Geledés – lições de um farol

Em 30 de abril de 1988, nascia o Geledés – Instituto da Mulher Negra, histórica organização oriunda do movimento negro no Brasil. Em seus 33 anos de atuação, Geledés construiu um caminho pioneiro no enfrentamento ao racismo, ao sexismo e a diferentes formas de discriminação interseccionadas. Sua fundação ocorreu na redemocratização, quando passaram a surgir com maior intensidade organizações da sociedade civil brasileira. Neste contexto e desde então, sua existência contribuiu com o surgimento e orientação da ação de outras importantes organizações negras no país.
O Geledés atua pelo fortalecimento dos direitos de mulheres e negros, por meio de ações de sensibilização da sociedade quanto à necessidade de compromisso efetivo para a superação do racismo e sexismo. Compõe um capítulo fundamental do movimento negro contemporâneo, voltado a endereçar a herança escravocrata brasileira que opera na manutenção da exploração e exclusão da população negra.
Ao longo de sua história, Geledés ofereceu à sociedade civil brasileira uma série de aprendizados de organização e luta pela cidadania da população negra. Alguns se destacam por trazerem avanços chave para a equidade racial e de gênero no Brasil.
Rompendo o “pacto de silêncio”
Ainda bastante difundida, a ideia de que o país vive uma “democracia racial”, em que pessoas de diferentes raças convivem de forma harmoniosa, sustentou entraves históricos para se tratar e enfrentar o racismo no Brasil. Movimentos e organizações negras foram responsáveis por quebrar esse mito e a ação de Geledés nesse contexto foi uma das mais proeminentes.
Um particular exemplo de contribuição da organização ao rompimento desse “pacto de silêncio” sobre a questão racial no Brasil é o projeto SOS Racismo, lançado logo nos primeiros anos de Geledés. Originado como Seção Brasileira do SOS Racisme da França, integrou-se ao Programa de Direitos Humanos do Geledés para oferecer assessoria jurídica gratuita a vítimas de racismo. A partir de um processo de internacionalização, na Comissão de Direitos Humanos da ONU – Organização das Nações Unidas e da OEA – Organização dos Estados Americanos, explicitou a ineficiência do Estado brasileiro na criminalização do racismo, o que gerou importantes recomendações para mudanças no sistema Judiciário nas análises de casos de racismo.
Desenvolvimento de campo: saúde reprodutiva da população negra
O final dos anos 1980 e os anos 1990, foram povoados por acontecimentos que dispararam avanços às discussões e políticas públicas em torno da saúde da população negra, particularmente no que tange os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres negras. Nesse período, a PNAD – Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios de 1986 apresentou uma altíssima prevalência da esterilização feminina no país, sendo os mais altos índices no Maranhão, o estado que apresentava a maior proporção de população negra. Em 1990, o Geledés iniciou grupos de auto-ajuda e oficinas de saúde reprodutiva, atuando também no debate político sobre a esterilização cirúrgica de mulheres no Brasil. Logo em seguida, em 1991, o Programa de Saúde do Geledés foi lançado com um debate sobre a esterilização de mulheres no Brasil e a publicação de dois cadernos – “Mulher negra e saúde” e “Esterilização: Impunidade ou regulamentação?”.
O debate político que Geledés propôs no período não era um consenso dentro do movimento negro, mas colaborou com formulações embrionárias de uma visão própria das mulheres negras no campo da saúde reprodutiva. Mais tarde, em 1993, o Programa de Saúde do Geledés realizou o Seminário Nacional Políticas e Direitos Reprodutivos das Mulheres Negras que resultou na “Declaração de Itapecerica da Serra”. O documento foi marco do movimento de mulheres negras brasileiras, apresentando sua posição autônoma e consensuada ((De acordo com Edna Roland, em “Saúde Reprodutiva da População Negra no Brasil: Entre Malthus e Gobineau”.)).
Em 1995, a “Marcha Zumbi Contra o Racismo, pela Igualdade e a Vida”, realizada em 1996, inclui em sua plataforma política de reivindicações “a implementação efetiva do programa de assistência integral à saúde da mulher e a formulação de um programa de saúde reprodutiva que contemple as necessidades dos homens negros”. Também em 1996, a saúde reprodutiva da população negra foi discutida em uma mesa redonda promovida pelo Ministério da Saúde e o Grupo de Trabalho Interministerial sobre Saúde da População Negra.
Na década seguinte, Geledés atuou na implementação de políticas públicas de saúde específicas para as mulheres, conquistadas em 2004 com a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher. Em 2009, foi instituída a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra.
Na genealogia das políticas afirmativas para negras/os
As iniciativas de Geledés foram essenciais à formulação e implementação de políticas afirmativas voltadas a pessoas negras no Brasil.
Em 1999, Geledés formou parceria com a Fundação Cultural Palmares e a Fundação BankBoston para a primeira iniciativa no Brasil de ação afirmativa para jovens negras/os na educação – o projeto Geração XXI. O projeto, reconhecidamente pioneiro, garantiu condições financeiras e pedagógicas para 21 jovens negras/os, desde o final da segunda etapa do ensino fundamental até a conclusão do ensino superior, sendo adaptado posteriormente por diferentes iniciativas privadas.
Em 2012, Geledés integrou o grupo da sociedade civil que realizou a defesa oral do sistema de cotas raciais nas universidades públicas, em audiência no Supremo Tribunal Federal, que resultou na aprovação por unanimidade da política.
