Comida de verdade: Respostas à crise que projetam futuro para os sistemas alimentares

Cida, da "Associação Mulheres Resgatando Sua História", 2019 (experiência mapeada pela "Ação Coletiva Comida de Verdade" em Sergipe)
A pandemia de covid-19 teve grande impacto nos sistemas alimentares ao redor do mundo. Instabilidade ou interrupção na distribuição de alimentos, redução de espaços de comercialização, perda de colheitas, queda na renda, mudança de hábitos relacionados a acessibilidade de alimentos, além de agravamento do quadro de insegurança alimentar e nutricional da população, são alguns dos efeitos da crise sanitária. O Painel de Alto Nível de Especialistas em Segurança Alimentar e Nutricional do Comitê de Segurança Alimentar Mundial da FAO – Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura alertou para a necessidade de uma resposta coordenada à situação, orientando a tomada de medidas específicas pelos governos. Entre elas, a coleta e o compartilhamento de dados, bem como o apoio à pesquisa sobre os impactos da pandemia, de forma a reduzir os riscos de ser instaurada uma crise mundial de alimentos nos sistemas alimentares((Essas e outras recomendações estão presentes no Documento de questões provisórias sobre o impacto da covid-19 sobre Segurança Alimentar e Nutricional produzido pelo Painel de Alto Nível de Especialistas em Segurança Alimentar e Nutricional do Comitê de Segurança Alimentar Mundial da FAO.)).
A situação que a crise desdobra configura uma fenda no tempo e no espaço – dias e noites passam de outra forma, com novas sensações e comportamentos. Mas em seu conjunto, seguiu na formação das estações, dos tempos particulares de plantio e colheita, orientando o fazer de quem constrói a agricultura familiar e a agroecologia desde o campo e territórios. A realidade, que já rompia um ambiente desafiador, nessa fenda, ocupou espaço, fortaleceu resistências, fez nascer e crescer novas possibilidades. Trata-se, no Brasil e no mundo, de iniciativas a partir de movimentos sociais e organizações da sociedade civil, que foram ampliadas, reorganizadas ou mesmo criadas neste novo contexto, para responder às necessidades de abastecimento de alimentos. Incluem uma diversidade de estratégias, como redes de solidariedade, distribuição de cestas básicas, aprimoramento de aplicativos para compra direta de produtores, cadeias curtas de produção e de comercialização, elaboração de manuais, de notas técnicas e incidência política.
Uma consistente iniciativa está voltada a contribuir com a sistematização de experiências e produção de conhecimento a partir desse diverso repertório de ações no Brasil – a “Ação Coletiva Comida de Verdade: aprendizagem em tempos de pandemia”. A iniciativa é fruto de abrangente articulação da sociedade civil em torno da questão alimentar, que inclui ANA – Articulação Nacional de Agroecologia; ABA – Associação Brasileira de Agroecologia; Abrasco – Associação Brasileira de Saúde Coletiva; ActionAid; Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável; FBSSAN – Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional; GEPAD – Grupo de Estudos e Pesquisas em Agricultura, Alimentação e Desenvolvimento; Observatório do Desenvolvimento Regional; OPSAN – Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição; Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e RETE – Rede Brasileira de Pesquisa e Gestão em Desenvolvimento Territorial. O projeto conta com o apoio do Instituto Ibirapitanga.
A “Ação Coletiva Comida de Verdade” é um ponto de convergência que também se faz janela, para mapear, identificar e compreender como as experiências de abastecimento de alimentos no contexto da pandemia de covid-19 podem colaborar para a construção e o fortalecimento de sistemas agroalimentares justos e sustentáveis.
Para isso, foram desenvolvidas quatro frentes de trabalho complementares: (i) mapeamento de experiências de abastecimento alimentar protagonizadas por organizações da sociedade civil; (ii) construção de um acervo bibliográfico sobre sistemas agroalimentares e a pandemia de covid-19; (iii) realização de seminários virtuais que abordam as transformações em curso; e (iv)desenvolvimento de publicações a partir da sistematização das experiências.
A iniciativa se mostra necessária e oportuna neste contexto de crise da estrutura de políticas públicas voltadas à garantia do direito humano à alimentação adequada. Além do enfraquecimento do Pronaf – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, recentemente o atual presidente vetou o trecho do Projeto de Lei 735/2020, que garantiria auxílio-emergencial especificamente a produtores da agricultura familiar. Na ponta do consumo, frente à divulgação dos dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: Análise da Segurança Alimentar no Brasil, vemos o agravamento da insegurança alimentar no país. Com um quadro alarmante em todo Brasil, 36,7% de domicílios, no período da pesquisa, estavam com algum nível de insegurança alimentar, sendo que, nas regiões Norte e Nordeste, menos da metade dos domicílios – 43% e 49,7% respectivamente a cada região – relataram condições de acesso pleno e regular a alimentos.
Apesar da situação de vulnerabilidade em que se encontram agricultores familiares e comunidades tradicionais, o mapeamento da “Ação Coletiva Comida de Verdade”, em pouco tempo, começa a apresentar a riqueza, o vigor e a consistência de experiências no território nacional.
Um dos importantes casos que a iniciativa contribuiu para visibilizar está no Distrito Federal, território explorado pela urbanização e pelas monoculturas de commodities e palco atual de controversos capítulos da política institucional. O estado é também, no entanto, território para a estruturação de força política transformadora no desenvolvimento de sistemas agroflorestais – técnicas de manejo da terra baseadas na agroecologia que unem no mesmo ambiente a produção de alimentos saudáveis e de recursos vegetais por meio de consórcios((Definição original presente no site da “Ação Coletiva Comida de Verdade”.)).
Esse é o processo utilizado pelas agrofloresteiras “Mulheres no campo em ação”, no Assentamento Gabriela Monteiro, da cidade-satélite Brazlândia, a 50 km do centro de Brasília. A partir da agrofloresta, foi montada uma pequena agroindústria onde são produzidas farinhas, chips, bolos, tortas, geleias, frutas desidratadas, entre outros produtos. O assentamento foi criado por meio de iniciativa de reforma agrária e o terreno ocupado precisou ser recuperado do uso intenso de agrotóxicos, com a atuação das 22 famílias que lá vivem. Atualmente, com o princípio de respeitar a época do alimento, diversidade de plantio, um sistema próprio de irrigação, e o beneficiamento a partir da agroindústria, evitando desperdício, as “Mulheres no campo em ação” garantem a circulação de seus produtos comercializando em feiras livres e articulando entregas pelo whatsapp.
Mapear, sistematizar e avançar
O componente chave da “Ação Coletiva Comida de Verdade” trouxe para a sociedade conhecer tanto a história das “Mulheres do campo em ação”, quanto outras histórias em diferentes regiões do Brasil, mostrando que iniciativas locais têm dado uma grande contribuição para a permanência do abastecimento de alimentos saudáveis de forma justa e sustentável.
A sistematização dessas iniciativas, que será publicada em diferentes formatos, tem como objetivo final contribuir para a incidência em políticas públicas. Mais do que uma garantia momentânea, o que pode ser testemunhado é o potencial de tais experiências em servirem como um meio e um fim para a sociedade brasileira atravessar as fronteiras em que se encontra agora. São a ponte que nos conectam entre o “durante” e o “pós-pandemia”. Mas também entre o comprometimento das estruturas de políticas de garantia ao direito à alimentação adequada e as possibilidades de construção de ambientes favoráveis à imaginação para o desenvolvimento de sistemas alimentares justos e sustentáveis.
Saiba mais e contribua com o mapeamento de experiências, realizado por meio de articuladores locais nas cinco regiões do Brasil.