com os direitos humanos, cultura e educação, saúde, comunicação, mercado de trabalho, pesquisa acadêmica, e políticas públicas”, de acordo com Sueli, que adiciona: “[Geledés] posiciona-se também contra outras formas de discriminação como a lesbofobia, a homofobia e a transfobia”.
6. A criação e fortalecimento de ações afirmativas são essenciais para endereçar a imensa distância social nos pontos de partida entre negros e brancos
A partir dessa constatação, Sueli Carneiro afirma que “Geledés soma-se às lutas dos movimentos negros pela criminalização efetiva do racismo e da discriminação racial em suas múltiplas manifestações na sociedade brasileira e defende políticas de ação afirmativa nos diferentes campos das políticas públicas como forma de eliminação das desigualdades raciais, promoção e valorização social da população negra.”
Karen Luise aborda especificamente a importância desse tipo de recurso em uma das ações do IAJ voltadas ao aumento de profissionais negros no sistema de Justiça, que “pretende combater as adversidades decorrentes da falta de acesso à educação e a cursos caros, oferecendo à população negra bolsas de estudos e apoio psicossocial para sua preparação aos concursos públicos de acesso às carreiras jurídicas (magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública, entre outras)”. Com isso, a organização espera “que as pessoas beneficiadas por essa iniciativa detenham um acúmulo na preparação aos certames, que lhes propicie competir em condições de igualdade com os demais concorrentes.”
7. A abordagem a partir das questões raciais é o principal meio para o fortalecimento efetivo do Estado democrático de direito, tendo como ponto chave de mudança a política de drogas
Nathália Oliveira e Dudu Ribeiro entendem “que a discussão sobre as mudanças empreendidas para uma nova Lei de Drogas envolve questões profundas e caras ao povo brasileiro e que essa discussão pode se revelar uma oportunidade histórica de revisão e reconhecimento dos abismos históricos promovidos pelo racismo, reproduzidos ainda de formas muito dolorosas ao povo”.
A primeira organização negra da sociedade civil que atua na construção de uma agenda de justiça racial e econômica a partir da reforma da política de drogas se centra no antirracismo com vistas a um impacto mais amplo.
“Nosso trabalho visa, sobretudo, o fortalecimento efetivo do Estado democrático de direito, na medida em que a superação do atual modelo de proibição de algumas substâncias sob a orientação de guerra, contribuiria para o desmonte de estruturas transnacionais que corrompem as instituições públicas, comprometem a vida em diversos territórios e minam processos de paz”, afirmam Nathália e Dudu.
AS LIDERANÇAS
Sueli Carneiro é filósofa, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo e coordenadora executiva do Geledés – Instituto da Mulher Negra. É ativista feminista e antirracista, autora de diversos artigos sobre as questões de gênero, raça e direitos humanos em publicações nacionais e internacionais. Seu livro mais recente é Escritos de uma vida, 2018. Sueli também integra o Conselho de Administração do Instituto Ibirapitanga.
Karen Luise é juíza de Direito na 1ª Vara do Júri de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, integrante do IAJ – Instituto de Acesso à Justiça; da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul; da Associação dos Juízes para a Democracia; do Comitê de Equidade de Gênero, Raça e Diversidade do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, e formadora da ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados.
Nathália Oliveira é cientista social e co-fundadora da Iniciativa Negra. Foi diretora do Centro de Convivência É de Lei, onde atuou com redução de danos relacionados ao uso de drogas, ensino e gestão de projetos. Também foi assessora de advocacy no projeto “Gênero e Drogas”, no Instituto Terra Trabalho e Cidadania, onde se dedicou a pesquisar as relações entre política de drogas e violações de gênero. Foi articuladora de rede da Plataforma Brasileira de Política de Drogas e atualmente integra o seu conselho consultivo. Foi presidente do COMUDA / SP – Conselho Municipal de Políticas Públicas de Drogas e Álcool.
Dudu Ribeiro é historiador, co-fundador e coordenador executivo da Iniciativa Negra. É especialista em Gestão Estratégica de Políticas Públicas pela UNICAMP/FPA e mestrando do Programa de Pós-graduação em História da UFBA. Foi membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico do Estado da Bahia; do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas do Estado da Bahia; do Grupo de Trabalho sobre Drogas do Conselho Nacional de Juventude; da LANPUD – Rede Latino Americana e do Caribe de Pessoas que Usam Drogas; e vice-presidente do Conselho Estadual de Juventude do Estado da Bahia.