Territórios de acesso à alimentação saudável e seus tecidos sociais

Diulie Almansa na colheita do arroz Farroupilha, cultivado há mais de 100 anos no Rio Grande do Sul, que esteve ameaçado de extinção na região |
Dados da pesquisa recém lançada “Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil” apresentam a dimensão do impacto da pandemia na situação da fome no Brasil. A insegurança alimentar que já se agravava desde 2018, pelo sistemático retrocesso nas políticas de abordagem à questão alimentar, recrudesceu ainda mais com a crise na gestão pública e mitigação das consequências da pandemia, sobretudo por parte do governo federal.
Compreendendo as consequências da pandemia também para as experiências organizativas e produtivas, no âmbito da agroecologia e abastecimento popular de alimentos, o MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores conectou diferentes pontas da questão alimentar para apresentar soluções e responder à crise, logo nos primeiros meses.
Com 25 anos completos em 2021, o MPA é um movimento camponês, presente em 19 estados brasileiros, cuja base social é organizada em grupos de famílias nas comunidades camponesas. O MPA atua ao lado de outros movimentos do campo e da cidade para a construção de um projeto popular para o Brasil, baseado na soberania e nos valores de uma sociedade justa e fraterna. O movimento integra a Via Campesina, a campanha Periferia Viva, da Frente Brasil Popular e da Frente Povo Sem Medo. Sua rede de associações e cooperativas possui larga trajetória de atuação em abastecimento popular, seja através de experiências com mercados populares, feiras livres e lojas de comercialização de alimentos ou por meio de operação do PAA – Programa de Aquisição de Alimentos. Com uma abordagem propositiva às políticas relacionadas ao campo, o MPA é um movimento que viabiliza a circulação e consumo acessíveis de alimentos agroecológicos de pequenos agricultores.
Esse repertório é o que o MPA ofereceu como fonte de resposta ao contexto de crise alimentar, a partir do projeto “Agroecologia e abastecimento popular de alimentos”, apoiado pelo Instituto Ibirapitanga em 2020. A iniciativa teve como objetivo potencializar a produção agroecológica e coordenar ações de abastecimento popular de alimentos em meio à crise sanitária e econômica, a partir de três frentes.
Uma delas concentrou-se no apoio logístico e pessoal a experiências territoriais baseadas na agroecologia, de referência em organização e produção e que já sustentavam ofertas de alimentos saudáveis antes da pandemia. Nos sete estados que integraram o projeto – Bahia, Espírito Santo, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rondônia e Sergipe – foi realizada a construção de 63 CPA – Comitês Populares do Alimento, como espaços de encontro, construção de solidariedade, e de organização das ações de doação de alimentos agroecológicos. Por meio dos CPAs, foram distribuídas mais de 50 mil cestas de alimentos saudáveis, com um total de mais de 1000 toneladas de alimentos.
A Campanha Nacional Mutirão contra Fome constituiu outra frente da iniciativa, voltada ao envolvimento da sociedade civil, empresas e cidadãs/ãos na arrecadação de fundos para aquisição de alimentos da agricultura camponesa e sua doação em forma de cestas básicas para famílias em situação de vulnerabilidade social. A partir da campanha foi construída uma articulação com artistas, poetas e lideranças políticas, como Chico César, Pedro Munhoz, Gregório Duvivier, Pastor Henrique Vieira e Guilherme Boulos, que contribuíram em sua divulgação. Dessa forma, a campanha contribuiu para o aquecimento do debate público sobre soberania alimentar e agroecologia, alcançando também trabalhadoras/es das periferias urbanas, de médias e grandes cidades.
Uma terceira frente centrou-se na comunicação para difundir e popularizar as ações do projeto, ampliando seu alcance. Aliada à Campanha, a estratégia potencializou a sensibilização de empresas, sociedade civil, poderes executivo, legislativo e judiciário em torno da importância do combate à fome. A partir da realização de oficinas com a equipe de comunicação do Mutirão, essa terceira frente colaborou com a profissionalização das ações de comunicação no MPA, que viu seu alcance e seguidores crescerem consideravelmente nas mídias sociais.
Além do que os números e ações podem apontar, a iniciativa idealizada pelo MPA resultou em diferentes e importantes contribuições ao campo no contexto da pandemia, que afirmam a capacidade inerente à sociedade civil de apresentar saídas aos problemas estruturais dos sistemas alimentares no Brasil, partindo da ação direta nas comunidades.
O projeto permitiu maior articulação com organizações urbanas – associações de bairros, pastorais sociais, movimento de luta por moradia –, aumentando a aliança entre movimentos do campo e da cidade, bem como fortalecendo a atuação dos territórios, da produção agroecológica ao abastecimento popular urbano. Ao utilizar a integração entre as experiências de produção e distribuição nos diferentes estados, a iniciativa contribuiu para a estruturação de um sistema de abastecimento popular de alimentos, que combina comercialização com ações de distribuição solidária de cestas de alimentos agroecológicos.
A relação campo-cidade também se construiu a partir do debate da alimentação saudável, contribuindo na reconstrução do tecido social e no fortalecimento de laços comunitários, que se valeram da inovação na organização territorial, possibilitada pela cotidianidade das ações. Nos estados, diferentes arranjos de organização emergiram e já se constituem como aprendizado ao campo. No Piauí, a construção do Raízes do Brasil em Picos, é fruto da mobilização popular de organizações do campo como urbanas. No Rio Grande do Sul, a articulação se deu entre hospitais públicos da região de Seberi para doação de alimentos agroecológicos. No Rio de Janeiro, houve a consolidação da ação de cozinhas solidárias para população sem teto em situação de rua, através da articulação com movimentos de luta por moradia.
Para o MPA, a experiência prática de enfrentamento às consequências da pandemia evidenciou o quanto fome no Brasil está diretamente relacionada à forma de organização da sociedade, à distribuição de terras e riquezas e à gestão do Estado. Na contramão deste modelo vigente do sistema alimentar, e atuando no front da crise sanitária, a ação em cooperação promovida pelo MPA legou ao país novas tecnologias sociais de transformação dos sistemas alimentares, ao associar diferentes estratégias na convergência dos movimentos do campo e da cidade. Tudo isso, fortalecendo a economia das famílias camponesas e contribuindo na segurança alimentar das famílias das periferias urbanas, por meio do acesso à alimentação saudável, com comida de verdade.