Evocando a força de comunicação
Partindo do próprio nome, Geledés constituiu vocação no campo da comunicação. Alude à Gèlède, “uma forma de sociedade secreta feminina de caráter religioso nas sociedades tradicionais yorubás”, que “expressa o poder feminino sobre a fertilidade da terra, a procriação e o bem estar da comunidade”((Patrimônio cultural intangível. Ver mais em “O que é Gelede”.)). Esta vocação faz com que a comunicação seja, para Geledés, um potente instrumento de estímulo à ocupação de espaços de poder por mulheres negras, ao mesmo tempo em que constróem seus próprios lugares de poder((De acordo com Cidinha Silva, em Geledés: 30 anos de História! Por Cidinha da Silva.)). Geledés mesmo é um exemplo desses movimentos, por se colocar a missão de atuar na formação política de mulheres negras, em seus mais variados sentidos.
A organização foi pioneira no Brasil na abordagem à comunicação, sendo uma das primeiras organizações negras a lançar um portal de notícias, em 1997, e a desenvolver um programa de comunicação.
Além de estabelecer um espaço de expressão pública das ações realizadas, por meio do Portal Geledés, a organização abriu janelas e portas à atuação de negras/os na diáspora africana. Tornou-se, assim, tanto fonte de credibilidade, como uma das principais difusoras no Brasil das ações e reflexões mundiais em torno da questão racial. O portal alcançou em 2020 mais de 16 milhões visitantes de páginas únicas, reverberando também na marca de 800 mil seguidores totais nas suas redes sociais.
Afirmando a comunicação como um direito humano, Geledés criou programa na área, trabalhando-a como política fundamental aos movimentos sociais, especialmente de mulheres negras. Sua atuação neste campo partiu da compreensão da importância da comunicação nesses movimentos, não só para ampliar sua visibilidade, mas em sua relação com empoderamento, ao capacitar mulheres negras em comunicação, mídia e advocacy.
Um farol para os presentes desafios à equidade racial
Geledés foi a primeira organização apoiada pelo Instituto Ibirapitanga, parceria iniciada em 2017, que permanece orientada a manter e amplificar a sua missão institucional.
No ano de 2020, particularmente abalado pelo início da pandemia de covid-19, Geledés foi uma das organizações que ditou o ritmo de uma reorientação do significado da ação social, para outra forma de reconhecimento do papel assistencial em contextos de gravidade econômica e ausência de proteção social. Por um lado, a organização se engajou em ações de solidariedade, a exemplo do projeto “Protegendo e Lutando por Mulheres Negras”, que viabilizou doações de recursos para o atendimento direto a outras organizações.
Ao mesmo tempo, aproveitou suas próprias tecnologias existentes para colaborar com as demandas do novo cenário. No Portal Geledés e nas suas redes sociais, produziu e disseminou informações sobre a pandemia, com destaque para a série “Geledés Retratos da Pandemia”, que traz histórias de como os moradores das periferias estão enfrentando a covid-19. A partir de sua rede de Promotoras Legais Populares, articulou o projeto “PLPs em ação – Geledés no enfrentamento ao coronavírus e à violência contra a mulher”, para a disseminação local de informações sobre a pandemia e orientação para o acesso aos benefícios públicos e divulgação das ações de solidariedade desenvolvidas nos territórios.
Ainda nesse contexto, Geledés manteve em 2020 sua capacidade de atuar nas suas demais iniciativas de enfrentamento ao racismo e ao sexismo. Em parceria com a Escola do Parlamento na Câmara Municipal de São Paulo lançou o curso de extensão universitária “Raça, Gênero, Democracia e Participação Política no Brasil” para estudantes, ativistas, militantes, pesquisadores e profissionais que atuam com políticas públicas. Junto à organização feminista Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero realizou uma chamada para pesquisadoras negras/os interessadas/os em pleitear vagas em programas de pós-graduação. Essas são evidências da expansão da histórica atuação de Geledés na educação, por meio das ações afirmativas, como uma área temática estratégica institucional.
Outras parcerias que Geledés firmou foram responsáveis por iniciativas que abordam a questão da memória. Em 2020, com a Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros e o Acervo Cultne, a organização lançou a Coluna Nossas Histórias, que abriga textos de integrantes da Rede, com informações sobre a história da população negra no Brasil. A parceria também realizou a exposição “Nossas Histórias: vidas, lutas e saberes da gente negra” junto ao Google Arts and Culture. Com esta iniciativa, a parceria contribui para reposicionar as pesquisas acadêmicas de excelência produzidas por historiadoras negras e historiadores negros sobre diversos temas que envolvem pessoas de ascendência africana no Brasil e no mundo.
Outra ação nesta área é a parceria entre Geledés e o Arquivo Edgard Leuenroth da UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas, iniciada em 2019, para a construção do Centro de Memória Geledés – Instituto da Mulher Negra, em andamento.
Enfrentando o baixo investimento em organizações negras, outra face do racismo estrutural no Brasil, Geledés permaneceu vibrante e abrindo novos campos de atuação em torno das questões raciais e de gênero. Construiu uma trajetória que contribuiu de forma direta e profunda para o reconhecimento da centralidade das questões raciais no campo dos direitos humanos. No presente, seus 33 anos de experiência iluminam e tornam visíveis a atuação exemplar das comunidades e territórios que, segundo a organização, “compõem um rico repertório para o aperfeiçoamento de políticas públicas num futuro vindouro em que seja possível pautá-las”. E assim revelam sua particular e constante visão de futuro, construída sob uma sabedoria ancestral em torno do tempo, que dá a Geledés a capacidade de atravessar gerações no avanço da luta pela equidade racial.