Incidências antirracistas no sistema de Justiça brasileiro

Manifestação em solidariedade ao Jacarezinho. Avenida Paulista, São Paulo, em maio de 2021.
Elemento basilar do racismo estrutural, o funcionamento do sistema de Justiça no Brasil é um dos recursos que se sofisticaram desde o pós-abolição para cumprir um papel na manutenção dos abismos sociais produzidos entre brancos e negros, que justificaram a escravidão. Ainda que avanços muito específicos tenham acontecido, em especial nas últimas três décadas, mecanismos desse sistema ainda operam para perpetuar a falta de acesso aos espaços de poder, o encarceramento em massa e o genocídio da população negra.
A realidade não poderia – e não deveria – estar mais evidente. Quase um ano após a morte de George Floyd, que suscitou um levante antirracista sem precedentes no mundo, o ex-policial Derek Chauvin foi condenado pelo assassinato. O fato representou um novo avanço, ainda que pontual, para a comunidade negra internacional. Lá e cá pessoas negras seguem vivenciando a face genocida do Estado, legitimada pela impunidade no sistema de Justiça. No Rio de Janeiro, o mais recente e devastador exemplo dessa lógica, com 28 mortes em episódio de terror, a chacina do Jacarezinho acena ao conhecido desfecho da impunidade. A Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro colocou os documentos referentes à ação de 6 de maio em sigilo por cinco anos. Essa foi a operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro, tendo validação pelos poderes executivos nacional e estadual a partir da conhecida lógica de “guerra às drogas”.
A incidência da sociedade civil brasileira foi, até o presente, a principal fonte de avanços para desmontar o racismo inerente a esse sistema. É nesse ambiente que duas iniciativas se movimentam no presente para desbloquear outras barreiras na garantia dos direitos humanos e cidadania de negras e negros a partir da perspectiva da justiça.
Uma nova política de drogas é a base da atuação da Iniciativa Negra, organização que atua na construção da agenda de justiça racial e econômica, a partir de suas sedes em Salvador e em São Paulo. A Iniciativa Negra aborda a política de drogas e o racismo como aspectos centrais no debate sobre o genocídio, encarceramento e acesso a direitos da população negra no Brasil.
Criada em 2015, a Iniciativa Negra se consolidou como a primeira organização oriunda do movimento negro voltada ao advocacy, com atuação na interseção entre direitos humanos, políticas de drogas e racismo. Um tripé que conecta pesquisa, articulação política e comunicação sustenta suas ações de advocacy em direitos humanos e reformas na política sobre drogas, com foco nas agendas nacionais e regionais de segurança pública, sistema de justiça e saúde pública.
A capacidade de articulação em rede da Iniciativa Negra é fundamental para posicionar a questão racial no centro das abordagens à “guerra às drogas”. No nível nacional compõe a Plataforma Brasileira de Política de Drogas, a Coalizão Negra por Direitos, a Rede de Advocacy Colaborativo e o Pacto pela Democracia, por meio das quais atua em relação aos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
Desde 2019, a organização conta com apoio do Instituto Ibirapitanga voltado ao seu desenvolvimento institucional, ao advocacy, à criação e consolidação da área de pesquisa da organização. No mesmo ano, a Iniciativa Negra foi uma das organizações participantes diretas do advocacy em torno da Lei 13.964/2019, conhecida como “Pacote Anticrime”, quando foi possível barrar a aprovação de alguns trechos que apresentavam ameaças de recrudescimento do Estado penal para a população negra.
Por meio do apoio, a Iniciativa Negra também já realizou publicações e ações de mobilização em torno da política de drogas. Em parceria com a Rede de Observatórios da Segurança, lançou em dezembro de 2020 o boletim “A bala não erra o alvo”, que apresenta levantamento de produção de dados que evidenciam o racismo estrutural na segurança pública. Também em 2020, a organização produziu uma série de lives e campanhas abordando raça, política de drogas e redução de danos, como “Brisa em casa” e “Drogas na quarentena”.
Em 2021, a organização realizará o lançamento de três pesquisas inéditas, frente de trabalho que alimenta diretamente suas ações de advocacy, por meio da produção de evidências que permitem sistematização de dados para a proposição de agendas políticas.
Com a atuação de múltiplas frentes a Iniciativa Negra contribui com o fortalecimento efetivo do Estado democrático de direito, entendendo que a superação do atual modelo de proibição a certas substâncias impactará na desarticulação das redes internacionais que corrompem instituições públicas, protegerá direitos humanos e facilitará os processos de construção de paz nos territórios afetados pela orientação de guerra da presente política de drogas.
