E o círculo gerou todas as formas

Por Linoca Souza
Especial para a Newsletter do Instituto Ibirapitanga
Laroiê!
Começo aqui saudando Elegbara, Exu e peço agò e benção aos mais velhos, que permitiram e permitem nossa caminhada até aqui. Peço licença a Elegbara, porque é a boca dele que, antes de tudo, é alimentada. É onde se polarizam forças e se abrem caminhos possíveis para que possamos transitar.
Enquanto desenvolvia a ilustração que acompanha este texto e pensava sobre o saber popular presente no ajeum dos diversos terreiros, me lembrei de uma obra do acreano Roberto Evangelista, Mater Dolorosa in Memoriam II (da Criação e Sobrevivência das Formas) 1978.
A obra experimental de 12 minutos foi trabalhada a partir da orientação de um pajé, e fala sobre um pensamento cosmológico e sobre resistência de um povo. Há ainda nesta obra elementos importantes, como o fazer circular, o preparo e partilha de alimentos tradicionais indígenas, a exemplo da tapioca. Nela, centenas de cuias flutuam num igarapé.
Enquanto o vídeo é feito, o artista narra uma concepção de universo:
“De boca ao ouvido, durante muitas luas, as linhas foram passadas.
As informações das linhas. As formações das linhas.
As linhas. Com elas, sem que eles soubessem, redesenhamos a vida e sobrevivemos.
As nossas primeiras ferramentas de armar, geradas do sol e da água.
Luz ou água
quem estava no princípio? Os velhos diziam: juntas, sempre estiveram (…)
Os velhos contavam: no princípio nunca foi o caos.
E o primeiro nunca dormiu.
Olho imenso. Bojudo. Luz de muitos olhos. Flutuante. Circulante. Circulando.
Circulações geradoras.
O círculo-alimento; entranhado no corpo.
As misteriosas relações do espírito e do estômago:
no fundo, a mesma forma. Sol alto, alto e sem sair do meu corpo.
Daí, água e ar desenharam as linhas impensáveis.
E o círculo gerou todas as formas”
Embora, quando se fale de ajeum, os pensamentos sejam quase sempre voltados às religiões de matriz africana, é importante lembrar que, também nas comunidades indígenas, existem diversos ritos alimentares importantes.
Fazer comida e comer com os seus é assumir uma função social que carrega sua magia de aprendizado, seja nos terreiros ou nas aldeias. O local onde se produz comida física e espiritual e onde se manuseia os alimentos tradicionais garante que saberes e trocas estejam sempre se cruzando, ou, fazendo ainda um paralelo com a obra de Evangelista, estejam se circulando constantemente. Lembremos-nos que não é à toa que a tapioca tem aquele formato.
É nos espaços dessas comunidades que as tarefas são divididas e onde os mais novos aprendem com os mais velhos sobre os saberes e tradições de seu povo, o que nem sempre implica em idade, já que estamos aprendendo e reaprendendo constantemente.
É por isso que na obra de Roberto Evangelista e no que completa seu título “Sobre a criação e Sobrevivência das Formas” visualiza-se a capacidade dos povos originários, bem como dos povos afro-brasileiros, se reinventarem, de conseguirem ir além da ideia folclórica criada sobre suas tradições. É sobre recriar meios de recontar histórias, e de não perder a organicidade humana, que estabelece conexões entre homem e natureza.
E a comida é um dos responsáveis por esses elos. Seja quando a natureza é alimentada, seja nos terreiros, nas quartinhas de Santo, quando se dá de comer aos tambores, no ajeum entre irmãos ou no dia-a-dia de cada sobrevivência indígena e em seus ritos passados aos mais novos de modo orgânico. Fazer comida, dar de comer e comer junto é criar mecanismos de sobrevivência das formas possíveis e que não se perdem, é estar nessa circularidade que cria todas as formas, afinal, para crescer é preciso alimentar, seja a terra, seja o humano, seja o bicho, seja o espírito.
Encerro essa troca, dedicando-a às mãos que alimentam os terreiros, casas, aldeias e famílias diversas. Que nunca lhes falte a fartura à mesa.
Motumbá, Mucuiu, Kolofé!