Legado atlântico no pensamento e ação política de mulheres negras

Marcha das Mulheres Negras, por Inajah Cesar / Acervo Instituto Ibirapitanga
“Eu sou atlântica”. A poética de Beatriz Nascimento, historiadora negra sergipana que viveu no Rio de Janeiro, ressoa ao fim da fala das protagonistas de uma revigorante iniciativa no movimento de mulheres negras – a Escola de Ativismo e Formação Política para Mulheres Negras Beatriz Nascimento. A frase de Beatriz, rememorada pela Escola, traz à tona uma importante parte do pensamento dessa ativista – a relação com territorialidade para as pessoas negras. De sua perspectiva, o corpo negro carregou a experiência africana na travessia oceânica, teceu-a e recriou-a em diferentes manifestações culturais e formações sociais no continente americano.
Criada pelo Odara – Instituto da Mulher Negra, a Escola promove espaços de troca, formação e articulação de ações nas áreas de incidência política; formulação teórica; comunicação; autocuidado e segurança; artes; e cinema, nas dimensões territorial e nacional, em torno da intersecção entre gênero e raça. A iniciativa está voltada a fortalecer as capacidades de resistência e de enfrentamento das mulheres negras e afro-ameríndias, em especial nas regiões Norte e Nordeste, ao atual contexto de racismo, sexismo e lesbitransfobia no país.
Atribuir o nome da Escola à historiadora é uma homenagem de Odara a Beatriz Nascimento e a todas as mulheres negras, por enxergar em sua obra a atualidade e vitalidade necessárias às reflexões e compreensão sobre as relações raciais e de gênero contemporâneas. Múltipla, além de historiadora, Beatriz Nascimento atuou como professora, roteirista, poeta e ativista pelos direitos humanos de negros e de mulheres. Em 1995, foi brutalmente assassinada pelo companheiro de uma amiga que sofria violência doméstica, a quem Beatriz aconselhou a terminar a relação.
Nesta iniciativa, Odara dá um passo necessário para os processos de sedimentação do pensamento das mulheres negras enquanto fundamentais para a construção do país. Ainda mais, para os territórios possíveis às suas existências e comunidades que ainda estão para serem construídos – à luz do bem viver.
Afirma nelas, o reconhecimento do legado de Beatriz, assim como seu lugar enquanto construtoras de pensamento, produtoras de conhecimento. A Escola se constitui, então, como um generoso chamado à aprendizagem mútua voltada à ação política.
Como organização que propôs e conduz essa importante ação formativa, Odara reúne em seus 10 anos de experiência uma notável atuação nos movimentos sociais, a partir do feminismo negro. Atua em parceria com a Rede de Mulheres Negras do Nordeste em agenda comum de enfrentamento à violência racial e de gênero, incidindo junto aos órgãos públicos para a garantia de direitos. Integra também diferentes movimentos e articulações nacionais e internacionais, como o Fórum Social Mundial; a Aliança de Parentesco, articulação entre organizações de mulheres negras e de mulheres indígenas; o FOPIR – Fórum Permanente da Igualdade Racial; a RMAAD – Rede de Mulheres Afrolatinoamericanas, Afrocaribenhas e da Diáspora; e a Cúpula Mundial de Mulheres Negras. Odara também liderou a construção do “Julho das Pretas”, uma estratégia de articulação e mobilização de incidência política em torno do Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, 25 de julho, que iniciou na região Nordeste, se expandindo para todo o país e a América Latina.
Essa forte articulação propulsiona um deslocamento de protagonismo territorial fundamental a uma sociedade civil que se proponha a práticas profundamente transformativas e constitui um dos sentidos do apoio do Instituto Ibirapitanga à organização. Fortalecer organizações negras com trajetória consolidada no campo é um dos objetivos do Ibirapitanga no programa Equidade racial.
Além da criação e condução da Escola de Ativismo e Formação Política para Mulheres Negras Beatriz Nascimento, no âmbito do apoio, Odara vem atuando em diferentes frentes. Na área de comunicação, realizou lives e debates online sobre visibilidade lésbica; trocas inter-geracionais; análises de conjuntura, eleições, democracia e participação política. Como integrante da coordenação da AMNB – Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileira, esteve à frente da mobilização, que protocolou a “Carta das Mulheres Negras contra o Racismo, o Sexismo e Pelo Bem Viver” no gabinete do presidente do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Luiz Fux, após sua posse. A entrega da carta se desdobrou no agendamento de uma audiência com Luiz Fux em dezembro.
Por meio da AMNB, Odara também está atuando na reflexão dos cinco anos da Marcha das Mulheres Negras Contra o Racismo, a Violência e Pelo Bem Viver, realizada em 2015, em Brasília, na qual teve participação ativa. Para isso, estão previstos debates conjunturais e o aprofundamento da perspectiva do bem viver a partir da interlocução e de diálogos amefricanos, com ativistas negras de outros países da América Latina.
A recriação e a articulação, presentes na experiência de mulheres negras, move Odara enquanto organização formada por elas. Reverbera na multiplicação desse pensamento e ação políticos, a partir da Bahia, no enfrentamento aos limites impostos por uma sociedade ainda estruturada no racismo e no sexismo.