A defesa do Estado democrático de direito também é o ambiente de atuação do IAJ – Instituto de Acesso à Justiça. Sediado em Porto Alegre, o IAJ foi fundado em 2002 com o objetivo de se dedicar à efetivação dos direitos humanos da população social e economicamente vulnerável, em articulação com outros setores e áreas profissionais. Em seu histórico de atuação, a organização se voltou a projetos de enfrentamento a diferentes problemáticas da justiça no Brasil, incluindo a questão prisional, proteção jurídico-social e abordagem às carreiras jurídicas.
A organização afirma a importância de um sistema de justiça tão plural quanto a sociedade brasileira, não só como forma de refletir a diversidade étnico-racial do país, mas também de influenciar sua prática.
A reversão da subrepresentação de pessoas negras nas carreiras jurídicas é objeto de uma das frentes de ação do IAJ, que aborda o problema a partir de um mecanismo já vigente no sistema de Justiça. Em 2015, o CNJ – Conselho Nacional de Justiça emitiu a Resolução número 203, que destinou a candidatos negros o mínimo de 20% das vagas ofertadas em concursos públicos para cargos efetivos dos órgãos do Poder Judiciário e de ingresso na magistratura, em acordo com a Lei 12.990/2014. A resolução também prevê a data de término da vigência da Lei, em 2024, como prazo para o fim do sistema dessas cotas.
Ainda que esteja em funcionamento, a reserva de vagas para candidatos não tem sido de fato acessada pelas populações afrodescendentes e indígenas. Com foco em contribuir para a mudança desse quadro, o IAJ lançou em 2019 o projeto “Mary de Aguiar Silva: por mais cores na justiça”, apoiado pelo Instituto Ibirapitanga.
O nome do projeto faz reverência à primeira mulher negra do Brasil empossada no cargo de juíza, na Bahia em 1962. Falecida em fevereiro de 2021, Mary de Aguiar foi a exceção que confirma a regra de um sistema de justiça excludente à ocupação de pessoas negras em seus cargos. Ao mesmo tempo, a juíza apontou uma direção de ação para pessoas negras ao desafiar essa estrutura de poder.
O projeto busca facilitar o ingresso de candidatos não-brancos nos concursos do sistema de justiça, por meio da concessão de bolsas de estudo em cursos preparatórios para as carreiras jurídicas no Rio Grande do Sul, atividades culturais e de formação, bem como fomento ao debate sobre ações afirmativas e igualdade racial na sociedade brasileira.
Com uma visão holística, o projeto oferece também atendimento psicológico individual e está colaborando com a inclusão digital dos participantes. O atendimento psicológico foi viabilizado por parceria com o Coletivo Adinkra, formado por psicólogos negros e negras. Já a inclusão digital partiu da identificação de equipamentos do Ministério Público do Trabalho e do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que estavam em fase de troca, porém, ainda em boas condições de uso. O IAJ encaminhou um projeto de inclusão digital aos órgãos e para receber as doações.
Além do atendimento direto a candidatos de concursos para carreiras jurídicas, o projeto cumpre um papel de fomentar o debate sobre a importância da política de reserva de vagas em concursos, no intuito de estimular a opinião pública a apoiar sua continuidade. Para isso, o IAJ busca disseminar, na sociedade e no sistema de Justiça, os dados já disponíveis da experiência de implementação de cotas raciais.
O projeto já tem resultados animadores – duas de suas participantes foram aprovadas no último concurso público para oficial de justiça do estado do Rio Grande do Sul (edital 43/2020), uma delas tendo obtido a maior nota dentre todos os candidatos autodeclarados negros.
Em sua estrutura interna, o IAJ também implementa avanços em direção à equidade racial, com um nova gestão composta por maioria de pessoas negras e negros. Sua incidência em torno da justiça racial vem se fortalecendo também publicamente. Em dezembro de 2020, o IAJ esteve presente na audiência virtual convocada pela Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, em função do assassinato de João Alberto Freitas por seguranças do mercado Carrefour, na véspera do Dia da Consciência Negra de 2020. A organização segue acompanhando o andamento do caso.
O sistema de Justiça brasileiro se apresenta ainda como um campo hostil a pessoas negras e negros, seja por sua lógica de acesso a cargos garantir a subrepresentação dessa população, seja por seu funcionamento voltado a ler corpos negros como criminosos, aqueles que devem ser privados da liberdade, ou mesmo da vida.
Uma das faces mais duras e cruéis do racismo é enfrentada por organizações que fazem a linha de frente da resistência antirracista neste ambiente, imaginando e desenhando linhas mais adiante. Contornos que rompem essa estrutura, seja numa curva crescente de ocupação de seus cargos por pessoas negras, seja nas linhas que farão cumprir políticas de emancipação do atual cenário de genocídio pela “guerra às drogas”.